8. Comparações Internacionais
A análise comparada da aplicação do instituto da anistia em diferentes países que vivenciaram regimes autoritários ou conflitos internos fornece subsídios importantes para compreender os caminhos possíveis da justiça de transição e as alternativas adotadas frente às violações de direitos humanos.
Entre os países da América Latina, destacam-se os casos da Argentina, Chile, Uruguai e Peru, que, após períodos de ditaduras militares, adotaram políticas públicas voltadas à responsabilização, reparação e fortalecimento da memória institucional.
Na Argentina, a Corte Suprema de Justiça anulou, em 2005, as Leis de Obediência Devida e de Ponto Final, que haviam impedido a responsabilização de militares envolvidos em crimes contra a humanidade. Essa decisão permitiu a reabertura de centenas de processos criminais.
A experiência argentina demonstra que a revisão de normas de anistia é compatível com a democracia e pode reforçar a confiança nas instituições, desde que acompanhada de mecanismos de fortalecimento do Judiciário e do Ministério Público.
No Chile, após a ditadura de Augusto Pinochet, o país adotou uma abordagem gradual de responsabilização. Embora a Lei de Anistia de 1978 não tenha sido formalmente revogada, ela deixou de ser aplicada a partir da interpretação judicial de que não poderia se sobrepor aos direitos humanos.
O Chile também investiu fortemente em políticas de memória, com a criação do Museu da Memória e dos Direitos Humanos e o estabelecimento de comissões de verdade que contribuíram para documentar os crimes cometidos durante o regime militar.
O Uruguai, inicialmente resistente à responsabilização, também revisou sua legislação de anistia com base em decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, permitindo o julgamento de crimes cometidos durante a ditadura militar.
No Peru, a Corte Constitucional declarou inconstitucional a anistia concedida a militares envolvidos em massacres durante o governo de Alberto Fujimori, alinhando o país aos padrões internacionais de justiça e reparação.
Fora do continente latino-americano, a África do Sul é frequentemente citada como exemplo de justiça transicional alternativa, por meio da Comissão de Verdade e Reconciliação. Nesse modelo, a anistia foi condicionada à confissão pública e ao reconhecimento das violações, fortalecendo o direito à memória.
Essas experiências demonstram que a revisão da anistia é possível e desejável, quando feita de forma transparente, com base em princípios constitucionais e em diálogo com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado.
Além dos países latino-americanos, outras nações enfrentaram dilemas semelhantes ao do Brasil ao lidar com legados de autoritarismo, repressão e violência de Estado. A análise dessas experiências internacionais revela estratégias distintas para equilibrar a necessidade de pacificação social com a demanda por justiça e verdade.
Na Alemanha, após a queda do regime nazista, os chamados Julgamentos de Nuremberg marcaram um divisor de águas no direito internacional penal. Pela primeira vez, líderes políticos e militares foram responsabilizados criminalmente por crimes de guerra e crimes contra a humanidade em um tribunal internacional.
Essa experiência consolidou o princípio da responsabilidade individual e da imprescritibilidade dos crimes mais graves, servindo como base para a construção posterior do Estatuto de Roma e da Corte Penal Internacional.
Após a reunificação da Alemanha, o país enfrentou novos desafios no trato com o passado autoritário da Alemanha Oriental (RDA), onde agentes da Stasi – a polícia secreta – também foram levados a julgamento, mesmo diante de alegações de anistias internas anteriores.
A Alemanha optou por uma abordagem de transparência total, com ampla abertura de arquivos, reconhecimento público das violações e responsabilização simbólica e penal, ainda que limitada. A atuação do sistema judiciário alemão serviu como exemplo de como conciliar justiça e estabilidade.
No caso da Espanha, o Pacto de Moncloa, firmado durante a transição pós-Franquismo, resultou na Lei de Anistia de 1977, que impediu a responsabilização por crimes cometidos durante a ditadura. Por décadas, a justiça espanhola foi criticada internacionalmente por manter o silêncio institucional sobre os crimes do regime.
Nos últimos anos, no entanto, a pressão de familiares de vítimas, movimentos sociais e organismos internacionais levou o país a abrir investigações judiciais sobre desaparecidos políticos e a criar leis de memória histórica.
A transição democrática em Moçambique também é digna de nota. Após a guerra civil, foi adotada uma política de anistia generalizada, mas sem mecanismos complementares de justiça de transição, o que resultou em uma paz instável e na permanência de estruturas de violência nas instituições estatais.
