V. Perspectivas futuras, caminhos legislativos e o papel do controle social no enfrentamento da pejotização
O fenômeno da pejotização impõe desafios complexos à legislação trabalhista, à fiscalização e à própria organização da sociedade civil. A desconsideração das relações de trabalho formais e a busca por soluções que priorizem a eficiência econômica em detrimento da proteção social necessitam ser acompanhadas por transformações legislativas e novas abordagens jurídicas que assegurem os direitos dos trabalhadores, mesmo diante dessa reconfiguração das relações laborais.
A transformação do mercado de trabalho e a modernização das relações de trabalho exigem uma resposta à altura da magnitude das mudanças. O caminho legislativo passa, fundamentalmente, por uma atualização da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de modo a adaptá-la ao contexto atual, sem abrir mão das garantias que consolidaram as conquistas dos trabalhadores no Brasil. A proteção contra a pejotização não se limita a regulamentações de curto alcance, mas envolve uma revisão estrutural do modelo de trabalho, que garanta que os novos arranjos contratuais não resultem em uma precarização generalizada das condições de trabalho e dos direitos fundamentais.
Além disso, é imprescindível que o controle social, por meio de sindicatos, organizações não governamentais e outros entes representativos da sociedade civil, atue ativamente no monitoramento das políticas públicas de trabalho. O fortalecimento da fiscalização e da participação democrática na formulação de políticas públicas tem um papel central na prevenção de práticas abusivas e na promoção da justiça social.
V.I O papel da reforma legislativa no enfrentamento da pejotização: As Tensões Jurídicas entre Flexibilização Econômica e Proteção Social
A suspensão nacional dos processos sobre a chamada "pejotização", determinada pelo Supremo Tribunal Federal, escancara um dos mais complexos dilemas contemporâneos do Direito do Trabalho brasileiro: a tensão entre a flexibilização das formas de contratação e a efetiva proteção dos direitos sociais dos trabalhadores. No cerne dessa controvérsia, emergem duas racionalidades jurídicas distintas e, em muitos aspectos, conflituosas.
Por um lado, encontra-se a lógica econômica de mercado, que defende a pejotização como uma expressão da liberdade contratual, da autonomia privada e da eficiência organizacional. Nessa visão, empresas e profissionais celebrariam contratos civis ou comerciais em igualdade de condições, promovendo inovação, desburocratização e dinamismo nos vínculos laborais. É o discurso da modernização, da adaptabilidade e da desregulamentação progressiva, sustentado por setores que veem o modelo clássico da CLT como excessivamente rígido, oneroso e incompatível com as dinâmicas do capitalismo digital.
Por outro lado, há a perspectiva jurídico-social trabalhista, enraizada na função histórica da Consolidação das Leis do Trabalho: equilibrar assimetrias de poder, proteger a dignidade da pessoa humana e garantir um mínimo civilizatório de direitos laborais. A pejotização, quando desvirtuada, encobre vínculos de emprego disfarçados sob contratos de pessoa jurídica, resultando na supressão de garantias básicas como férias, 13º salário, FGTS e previdência. Essa prática, ainda que travestida de liberdade, frequentemente mascara relações de subordinação, pessoalidade, onerosidade e habitualidade — elementos típicos do vínculo empregatício.
Nesse contexto, o impasse entre liberdade econômica e direitos fundamentais adquire contornos ainda mais dramáticos diante da omissão legislativa. A ausência de uma reforma clara, coerente e democrática sobre novas formas de trabalho tem levado o Judiciário a ocupar um espaço normativo que, constitucionalmente, caberia ao Parlamento. Tal substituição, ainda que emergencial, gera insegurança jurídica e favorece decisões improvisadas, muitas vezes contraditórias entre diferentes instâncias.
A suspensão dos processos pelo STF, portanto, não é apenas uma questão procedimental. Ela revela uma disputa mais profunda sobre o modelo de sociedade que se deseja construir: uma sociedade onde o trabalho é apenas uma mercadoria sujeita às leis do mercado, ou uma sociedade onde o trabalho continua sendo uma base de cidadania e de inclusão social, merecendo proteção especial contra práticas precarizantes.
Além disso, a suspensão afeta diretamente milhares de trabalhadores e empresas, gerando um vácuo interpretativo que paralisa discussões relevantes sobre fraudes, autonomia e exploração. Em muitos casos, trabalhadores se veem privados de acesso à justiça ou obrigados a aceitar condições indignas em nome da sobrevivência, enquanto empresas utilizam a insegurança jurídica como instrumento de gestão de passivos.
Não se trata, portanto, de negar a necessidade de modernização das relações de trabalho. Pelo contrário, trata-se de afirmar que qualquer transformação nesse campo deve respeitar os fundamentos constitucionais do trabalho digno, da valorização da pessoa humana e da função social da empresa. O desafio é construir um marco normativo que permita inovação sem retrocesso, liberdade sem abuso, flexibilidade sem precarização.
É nesse cenário que a figura do STF se mostra decisiva. Sua atuação não pode se limitar a decisões casuísticas ou tecnocráticas, mas deve estar ancorada na promoção dos direitos fundamentais e na estabilidade do sistema jurídico-trabalhista. Afinal, o Direito do Trabalho não é apenas um instrumento econômico, mas também um pacto social, construído historicamente para proteger os mais vulneráveis e garantir justiça nas relações produtivas.
