4. Reações institucionais: direito, psiquiatria e religião diante do fenômeno reborn
Diante do crescimento do fenômeno dos bebês reborn e das solicitações para batismo simbólico, registros civis fictícios e outras práticas que emulam a parentalidade real, diferentes instituições começaram a se posicionar. Ainda que de forma tímida ou fragmentada, o sistema jurídico, a medicina psiquiátrica e as instituições religiosas vêm sendo desafiadas a lidar com os contornos éticos, simbólicos, sociais e emocionais dessas práticas. Este tópico analisa como essas instâncias reagem à crescente demanda por reconhecimento simbólico dos reborns e quais limites ou orientações estão sendo delineadas diante de um fenômeno que flutua entre arte, terapia, vício e fé.
4.1. O direito civil e o impasse do registro simbólico: ausência de personalidade jurídica e seus reflexos legais
No campo do direito, o pedido de registro civil de bebês reborn vem sendo alvo de atenção esporádica, especialmente após relatos de tentativas frustradas de pais e mães simbólicos que buscaram cartórios para obter certidões de nascimento fictícias para suas bonecas. Ainda assim, há registros de cartórios que aceitaram, de modo informal ou por erro, emitir “certidões de nascimento decorativas” sem valor legal, o que gerou confusão pública e críticas do meio jurídico.
Esse vácuo normativo — entre a demanda simbólica e os limites jurídicos — evidencia um campo de tensão entre o afeto e a norma. Muitos cuidadores de reborns afirmam que a certidão não tem propósito legal, mas sim emocional, servindo como elemento terapêutico ou de simbolização do vínculo. A prática, porém, pode gerar desinformação jurídica, sobretudo quando há cobrança financeira pela “emissão” desses documentos por instituições privadas. Isso levanta questionamentos éticos: pode-se cobrar por um documento que se assemelha a um oficial, mesmo sem validade? Há risco de fraude emocional ou mesmo de engano intencional?
Além disso, o uso de certidões simbólicas pode gerar constrangimentos em serviços públicos e privados. Relatos de pessoas que tentaram incluir bebês reborn em planos de saúde, ou que compareceram a hospitais ou creches simulando ser mães dos bonecos, acenderam alertas sobre a fronteira entre o simbólico e o patológico. Juristas destacam que, embora a liberdade de expressão permita práticas simbólicas, há limites quando tais práticas tentam acessar direitos reais com base em ficções. O debate é novo, e falta regulamentação que delimite claramente o que é permitido como expressão emocional e o que configura deturpação do sistema jurídico.
O fenômeno também desafia o campo do Direito das Famílias, ao suscitar questões como o uso de sobrenomes, responsabilidade afetiva, herança simbólica e até testamentos que incluem reborns como “destinatários” de bens, o que, juridicamente, não tem respaldo, mas psicologicamente revela a força do vínculo afetivo que se cria.
4.2. A psiquiatria e os sinais de alerta: quando o vínculo simbólico com reborns ultrapassa os limites da saúde mental
A psiquiatria tem observado com atenção o crescente número de pessoas que desenvolvem vínculos intensos com reborns, especialmente quando esses vínculos passam a substituir relações reais ou interferir na funcionalidade social. Embora o uso de reborns possa ter fins terapêuticos legítimos — como no luto perinatal, na infertilidade ou em casos de transtorno de apego —, profissionais de saúde mental alertam para situações em que esse uso torna-se crônico, compulsivo ou dissociativo.
Casos clínicos relatam sintomas como isolamento social, ruptura com familiares, negação persistente da realidade (especialmente de perdas gestacionais não elaboradas) e comportamentos que simulam maternidade em todas as suas dimensões, com rigidez de rotinas e recusa a reconhecer a natureza inanimada do reborn. Psiquiatras associam tais quadros, em certos contextos, a Transtornos Dissociativos, Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e, em casos extremos, a episódios psicóticos breves.
O alerta da psiquiatria não é contra os reborns em si, mas contra o uso desmedido, não supervisionado e incentivado por comunidades virtuais que romantizam a prática sem critérios técnicos. O acolhimento da dor é fundamental, mas os especialistas apontam que, em vez de enfrentar a perda ou a ausência, algumas pessoas passam a viver exclusivamente em torno do reborn, construindo uma realidade paralela com impacto funcional significativo.
