A proposta de um novo Código Eleitoral, atualmente em discussão no Senado Federal (PLP 112/2021), representa um marco relevante para a sistematização da legislação eleitoral brasileira.
Trata-se de uma iniciativa que visa consolidar normas hoje dispersas em diversas leis, entre elas o atual Código Eleitoral, a Lei das Eleições, a Lei dos Partidos Políticos, a Lei de Inelegibilidades e legislações sobre plebiscitos, referendos, iniciativas populares e violência política contra a mulher.
Com 898 artigos, o substitutivo traz propostas que tocam praticamente todos os aspectos do processo eleitoral: do registro de candidaturas à prestação de contas, passando por propaganda, financiamento, auditoria das urnas e punições por ilícitos.
Modernização necessária, mas com cautela
Como advogada eleitoralista, reconheço a importância da modernização e da uniformização das normas. No entanto, é preciso cautela. Nem todas as propostas representam avanços democráticos ou aperfeiçoamento do sistema. Algumas mudanças trazem riscos reais de retrocesso, especialmente no tocante à transparência, isonomia e fiscalização efetiva das eleições.
Avanços importantes
Destaco, entre os pontos positivos:
A regulamentação mais detalhada da auditoria das urnas eletrônicas, com previsão de participação de universidades e entidades da sociedade civil — um ganho para a confiabilidade do processo.
A reserva de 20% das vagas legislativas para mulheres, uma inovação importante para a promoção da paridade de gênero na política.
Preocupações com a cota de gênero
Contudo, há preocupações justificáveis. A flexibilização da punição aos partidos que não cumprirem a cota de gênero nas candidaturas, ainda que temporária, pode desestimular o cumprimento voluntário dessa obrigação legal.
É ótimo ter uma reserva de cadeiras, mas se aliviarmos a fiscalização e as sanções nas candidaturas, podemos minar a própria base que dá suporte a essa nova política.
Fragilização no controle das contas partidárias e recursos públicos
Também merece atenção a proposta de tornar a prestação de contas partidária um processo predominantemente administrativo, com sanções limitadas a multas. Isso pode enfraquecer os mecanismos de controle externo e comprometer a efetividade do sistema de responsabilização dos partidos políticos.
Além disso, inicialmente preocupou a possibilidade de utilização de recursos do Fundo Partidário para pagamento de multas eleitorais — medida que poderia estimular a prática de ilícitos com o respaldo do financiamento público. No entanto, diante das críticas e do posicionamento de especialistas, essa previsão vem sendo revista pelo Senado Federal.
Prazos de desincompatibilização e recursos públicos
Outro ponto que merece reflexão é a mudança nos prazos de desincompatibilização. A uniformização para 2 de abril pode ser positiva em termos de organização, mas a exigência de afastamento de quatro anos para membros do Ministério Público, policiais e militares exige discussão mais aprofundada, dada sua intensidade e impacto.
A uniformização da data pode trazer organização ao processo, mas a imposição de um afastamento tão longo a algumas categorias pode gerar exclusão indevida e redução da pluralidade nas eleições.
Ampliação da autonomia partidária
A proposta também reforça substancialmente a autonomia partidária — princípio já previsto na Constituição, mas que agora se vê alargado e protegido com ainda mais vigor.
O texto confere aos partidos liberdade quase absoluta para tratar de questões internas, como filiação, estrutura organizacional, escolha de candidatos e estratégias eleitorais, vedando inclusive a renúncia dessa autonomia em favor de instituições externas.
Embora essa ampliação da autonomia partidária seja defendida como elemento essencial ao pluralismo político e à democracia, ela acende um alerta quanto ao enfraquecimento da fiscalização estatal e do controle jurisdicional sobre práticas antidemocráticas no interior das agremiações.
A concentração de poderes nas cúpulas partidárias, somada ao expressivo volume de recursos oriundos dos Fundos Eleitoral e Partidário, impõe o dever de responsabilidade e transparência, sob pena de comprometer a isonomia do pleito e a credibilidade do sistema.
O papel da advocacia especializada
Nesse contexto, a atuação da advocacia especializada em Direito Eleitoral revela-se indispensável para equilibrar a tensão entre autonomia e responsabilidade, garantindo que os partidos atuem com liberdade, mas também dentro dos limites constitucionais e legais.
Participação social e debate técnico
Diante de tantas mudanças, muitas das quais com impactos estruturais, é fundamental que o debate seja ampliado e qualificado.
O Senado, acertadamente, adiou a votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para a realização de audiências públicas. Trata-se de uma medida essencial para que especialistas, entidades da sociedade civil, magistrados, membros do Ministério Público e da advocacia possam contribuir com suas experiências técnicas.
Conclusão
Reformas eleitorais são bem-vindas. A estabilidade do sistema, porém, exige que cada proposta seja analisada com o devido rigor. Não se trata apenas de legislar sobre eleições, mas de garantir um processo eleitoral legítimo, equilibrado e comprometido com a democracia.
O novo Código Eleitoral pode representar um avanço histórico. Mas, para isso, deve refletir não apenas a vontade política, e sim o compromisso institucional com um processo eleitoral moderno, inclusivo e verdadeiramente republicano.
Afinal, precisamos de Justiça nas regras, equidade na disputa e compromisso com a coletividade, não com os “donos do poder”.