O caso de Ruanda é paradigmático. Após o genocídio de 1994, o país implementou um modelo híbrido de justiça, combinando tribunais internacionais (ICTR) e tribunais comunitários (Gacaca). Embora tenha havido anistias parciais, os principais responsáveis foram julgados internacionalmente.
Esse modelo permitiu certo grau de reconciliação nacional, mas também recebeu críticas pela seletividade dos julgamentos e pela ausência de garantias processuais nos tribunais locais.
Na Bósnia-Herzegovina, após o conflito nos anos 1990, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII) julgou diversos crimes de guerra e de lesa-humanidade, sem recorrer a mecanismos de anistia. Esse modelo demonstrou que a justiça internacional pode ser um caminho viável para combater a impunidade mesmo em contextos complexos.
O caso colombiano oferece uma experiência recente e em construção. Os acordos de paz entre o governo e as FARC previram mecanismos de anistia condicionada e justiça restaurativa, sendo que crimes de guerra e contra a humanidade não foram anistiados. A Jurisdição Especial para a Paz (JEP) foi criada como instância responsável por assegurar responsabilização proporcional e verdade histórica.
Essa abordagem conciliou responsabilização penal e reinserção social, sendo vista por muitos como um modelo inovador de justiça de transição no século XXI. A comunidade internacional acompanha o modelo colombiano com atenção, como possível alternativa a sistemas puramente punitivos ou absolutos.
Comparar essas experiências com o modelo brasileiro permite constatar que o país optou por uma forma de transição política baseada no esquecimento e na negação do conflito. A ausência de responsabilização e de abertura de arquivos contribuiu para a continuidade da impunidade e para a fragilidade da cultura democrática.
Enquanto a maioria dos países avançou no reconhecimento dos direitos das vítimas e na construção de políticas públicas de memória, o Brasil permanece ancorado em uma lei de anistia redigida sob a lógica da ditadura e mantida por interpretações judiciais conservadoras.
A revisão da anistia e a adoção de políticas públicas integradas de justiça de transição no Brasil dependeriam não apenas da revogação ou modificação da legislação, mas de uma mudança institucional e cultural no reconhecimento da centralidade da vítima e no compromisso com os direitos humanos.
A abertura de arquivos, a promoção de comissões permanentes de verdade, a requalificação simbólica de espaços públicos e a adoção de programas de educação em direitos humanos são medidas já implementadas com sucesso em diversos países e que poderiam ser adaptadas à realidade brasileira.
A análise comparativa demonstra que a justiça de transição não é incompatível com a democracia. Ao contrário, sua realização fortalece o Estado de Direito, legitima as instituições e permite a superação de legados autoritários por meio do reconhecimento e da reparação.
Portanto, o Brasil dispõe de múltiplos exemplos internacionais que indicam a possibilidade e a necessidade de revisar seu modelo de transição e de enfrentar com maturidade os crimes cometidos pelo Estado no passado, em consonância com os padrões internacionais de justiça, verdade e memória.
9. A Anistia em Regimes Democráticos e Autoritários
O instituto da anistia assume contornos distintos dependendo do regime político em que é implementado. Em regimes democráticos, sua aplicação tende a respeitar os limites impostos pelos direitos fundamentais, o que não ocorre, em regra, nos regimes autoritários, nos quais a anistia é frequentemente usada como ferramenta de perpetuação da impunidade e proteção institucional dos agentes do Estado.
Historicamente, a anistia tem sido utilizada por governos autoritários como instrumento de blindagem, impedindo que agentes estatais sejam responsabilizados por graves violações de direitos humanos. Nessas situações, a anistia é imposta de forma vertical, sem consulta pública, diálogo institucional ou reconhecimento das vítimas.
Em ditaduras, a anistia é muitas vezes aprovada por órgãos legislativos controlados pelo regime, servindo como escudo jurídico para garantir a continuidade de agentes do aparato repressivo e legitimar práticas violentas sob o manto da legalidade. O exemplo da Lei da Anistia brasileira de 1979 é emblemático nesse sentido.
Já em contextos democráticos, a anistia pode ter caráter mais restrito e condicionado. Ela é usada como medida excepcional, vinculada a mecanismos de justiça de transição, como comissões da verdade, programas de reparação e reconhecimento público das vítimas.