Psicólogos também relatam aumento de procura por atendimento por parte de familiares preocupados com pessoas que desenvolveram vínculo obsessivo com bonecas, inclusive com quadros de depressão agravados por frustrações envolvendo esses “filhos simbólicos”. O reborn deixa, assim, de ser um instrumento terapêutico para se tornar um objeto de fixação psíquica.
A psiquiatria defende que o uso dos reborns, quando indicado, deve ocorrer sob supervisão terapêutica, com acompanhamento psicológico constante e estratégias claras para não fomentar a substituição de vínculos humanos reais. O reconhecimento dos limites entre o lúdico, o afetivo e o clínico é essencial para prevenir danos emocionais de longa duração.
Do ponto de vista clínico, especialistas enfatizam a importância do diagnóstico precoce e da abordagem multidisciplinar, que inclui psicoterapia, acompanhamento psiquiátrico e, em casos necessários, medicação. A compreensão empática do sofrimento por trás do apego ao reborn é fundamental para construir um plano terapêutico que respeite a subjetividade do paciente, sem reforçar delírios ou negá-los, mas promovendo gradualmente a retomada do contato com a realidade.
4.3. As religiões e o batismo simbólico: o sagrado, a representação e os limites da fé institucional
No campo religioso, o fenômeno dos batismos de bebês reborn tem gerado perplexidade, debates internos e, em alguns casos, recusas explícitas. Há registros em redes sociais de pessoas que solicitaram o batismo de seus reborns em igrejas católicas e evangélicas, e, diante da negativa dos líderes religiosos, optaram por realizar “cerimônias particulares” em casa, com água benta, padrinhos e até registros simbólicos em papel. Tais eventos, embora não reconhecidos oficialmente, ganham ampla repercussão online, o que força as religiões a se posicionarem.
A Igreja Católica, por meio do direito canônico, exige que o batismo seja ministrado em uma pessoa viva, dotada de alma e em comunhão com a fé cristã (Cânones 849 e seguintes). Logo, não há qualquer possibilidade de batismo válido ou lícito de bonecos, sejam eles simbólicos ou não. No entanto, há também setores pastorais que compreendem o gesto como uma expressão de dor não elaborada e defendem o acolhimento pastoral, sem sacramento, mas com escuta e bênção à pessoa que busca o consolo.
Igrejas evangélicas, por sua vez, têm reagido de formas diversas. Alguns pastores se posicionam radicalmente contra, afirmando que isso constitui idolatria ou distorção da fé. Outros líderes demonstram mais flexibilidade, interpretando o desejo de batizar reborns como sintoma de carência afetiva que precisa ser acolhida, não reprimida. Há inclusive “cultos simbólicos” online organizados por comunidades de mães reborn, com bênçãos coletivas e palavras de consolo dirigidas às “famílias simbólicas”.
A tensão entre fé e fantasia é visível. Para teólogos, o batismo simbólico de um reborn não apenas não possui validade espiritual, mas também compromete a seriedade dos rituais e pode confundir pessoas em situação de vulnerabilidade. Por outro lado, há quem defenda que a dimensão ritual pode ter função terapêutica mesmo fora do reconhecimento oficial, servindo como rito de passagem simbólico para quem perdeu um filho ou nunca conseguiu gestar.
A discussão religiosa revela, portanto, os limites entre fé institucional e práticas populares de consolo. A espiritualidade que se forma em torno dos reborns é menos dogmática e mais emocional, mas isso não a torna menos intensa. O desafio das igrejas está em oferecer respostas pastorais que não sejam rígidas nem permissivas, acolhendo o sofrimento sem validar fantasias que possam comprometer a saúde mental ou a fé autêntica.
5. Considerações bioéticas e os desafios contemporâneos à fronteira entre humano e simbólico
A expansão do fenômeno dos bebês reborn nas últimas décadas impõe ao campo da bioética um conjunto novo e delicado de reflexões. Trata-se de um desafio que vai além da tecnologia ou da estética: estamos diante de uma prática que tensiona as noções de humanidade, subjetividade, cuidado, autonomia e identidade. Os bonecos deixaram de ser apenas objetos de arte ou peças terapêuticas para ocupar um espaço simbólico profundo na vida de milhares de pessoas, especialmente mulheres adultas, que os tratam como filhos, muitas vezes com vínculos emocionais tão intensos quanto os dirigidos a seres humanos reais. Nesse contexto, a bioética é chamada a refletir sobre os limites morais, sociais e existenciais dessa simulação da maternidade e da infância, bem como sobre os possíveis efeitos individuais e coletivos de tal prática.