Dessa forma, a judicialização da pejotização, em meio à ausência de regulação legislativa clara, evidencia a necessidade urgente de um debate nacional maduro, técnico e plural, capaz de harmonizar liberdade e proteção, eficiência e equidade, inovação e justiça. A construção desse novo pacto trabalhista não pode prescindir da escuta ativa da sociedade civil, dos sindicatos, das empresas e dos próprios trabalhadores, que vivenciam diariamente as consequências das lacunas normativas e dos excessos interpretativos. Somente assim será possível enfrentar o desafio da pejotização de forma legítima, democrática e socialmente justa.
VI. Conclusão: Entre a Estagnação Normativa e a Urgência de um Novo Pacto Social-Trabalhista
Diante do cenário complexo que envolve a pejotização e suas implicações no sistema jurídico-laboral brasileiro, torna-se inegável a necessidade de reconstrução de um marco regulatório que atenda às transformações do mundo do trabalho sem renunciar à centralidade dos direitos sociais. A suspensão dos processos pelo Supremo Tribunal Federal sinaliza não apenas um impasse técnico, mas também uma crise institucional de competências, em que o vácuo legislativo é ocupado por uma jurisprudência fragmentada e, por vezes, contraditória.
Essa realidade evidencia a urgência de um novo pacto social-trabalhista. Um pacto que reconheça, por um lado, as novas formas de organização do trabalho, os avanços tecnológicos e a crescente demanda por autonomia; mas que, por outro lado, não perca de vista os princípios constitucionais que estruturam o Direito do Trabalho no Brasil, sobretudo a dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho e a proteção contra práticas precarizantes.
É preciso reconhecer que a pejotização, quando utilizada como fraude, viola direitos fundamentais e mina os alicerces da justiça social. Ao simular relações comerciais entre pessoas jurídicas para ocultar vínculos de subordinação, essa prática enfraquece o pacto civilizatório firmado na Constituição de 1988, em que o trabalho é reconhecido como um dos pilares da ordem econômica e social.
A ausência de uma legislação clara sobre formas de contratação contemporâneas não pode ser suprida por decisões pontuais do Judiciário. A reforma trabalhista de 2017 trouxe mudanças significativas, mas não enfrentou adequadamente os desafios impostos pela pejotização. Sem regulamentação específica, o ordenamento jurídico brasileiro continua vulnerável a estratégias de evasão de direitos, incentivadas por uma lógica de mercado que privilegia a redução de custos em detrimento da proteção laboral.
A atuação do STF, embora relevante, não substitui a legitimidade do debate parlamentar. É no Congresso Nacional que deve ocorrer o diálogo democrático sobre as formas legítimas de flexibilização contratual. A judicialização excessiva dessa temática apenas revela o esgotamento de um modelo normativo que precisa ser revisto e reconstruído à luz dos valores constitucionais e das realidades sociais contemporâneas.
Nesse processo, é fundamental escutar as vozes da sociedade civil, dos sindicatos, dos juristas, das universidades, das pequenas e médias empresas e, sobretudo, dos próprios trabalhadores. Somente com a participação ampla e plural será possível encontrar soluções equilibradas que protejam os direitos fundamentais e estimulem a inovação nas relações de trabalho.
A construção de um marco legal moderno, transparente e justo deve ser guiada pela busca de coerência sistêmica, segurança jurídica e promoção da equidade. A pejotização não pode ser tratada como uma alternativa padrão às relações de emprego, mas sim como uma exceção, regulada e fiscalizada para evitar abusos e assegurar a lisura dos contratos firmados.
A persistência em ignorar os riscos da pejotização descontrolada compromete não apenas os direitos individuais dos trabalhadores, mas também a sustentabilidade do sistema previdenciário, a arrecadação tributária e a concorrência leal entre empresas. A precarização do trabalho, quando institucionalizada, gera externalidades negativas que afetam toda a sociedade.
Diante disso, a conclusão que se impõe é clara: o Brasil precisa enfrentar o tema da pejotização com seriedade, técnica e responsabilidade institucional. A omissão legislativa não pode mais ser tolerada, tampouco a judicialização contínua pode ser vista como solução definitiva. É tempo de repensar o Direito do Trabalho não como um obstáculo à eficiência econômica, mas como um instrumento essencial para o desenvolvimento com justiça social.
A dignidade do trabalhador não pode ser negociada em nome da competitividade. O equilíbrio entre flexibilidade e proteção é possível, mas exige boa-fé normativa, engajamento político e compromisso com o bem comum. O STF, ao suspender os processos sobre pejotização, deu um alerta: a hora de agir é agora.
É dever das instituições brasileiras, sobretudo do Poder Legislativo, avançar na construção de normas que reconheçam a complexidade do mundo do trabalho contemporâneo sem retroceder nas conquistas históricas da classe trabalhadora. O futuro do trabalho no Brasil depende da coragem de enfrentar velhos e novos desafios com honestidade, técnica e sensibilidade social.