Nesses casos, a anistia não é concebida como forma de apagar o passado, mas como instrumento de mediação que exige, em contrapartida, verdade, responsabilidade simbólica e compromisso com a não repetição. Um exemplo desse modelo é a África do Sul, onde a anistia foi condicionada à confissão pública de crimes durante o regime do apartheid.
O Brasil, ao contrário, adotou um modelo de transição sem ruptura. A anistia foi promulgada ainda sob o regime militar, sem qualquer tipo de contrapartida institucional em termos de responsabilização ou de mecanismos de justiça restaurativa.
Esse modelo de 'anistia autoritária' gerou profundas distorções no processo democrático brasileiro. A ausência de responsabilização alimentou a impunidade e favoreceu a permanência de estruturas autoritárias no interior das instituições do Estado.
Em regimes democráticos consolidados, a anistia costuma ser interpretada à luz dos princípios constitucionais e dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. Isso implica a exclusão dos crimes de lesa-humanidade do escopo da anistia e a adoção de medidas de reparação coletiva.
A jurisprudência da Corte Interamericana e da Corte Europeia de Direitos Humanos tem reiterado que a anistia deve ser compatível com os parâmetros internacionais, especialmente no que diz respeito ao direito à verdade, à justiça e à memória.
A distinção entre anistias legítimas e ilegítimas está no processo de construção normativa e nas finalidades que a medida visa alcançar. Quando a anistia é elaborada de forma unilateral, sem participação das vítimas e sem mecanismos de reconhecimento institucional, ela tende a reforçar o autoritarismo e a desconfiança institucional.
No caso brasileiro, o caráter autoritário da anistia é visível tanto na sua origem quanto na forma como foi interpretada e aplicada ao longo das décadas. O fato de agentes da repressão terem sido beneficiados em igualdade com os perseguidos políticos evidencia o desequilíbrio do pacto político firmado à época.
A ausência de comissões da verdade na década de 1980 e a falta de abertura dos arquivos da ditadura contribuíram para consolidar a narrativa oficial do esquecimento, dificultando a construção de uma memória crítica e a responsabilização dos agentes públicos.
Nos regimes democráticos, ao contrário, a transparência institucional e o fortalecimento dos mecanismos de participação cidadã são elementos centrais na implementação de anistias condicionadas, voltadas à reconstrução da confiança nas instituições e à afirmação dos direitos das vítimas.
A democracia exige, por princípio, o enfrentamento do passado. A anistia, quando aplicada sem verdade e responsabilização, rompe com esse princípio e transforma-se em instrumento de negação institucional, aprofundando as desigualdades e a desconfiança social.
A permanência de leis de anistia autoritárias em democracias fragiliza os mecanismos de controle e fortalece a cultura da impunidade. Isso se reflete em práticas recorrentes de violência institucional, especialmente nas periferias urbanas e contra populações historicamente vulneráveis.
Portanto, compreender a anistia sob a perspectiva dos regimes políticos em que foi concebida é fundamental para avaliar sua legitimidade e sua compatibilidade com os direitos fundamentais. Somente anistias construídas de forma democrática, transparente e condicionada ao reconhecimento das violações podem contribuir para a reconstrução ética e institucional de uma sociedade marcada por um passado de violência estatal.
Os regimes autoritários, por sua própria natureza, tendem a utilizar a anistia como um instrumento de autoproteção. Ao contrário dos regimes democráticos, onde o instituto pode ser negociado com base em critérios de justiça de transição e transparência, nos regimes autoritários a anistia é geralmente imposta sem diálogo social e sem mecanismos de controle institucional.
No Brasil, a Lei da Anistia de 1979 foi aprovada por um Congresso parcialmente controlado pelo regime militar, em um processo legislativo marcado por censura, perseguição política e ausência de participação popular. A retórica da 'reconciliação nacional' foi utilizada para justificar a medida, mesmo que esta tenha beneficiado amplamente os agentes estatais responsáveis por tortura, desaparecimentos e execuções.
É importante destacar que, mesmo em regimes democráticos, há tentativas de manter dispositivos anistiadores que favorecem a impunidade. Isso ocorre especialmente quando há pressões institucionais das Forças Armadas ou de corporações policiais que resistem a reformas e processos de responsabilização.
A efetividade das anistias democráticas está diretamente ligada à implementação de políticas públicas de verdade, reparação e reforma institucional. Sem esses elementos, mesmo uma anistia aprovada em um contexto democrático pode ter efeitos nefastos sobre a consolidação dos direitos humanos.