O primeiro dilema bioético envolve o uso terapêutico dos reborns, especialmente em contextos de luto perinatal, infertilidade, transtornos do apego ou condições neurológicas como Alzheimer. Em alguns casos, psicólogos e terapeutas utilizam os bonecos como instrumentos simbólicos para resgatar memórias, promover conforto ou elaborar perdas. A ética do cuidado permite tais práticas, desde que realizadas com acompanhamento, consentimento informado e objetivos claramente definidos. No entanto, quando o reborn é introduzido sem mediação terapêutica e passa a ser o único vínculo afetivo da pessoa — ou quando a boneca substitui relações reais com humanos —, a bioética acende um sinal de alerta. A autonomia psíquica, base do princípio da dignidade humana, pode estar sendo comprometida por mecanismos de negação da realidade, fuga do sofrimento e criação de mundos paralelos onde o sujeito perde a distinção entre ficção e vida.
O segundo dilema diz respeito ao uso comercial e ao incentivo ao consumo afetivo, pois há um mercado robusto de reborns que movimenta milhares de reais por unidade, com custos que podem ultrapassar o salário mínimo. Artistas especializados vendem não apenas bonecos, mas enxovais completos, carrinhos de bebê, chupetas, fraldas e até certidões de nascimento simbólicas — e alguns sites e redes sociais promovem esses produtos com forte apelo emocional, estimulando que seus compradores “adotem” um filho e criem vínculos de cuidado. A bioética questiona até que ponto tal comercialização instrumentaliza a carência afetiva de pessoas vulneráveis. Quando a dor, o isolamento ou a carência emocional são transformados em lucro, o risco de exploração simbólica se aproxima do que autores como Axel Honneth chamariam de “violação do reconhecimento”.
O terceiro eixo de reflexão bioética envolve o impacto das práticas simbólicas na percepção coletiva da infância, da maternidade e do humano. Ao aceitar que bonecos sejam batizados, registrados simbolicamente ou tratados com direitos afetivos, há um deslocamento do eixo do cuidado — que passa a recair sobre um objeto inanimado, enquanto crianças reais, muitas vezes em situação de risco, continuam invisíveis aos olhos sociais. Esse paradoxo ético denuncia uma possível anestesia moral: gasta-se tempo, dinheiro e emoção em bonecos, enquanto seres humanos vivos sofrem abandono. A simbologia do reborn, nesse caso, pode estar revelando um narcisismo social que prefere a fantasia do cuidado idealizado à complexidade da relação humana real, com suas frustrações, exigências e imperfeições.
Outro ponto crucial diz respeito à simbiose entre redes sociais e o universo reborn , com a construção de perfis dedicados a essas “crianças” artificiais, vídeos de rotina (como alimentação, banho e consultas médicas fictícias), postagens de aniversários simbólicos e a construção de narrativas que confundem realidade e ficção. A ética digital deve intervir nesse campo, alertando para os riscos de performatividade emocional, validação de quadros psíquicos problemáticos e reforço de comunidades que romantizam patologias. A exposição do reborn como “filho” não traz implicações legais diretas, mas, eticamente, pode contribuir para a perpetuação de estados dissociativos que, em vez de curar, aprofundam o sofrimento psíquico.
Por fim, a bioética contemporânea não pode ignorar os efeitos simbólicos do reconhecimento institucional (ou da ausência dele). A ausência de uma regulação clara sobre o que pode ou não ser aceito como prática simbólica institucionalizada (como certidões, batismos ou rituais de luto simbólico) cria um vácuo perigoso: se por um lado é preciso respeitar o direito ao luto e à subjetividade, por outro, a institucionalização de fantasias pode fragilizar os limites da realidade. A bioética propõe, assim, uma via de escuta e orientação, e não de repressão ou ridicularização. O cuidado com o outro — especialmente com o que sofre — exige empatia, mas também discernimento, para que o consolo não se transforme em prisão simbólica.
