Uma senhora recebe sua fatura com um valor indevido. Liga, espera, reclama, desliga. No mês seguinte, o erro persiste. No seguinte também. Quando decide ir ao Judiciário, ouve o veredito: “mero aborrecimento”.
Um aposentado acorda cedo, toma o ônibus lotado, atravessa a cidade para resolver um empréstimo consignado que nunca contratou. “Tem que voltar outro dia, senhor, só com agendamento”, diz o segurança. Meses depois, já com a metade da aposentadoria retida indevidamente, ele procura o Judiciário. A sentença? Mero aborrecimento. O senhor não sofreu mais do que os incômodos da vida em sociedade.
Ecoa nos Tribunais um entendimento em que ofensas não são negadas, mas simplesmente naturalizadas. Não se nega o erro do fornecedor. Não se contesta o transtorno do cidadão. Mas, temendo a “banalização do dano moral”, o Poder Judiciário fincou bandeira no campo oposto aos direitos dos cidadãos.
Já há algum tempo, consolidou-se na jurisprudência a doutrina do "mero aborrecimento", utilizada para distinguir, dentro da categoria dos danos morais, aquilo que efetivamente constitui lesão à dignidade da pessoa humana daquilo que se caracteriza apenas como um incômodo cotidiano da vida em sociedade.
A doutrina do “mero aborrecimento” é um verdadeiro caso de sucesso: ela reduz o volume de processos, desincentiva a litigância oportunista e otimiza os custos do sistema judicial. Tudo muito racional! Mas o efeito colateral é perverso: transforma o “infortúnio cotidiano”, o chamado “simples dissabor” em modelo de negócio!
Grandes empresas aprendem rápido: se descumprimentos contratuais, falhas ou atrasos na prestação de serviços, marketings abusivos ou mesmo cobranças indevidas, por serem inerentes à vida em sociedade, não geram condenação, ou quando geram, estão sujeitas a valores simbólicos, é mais rentável para elas internalizar os custos de eventuais defesas pontuais do que adequar procedimentos internos que lhes beneficiam economicamente e que são sabidamente lesivos a terceiros.
Se o Judiciário premia com impunidade a negligência, o descaso, a malícia e o dolo, a violação do infrator compensa e, assim, com tinta e toga, transforma-se danos em rotina e o desrespeito em norma!
Quando o Poder Judiciário nega reparações sob o pretexto de que o dano é trivial, ele educa a sociedade a tolerar o intolerável e se esquece que a responsabilidade civil não objetiva apenas compensar os lesados, mas “ensinar” que ninguém tem o direito de “aborrecer” os outros com método, lucro e reincidência.
É curioso que no direito de vizinhança o sossego é um bem jurídico digno de tutela, mesmo quando a perturbação é pontual. Mas quando a perturbação vem do mercado, um banco, uma operadora de plano de saúde, uma construtora, um fornecedor de serviços públicos essenciais etc., o discurso muda.
Não se pretende defender uma sensibilidade exacerbada, tampouco advogar a extinção da tese do “mero aborrecimento”, mas apenas chamar atenção dos julgadores para o efeito pedagógico da responsabilidade civil.
Na prática, hoje em dia, a aplicação acrítica da tese do “mero aborrecimento”, sobretudo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), penaliza o idoso mal atendido na fila do hospital, o trabalhador que perde a manhã tentando cancelar um serviço nunca contratado e premia as grandes empresas que a utilizam como estratégia e que perpetuam seu comportamento danoso no mercado, pois sabem que, apesar de ilícitas, suas práticas não gerarão a mínima indenização aos lesados.
Se os Tribunais não podem impedir que sejamos aborrecidos, também não deve legitimar o direito de aborrecer!