O caráter ambíguo da anistia brasileira é revelador: ela foi celebrada por perseguidos políticos e familiares de desaparecidos como uma conquista, mas também foi defendida por representantes do regime militar como uma proteção contra possíveis punições. Essa duplicidade de significados é um dos principais fatores de sua crítica contemporânea.
Nos países que revisaram suas anistias, como Argentina e Peru, houve o reconhecimento institucional de que o perdão a crimes de lesa-humanidade não é compatível com os valores democráticos. Tais revisões foram feitas dentro da ordem jurídica, com base nos compromissos constitucionais e internacionais.
A resistência em rever a anistia no Brasil não decorre apenas de fatores jurídicos, mas sobretudo de condicionantes históricos e políticos. A ausência de rupturas institucionais com o regime militar, a manutenção de estruturas repressivas e a falta de protagonismo das vítimas no processo político são elementos que dificultam essa revisão.
A narrativa da estabilidade institucional não pode ser usada como justificativa permanente para a manutenção de medidas que violam os direitos humanos. Em regimes democráticos, a estabilidade deve ser construída com base no respeito à Constituição, à memória histórica e à dignidade das vítimas.
O desafio para o Brasil é romper com a lógica do silêncio institucional. Isso implica revisar a legislação, adotar práticas de responsabilização, promover a abertura total de arquivos da ditadura e investir em educação histórica e em políticas de reparação integral.
A anistia em regimes democráticos, quando devidamente condicionada, pode ser instrumento de pacificação e justiça restaurativa. No entanto, nos moldes brasileiros, ela se consolidou como instrumento de perpetuação da impunidade, em descompasso com os paradigmas constitucionais de justiça, verdade e memória.
Uma análise mais aprofundada permite identificar que o uso da anistia em regimes autoritários tem o objetivo de consolidar pactos de poder e silenciar os crimes cometidos pelo Estado. Ao excluir a sociedade civil da construção da medida, esses regimes utilizam a anistia como instrumento de autoabsolvição e legitimação de práticas repressivas.
A transição negociada, como ocorreu no Brasil, onde não houve julgamento de responsáveis nem reconhecimento das vítimas de forma institucional durante décadas, caracteriza-se por uma ausência de justiça que compromete os valores fundantes da nova ordem democrática.
Em contraposição, nas democracias constitucionais consolidadas, a anistia costuma surgir como uma medida excepcional, subordinada a um sistema de responsabilização e à exigência de verdade histórica. A aplicação desse modelo requer o cumprimento de requisitos como a confissão, o reconhecimento público dos crimes e o compromisso com a não repetição.
O contraste entre os modelos reflete a diferença entre anistias impostas e anistias construídas com base em valores constitucionais e na participação social. A legitimidade democrática de uma anistia está diretamente ligada à transparência do processo e à sua consonância com os direitos das vítimas.
No Brasil, a anistia de 1979 foi incorporada ao ordenamento jurídico sem qualquer discussão pública ampla, sem consulta às vítimas e sem compromisso institucional com a apuração dos fatos. Essa característica a aproxima mais das anistias autoritárias do que das experiências democráticas de justiça de transição.
Mesmo após a redemocratização, o Estado brasileiro manteve a vigência dessa anistia como um pacto tácito entre o novo regime e os remanescentes do regime militar. Esse pacto foi reforçado por decisões do Supremo Tribunal Federal e pela ausência de políticas de reparação e memória consistentes.
A cultura da impunidade, portanto, não é apenas uma herança autoritária, mas também uma construção da democracia brasileira, que optou por não confrontar plenamente os crimes do passado. Tal escolha institucional teve consequências profundas na configuração das forças de segurança, do sistema penal e do próprio Judiciário.
Diversos relatórios internacionais apontam que a continuidade de práticas violentas por parte do Estado brasileiro, especialmente nas periferias urbanas, é uma expressão da impunidade institucionalizada. A ausência de responsabilização histórica fortalece a repetição de padrões autoritários sob o verniz democrático.
A anistia, nesse sentido, não pode ser compreendida apenas como um ato jurídico isolado. Ela deve ser analisada como um elemento estruturante da forma como o Estado lida com sua história de violência, com as vítimas e com as demandas por justiça e reparação.
A superação da anistia autoritária no Brasil não passa apenas por sua revogação formal, mas pela reconstrução dos sentidos da justiça e da democracia, com centralidade nas vítimas, valorização da memória coletiva e efetivação dos compromissos assumidos pelo país no plano internacional.