O indiciamento policial, infelizmente, é um instituto muito pouco regulamentado em nosso ordenamento jurídico. Talvez por isso este ato do Delegado de Polícia não conte com a devida atenção por parte da doutrina processual penal.1 No Código de Processo Penal, em diversos artigos o legislador menciona a figura do “indiciado”, mas não dispõe sobre o indiciamento.
Foi com a Lei 12.830/13, conhecida como Estatuto do Delegado de Polícia, que o indiciamento foi melhor regulamentado, se não, vejamos: “O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias” (art.2º, §6º).
Por mais modesta que seja a previsão legal, tal inovação já conferiu ao instituto determinadas bases jurídicas, quais sejam:
a) ato privativo do Delegado de Polícia (não havendo a possibilidade de requisição pelo Ministério Público);
b) necessidade de fundamentação (a ausência de motivação torna o ato ilegal – “criptoindiciamento”);
c) análise jurídica sobre os fatos e provas, apontando os elementos indicativos de autoria e materialidade delituosas, bem como de suas circunstâncias.
Sobre o tema, a Polícia Civil do Estado de São Paulo, em iniciativa pioneira, apresentou regulamento mais detalhado acerca o indiciamento na Portaria DGP-26/2023, mais precisamente em seu artigo 129:
Art.129. Tão logo reúna, no curso das investigações, elementos suficientes de autoria, materialidade e circunstâncias de infração penal em tese, o Delegado de Polícia, de maneira fundamentada e nos termos do § 6º da Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013, procederá ao indiciamento do investigado, decidindo, observadas as regras da Lei nº 12.037, de 1º de outubro de 2009, sobre a identificação criminal pelo processo datiloscópico.
§1º O ato de indiciamento deverá ser precedido de despacho fundamentado, no qual o Delegado de Polícia que preside a investigação pormenorizará, com base nos elementos informativos e probatórios coligidos, a tipificação provisória atribuída ao fato e os motivos da sua convicção.
E o regulamento não para por aí, dispondo, ademais, sobre o “indiciamento indireto” (aquele formalizado quando o indiciado não é localizado), bem como sobre a hipótese de “desindiciamento”, que implica na desconstituição do ato por determinação do Delegado de Polícia.
Ocorre que, em nosso sentir, este importante instituto ligado às atividades de Polícia Judiciária ainda carece de um regulamento mais aprofundado, especialmente por traduzir as conclusões das Autoridades Policiais no comando de investigações penais, permitindo, assim, a qualificação das estatísticas criminais e um maior controle sobre a eficiência das apurações.
Mas para uma melhor compreensão do que queremos dizer é imprescindível que se apresente um breve conceito de indiciamento. Trata-se, em nosso entendimento, do ato pelo qual o Delegado de Polícia expõe, mediante análise técnico-jurídica dos fatos e provas apurados por meio de investigação, as suas conclusões sobre autoria e materialidade delituosa, indicando, em decisão fundamentada, as razões pelas quais ele entende que o indiciado concorreu para a prática de uma infração penal, permitindo, consequentemente, a qualificação do seu direito de defesa.
Percebe-se, portanto, que o indiciamento é um instrumento que assegura direitos e garantias constitucionais, servindo para legitimar as conclusões do Delegado de Polícia em sede de inquérito policial, promovendo, outrossim, os princípios da publicidade, do contraditório e da ampla defesa.
Sobre a importância do indiciamento no cenário jurídico, vale a pena reproduzir o escólio do Ministro Celso de Mello:
Inquestionável reconhecer, em função do que se vem de expor, que assume significativo relevo o indiciamento no modelo que rege, em nosso País, o sistema de investigação penal pela Polícia Judiciária, considerada a circunstância – juridicamente expressiva – de que o indiciamento, que não se reduz à condição de ato estatal meramente discricionário, supõe, para legitimar-se em face do ordenamento positivo, a formulação, pela autoridade policial (e por esta apenas), de um juízo de valor fundado na existência de elementos indiciários idôneos que deem suporte à suspeita de autoria ou de participação do agente na prática delituosa (STF, HC 133.835/DF, Rel. Min. Celso de Mello, 18.04.2016 - grifamos).
Feitas essas considerações, neste estudo o nosso objetivo é defender a observância do princípio da presunção de inocência no momento da decisão de indiciamento, notadamente sob a perspectiva do “in dubio pro reo”. Isso porque uma das consequências do indiciamento é a formalização do Boletim de Identificação Criminal, que servirá como base de dados para o Estado referente à prática de infrações penais, subsidiando consultas tanto pelas agências policiais quanto pelo Ministério Público e Poder Judiciário.
Mas esta é apenas uma das consequências jurídicas do indiciamento, pois este ato também pode inviabilizar a aquisição e posse de armas de fogo, além de tornar o indiciado mais suscetível às medidas cautelares durante a persecução penal, especialmente na hipótese de prisão preventiva para a garantia da ordem pública.
