5. DANO MORAL
A indenização por dano moral decorrente do abandono afetivo é uma construção recente e ainda em processo de consolidação no âmbito do Direito de Família e da Responsabilidade Civil.
A lesão moral, nesse contexto, pode manifestar-se de diversas formas, como sentimentos de rejeição, sofrimento psíquico, humilhação e até a perda do sentido existencial. Quando esses impactos se revelam intensos e duradouros, ultrapassam o mero aborrecimento cotidiano, configurando um dano moral passível de reparação.
É fundamental destacar que o reconhecimento do dano moral no abandono afetivo inverso – ou seja, aquele praticado pelos filhos em relação aos pais – reflete o entendimento de que, embora o afeto não seja juridicamente exigível, o cuidado e o amparo são, especialmente no seio das relações familiares.
Assim, a omissão dos filhos no cumprimento de seu dever legal e moral de cuidar dos pais pode, sim, ensejar responsabilidade civil, desde que comprovado o sofrimento profundo e injusto experimentado pelo idoso.
Portanto, a reparação por esse tipo de dano moral possui caráter não apenas compensatório, visando atenuar o sofrimento da vítima, mas também pedagógico e preventivo, funcionando como um alerta para que o ofensor não reincida em conduta tão lesiva.
Colhe-se, da obra “Novo Curso de Direito Civil – Responsabilidade Civil”, de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, a seguinte passagem, que se revela especialmente pertinente ao tema em questão.
“A afetividade, enquanto valor jurídico, impõe aos membros da família o dever de solidariedade, cuidado e assistência mútua. A omissão grave e injustificável desses deveres, quando causadora de sofrimento psíquico, pode configurar ilícito civil passível de reparação por dano moral.”
— GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
Nesse sentido, a evolução da doutrina e da jurisprudência aponta para uma necessária ampliação da proteção jurídica à pessoa idosa, sobretudo diante da crescente realidade de abandono familiar. Esse movimento reafirma o papel da afetividade como expressão concreta dos deveres familiares e promove uma consciência jurídica mais sensível à importância da solidariedade intergeracional.
6. A JURISPRUDÊNCIA NO ABANDONO AFETIVO INVERSO
A jurisprudência brasileira tem avançado na responsabilização civil por abandono afetivo tradicional (de pais em relação a filhos), mas ainda atua com cautela nos casos de abandono afetivo inverso (de filhos em relação a pais), por receio de banalização do tema. Essa postura, embora prudente, acaba por desconsiderar princípios constitucionais e legais, ao exigir prova quase absoluta da omissão e do sofrimento do idoso.
A responsabilização, porém, não se baseia na obrigatoriedade do afeto, mas na omissão injustificada do dever legal de cuidado, cujo impacto pode ser profundamente prejudicial ao bem-estar emocional do idoso. Exigir prova inequívoca do desamor, enquanto se presume o afeto, gera um desequilíbrio probatório incompatível com a solidariedade familiar prevista em lei.
Nesse sentido, é pertinente mencionar o Acórdão 1746756 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), cujos fundamentos podem ser aplicados, por analogia, às situações de abandono afetivo inverso, especialmente no que diz respeito ao dever de prestação de alimentos entre ascendentes e descendentes:
DIREITO CONSTITUCIONAL, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS. PENSÃO ALIMENTÍCIA EM FAVOR DE ASCENDENTE. GENITOR IDOSO COM SAÚDE FRAGILIZADA. SUPOSTO ABANDONO AFETIVO PRETÉRITO PELO PAI. NÃO EXONERAÇÃO DOS FILHOS DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR. PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR. DIREITO FUNDAMENTAL. APLICAÇÃO. BINÔMIO NECESSIDADE E POSSIBILIDADE. DEVER DE OBSERVÂNCIA. VALOR FIXADO. ADEQUAÇÃO. REDUÇÃO. NÃO CABIMENTO. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. SENTENÇA MANTIDA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.MAJORAÇÃO. 1. O dever de mútua assistência entre ascendentes e descendentes é uma garantia fundamental consagrada no art. 229 da Constituição Federal. À luz desse preceito constitucional, princípio da solidariedade familiar, os alimentos podem ser requeridos reciprocamente entre pais e filhos. 2. Na concepção da jurisprudência a alegação de suposto abandono afetivo pretérito pelo genitor, por si só, não constitui óbice para eximir os descendentes de prestar alimentos ao pai na velhice, por se tratar de uma obrigação emoldurada no princípio da solidariedade familiar que é um direito fundamental salvaguardado pela Constituição Federal (art.229 da CF). 3. Em conformidade com a norma do § 1º, do art. 1.694 do Código Civil, na fixação de alimentos deve ser considerado o binômio necessidade/possibilidade, a fim de que o alimentando receba o necessário para garantir a própria subsistência e o alimentante não seja obrigado a arcar com prestações superiores às suas forças contributivas. 4. Ausentes elementos probatórios robustos que demonstrem a incapacidade de os Alimentantes arcarem com o valor da obrigação alimentícia fixada na sentença, a redução da prestação alimentar não merece acolhimento. 5. Recurso de apelação conhecido e desprovido. Majoração dos honorários advocatícios.