Em suma, os bebês reborn desafiam profundamente a fronteira entre o humano e o simbólico, entre a dor e a fantasia, entre o consolo e a alienação. A bioética deve atuar como um campo de diálogo entre os saberes — jurídico, clínico, religioso, cultural —, orientando respostas sensíveis e responsáveis diante de um fenômeno que fala menos sobre bonecas e mais sobre as ausências emocionais de uma era marcada pela solidão e pelo desejo desesperado de amor.
6. Conclusão
O fenômeno dos bebês reborn transcende a mera curiosidade ou um simples hobby, configurando-se como um complexo fenômeno social, psicológico, cultural e bioético que desafia as fronteiras tradicionais entre o simbólico e o real, entre o humano e o objeto. Ao longo deste estudo, foi possível perceber que o vínculo afetivo com os reborns não é apenas um ato de cuidado ou uma expressão artística, mas um sintoma profundo de necessidades emocionais que refletem, em grande medida, as transformações e fragilidades da contemporaneidade. A bioética, ao confrontar esses desafios, propõe um diálogo entre diferentes saberes, buscando equilibrar o respeito à subjetividade e às demandas emocionais com a necessidade de manter os limites da realidade e da dignidade humana.
No âmbito jurídico, a tentativa de registrar ou batizar bebês reborn revela uma crise nos parâmetros legais tradicionais. O esforço por atribuir status civil a um objeto simbólico evidencia a dimensão do sofrimento subjetivo e da busca por pertencimento e identidade, mas também impõe ao Direito uma reflexão crítica sobre seus limites. Embora o sistema jurídico não reconheça os reborns como sujeitos de direitos, os debates refletem a necessidade de políticas públicas e atendimento psicossocial que acolham essas expressões, evitando patologização ou negligência.
Os alertas da psiquiatria reforçam a necessidade de um olhar clínico atento e humanizado para as pessoas que desenvolvem vínculos intensos com os reborns, especialmente quando essas relações substituem ou dificultam a construção de vínculos humanos reais. O apego aos bebês reborn pode ser compreendido como um mecanismo de enfrentamento, mas também como um sinal de possíveis transtornos mentais que exigem diagnóstico e tratamento adequados. A validação social e digital dessas práticas pode tanto amparar como aprofundar o distanciamento da realidade, sendo imprescindível que profissionais de saúde mental, familiares e comunidades estejam preparados para intervir com empatia e conhecimento técnico.
A análise desse fenômeno revela a urgência de políticas públicas integradas que promovam o acesso a serviços de saúde mental qualificados, a educação emocional e a inclusão social, buscando prevenir que as pessoas vulneráveis se refugiem em vínculos simbólicos disfuncionais. A psiquiatria aponta que o fenômeno dos bebês reborn reflete demandas emocionais e sociais mais amplas, como o aumento da solidão, a dificuldade de lidar com perdas, a crise das relações familiares e a busca por pertencimento em um mundo cada vez mais digital e fragmentado. Dessa forma, o alerta clínico não se limita ao controle do comportamento individual, mas convoca a sociedade para repensar as estruturas de apoio emocional e a valorização dos vínculos humanos reais, para que o cuidado não se perca no simulacro. O cuidado coletivo deve se expandir para abarcar essas novas formas de sofrimento e expressão, reconhecendo sua complexidade sem reduzi-las a simples excentricidades ou modismos.
O debate acerca dos bebês reborn é, em última análise, um convite para repensar as formas contemporâneas de afeto, identidade e pertencimento, buscando construir uma sociedade mais humana, inclusiva e sensível às dores invisíveis de seus membros.
Referências Bibliográficas
FONSECA, Márcia. O Simbólico e o Real na Clínica Psiquiátrica Contemporânea. São Paulo: Editora Perspectiva, 2019.
SOUZA, Ana Paula; LIMA, Carlos Eduardo. "Bebês Reborn e suas Implicações Psicológicas: Uma Revisão Crítica." Revista Brasileira de Psicologia, vol. 72, no. 3, 2022, pp. 215–234.
MARTINS, Joana; PEREIRA, Marcos. "A Legalidade do Registro Civil e o Reconhecimento do Status Jurídico em Novas Configurações Sociais." Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 15, 2023, pp. 45–68.
GONÇALVES, Renata; ALMEIDA, Thiago. "Cultura Digital, Redes Sociais e a Construção de Identidades: O Caso dos Bebês Reborn." Cadernos de Sociologia e Antropologia, vol. 40, no. 1, 2024, pp. 89–107.