Por tudo isso, dentro de um modelo de investigação criminal constitucionalizada (Devida Investigação Criminal), onde o investigado é sujeito de direitos, é dever legal do Delegado de Polícia fundamentar a sua decisão de indiciamento, demonstrando, empírica e dogmaticamente, a carga probatória que respalda as suas conclusões.
Registre-se, todavia, que para a formalização do indiciamento não se exige um juízo de certeza ou de ausência de dúvida razoável, como ocorre no processo penal. Nas lições de Helio Tornaghi, indício “é o fato conhecido e provado que, tendo relação com o fato probando, permite, por meio de um raciocínio lógico-dedutivo, que se conclua algo sobre ele”.2 Com efeito, neste ato a Autoridade Policial deve realizar um juízo de probabilidade, demonstrando que as fontes de prova identificadas na investigação induzem à conclusão sobre a autoria.
Nesse cenário, deve ser feita uma análise sobre o conjunto probatório, verificando-se se os elementos coligidos durante a investigação permitem um juízo de probabilidade de autoria e não apenas um juízo de possibilidade. Considerando que “indício” é um fato provado e que conduz a uma determinada conclusão sobre o crime investigado, no momento do indiciamento deve ser avaliado se os indícios identificados são todos convergentes, constituindo, destarte, o necessário juízo de probabilidade.
Não se pode olvidar, ademais, que para a decisão de indiciamento o standard probatório deve ser qualificado, tendo aptidão para demonstrar, em um grau mais elevado de certeza, a autoria do crime perscrutado. É, justamente, sobre a análise do conjunto indiciário que deve ser observado o princípio do in dubio pro reo, não se admitindo, como sustentam algumas vozes no meio acadêmico, o chamado princípio do in dubio pro societate no momento do indiciamento, respeitando, assim, o estado constitucional de inocência.
À luz do caso concreto caberá ao Delegado de Polícia avaliar se os indícios constatados durante a investigação permitem um juízo de probabilidade acerca da autoria, pois é este o standard probatório exigido para o indiciamento. Se a qualidade indícios não for suficiente para tal conclusão, ensejando dúvidas sobre o status de provável autor, a decisão deverá ser pelo não indiciamento (in dubio pro reo).
Com a finalidade de ilustrar o nosso entendimento, nos socorremos de um exemplo prático. Imagine que TÍCIO foi surpreendido pela Polícia Rodoviária na condução de veículo automotor em aparente estado de embriaguez. Feito o exame do etilômetro, vulgarmente conhecido como “bafômetro”, seu estado etílico foi confirmado, constatando-se a presença de 0,5 miligrama de álcool por litro da ar alveolar. Contudo, as testemunhas ouvidas não apontaram qualquer sinal de embriaguez e o exame clínico realizado pelo médico legista indicou que o suspeito não estava com a sua capacidade psicomotora alterada.
Note-se que no caso em análise nós temos um conflito entre os elementos probatórios coligidos. O etilômetro, nos termos do artigo 306, do CTB, demonstra a embriaguez, mas os depoimentos das testemunhas e o exame clínico indicam o contrário. Nesse contexto, é inegável que a divergência entre as provas gera um estado de dúvida sobre autoria e materialidade do crime, não alcançando o standard probatório exigido para o indiciamento do investigado.
Existe a possibilidade (indício) de que TÍCIO esteja embriagado? Existe, sem dúvidas! Mas com base no conjunto probatório pode-se dizer que é provável que ele esteja embriagado? Parece-me que a divergência entre os indícios apurados dá margem para dúvidas sobre a probabilidade da embriaguez e, portanto, in dubio pro reo. TICÍO não deverá ser indiciado!
Valendo-nos de outro exemplo prático, agora em sentido contrário, imagine que MÉVIO foi detido com diversas notas de cinquenta reais aparentemente falsas, o que caracterizaria o crime de Moeda Falsa, previsto no artigo 289, do CP. Em tais situações o exame pericial é imprescindível para se constatar a materialidade do crime, comprovando a falsidade das notas apreendidas.
Entretanto, no caso concreto verificou-se que as notas suspeitas apresentavam o mesmo número de série, sugerindo, de maneira indiciária, a sua falsidade, pois cada nota tem um número específico que a identifica (fato real e inquestionável). Logo, pode-se concluir que o material apreendido provavelmente seja falso, justificando, assim, a prisão em flagrante e o consequente (e necessário) indiciamento de MÉVIO.
Como se pode perceber, existe um juízo de probabilidade para o indiciamento sempre que as provas indiciárias forem significativas e convergentes. Se, todavia, os indícios divergirem ou se mostrarem insuficientes, haverá dúvidas sobre a probabilidade da autoria, observando-se, em tais situações, o princípio do in dubio pro reo, notadamente como regra de tratamento que impede que o investigado seja indiciado.
Notas
1Para um estudo mais qualificado do Indiciamento Policial, recomendamos o nosso: Delegado de Polícia e o Direito Criminal – Teoria Geral do Direito de Polícia Judiciária. ed. Mizuno, 2025.
2TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. ed.6. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 452.