(Acórdão 1746756, 0718225-05.2021.8.07.0007, Relator(a): ROBERTO FREITAS FILHO, 3ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 17/08/2023, publicado no DJe: 15/09/2023.).
Em suma, a decisão supracitada decorre de ação de alimentos ajuizada por genitor idoso em face de suas filhas, tendo como pano de fundo a fragilidade de saúde do autor e a ausência de recursos próprios para sua subsistência. O recurso de apelação foi interposto pelas rés, descendentes, que buscaram a redução da pensão alimentícia fixada na sentença, alegando, entre outros pontos, suposto abandono afetivo por parte do pai no passado.
O TJDFT firmou o entendimento de que o dever de prestação de alimentos entre pais e filhos é recíproco e possui natureza de direito fundamental, nos termos do artigo 229 da Constituição Federal. Esse dispositivo constitucional estabelece a mútua responsabilidade entre ascendentes e descendentes no amparo recíproco, especialmente quando um dos pólos da relação se encontra em situação de vulnerabilidade, como é o caso do genitor idoso.
Outrossim, o acórdão destacou que o princípio da solidariedade familiar é norteador das relações entre parentes, e que a obrigação alimentar está amparada por esse princípio. Em situações em que o genitor está em condição de necessidade, como idade avançada e saúde debilitada, os filhos têm o dever jurídico de prestar assistência material, independentemente da existência de vínculos afetivos harmônicos ou passados de abandono emocional.
A tese defensiva das rés se sustentou, em parte, na alegação de abandono afetivo anterior praticado pelo pai. O Tribunal rechaçou esse argumento, consignando que a existência de abandono afetivo, ainda que verificada, não exonera os filhos da obrigação alimentar, pois esta decorre de norma constitucional e infraconstitucional de ordem pública, que visa à preservação da dignidade da pessoa humana e da assistência entre familiares.
Portanto, este julgamento representa um marco importante na consolidação do entendimento de que o dever de assistência familiar possui natureza objetiva e independe da qualidade da relação afetiva entre os envolvidos. A jurisprudência, embora ainda em processo de consolidação quanto ao abandono afetivo inverso, caminha no sentido de reconhecer a omissão dolosa ou culposa como fato gerador de responsabilidade civil, afirmando o valor jurídico da afetividade como expressão concreta dos deveres familiares.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fenômeno do abandono afetivo inverso, representa uma das faces mais sensíveis e desafiadoras do Direito de Família contemporâneo. Em uma sociedade marcada pelo envelhecimento populacional e pelo enfraquecimento de laços intergeracionais, torna-se urgente refletir sobre os deveres decorrentes das relações familiares, especialmente no que se refere ao cuidado, à assistência e ao amparo mútuo.
Ainda que o afeto, enquanto sentimento, não seja juridicamente exigível, os deveres dele decorrentes encontram respaldo normativo sólido no ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição Federal consagra a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o princípio da solidariedade familiar (art. 3º, I) e impõe aos filhos o dever de amparo aos pais na velhice, carência ou enfermidade (art. 229). Esses comandos ganham concreção nos artigos 1.694 e seguintes do Código Civil e, de forma ainda mais específica, no Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003), que reafirma o dever de cuidado como uma obrigação jurídica e não meramente moral.
A responsabilidade civil por abandono afetivo inverso insere-se, assim, em uma nova lógica jurídica: a da afetividade como valor jurídico e vetor interpretativo das obrigações familiares.
É preciso, portanto, superar o receio de uma suposta “judicialização dos sentimentos” e compreender que a responsabilização civil, nesse contexto, não busca compelir o amor, mas garantir o cumprimento de deveres mínimos de convivência, respeito e proteção. Quando esses deveres são reiteradamente violados e causam sofrimento aos pais, principalmente em situações de vulnerabilidade, a reparação do dano moral mostra-se não apenas legítima, mas necessária.
Assim, conclui-se que o reconhecimento do abandono afetivo inverso como gerador de responsabilidade civil representa um avanço no processo de constitucionalização do Direito Privado, promovendo a justiça intergeracional e reafirmando a dignidade da pessoa idosa como valor central na ordem jurídica brasileira.
REFERÊNCIAS
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TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 326.
THE CIVIL LIABILITY OF CHILDREN FOR REVERSE AFFECTIVE ABANDONMENT
Abstract: This study aims to analyze the possibility of holding children civilly liable for the emotional abandonment of elderly parents, with an emphasis on the legal and moral obligations involved. This is a subject that is not widely regarded today, despite being quite recurrent and representing a real social problem that affects many elderly people. If it is the family that is expected to exercise the duty of care towards parents, what is the civil liability of those who abandon their elderly parents?! It is essential to conduct an in-depth investigation to ensure comprehensive protection and establish adequate legal support for elderly people exposed to these conflicts. This research uses the deductive method, with a qualitative approach, based on a bibliographic review and analysis of case law on the subject. Relevant legislation is examined, such as the Federal Constitution, Civil Code, and Elderly Statute, in order to support the thesis of holding children civilly liable. The article addresses the concept of family from a historical and constitutional perspective, highlighting the principles of affection, family solidarity, and human dignity, with a specific focus on the relationship with the elderly.
Key Words: Emotional abandonment. Moral damage. Children. Elderly. Civil liability.