3. CRIMINOLOGIA MIDIÁTICA: INFLUÊNCIA DA MÍDIA NO DEVIDO PROCESSO LEGAL E REFLEXOS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
O alcance da mídia no devido processo legal é tema latente na seara do Direito Penal brasileiro, em que a exposição midiática vem impactando desde a formação da opinião pública até a condução de processos judiciais, afetando princípios fundamentais como a presunção de inocência, o contraditório e a imparcialidade judicial. Segundo Fleury et al. (2024), o fenômeno da criminologia midiática foi estudado por operadores do Direito e suscitou o debate sobre a necessidade de equilíbrio entre a liberdade de imprensa e a proteção dos direitos individuais dos acusados.
De acordo com Santos (2023, p. 12.945), é possível distinguir a criminologia midiática das demais correntes criminológicas para, a partir dessa diferenciação, compreender seus desdobramentos:
Enquanto outras formas de criminologia se concentram principalmente no estudo do crime, dos criminosos e do sistema de justiça criminal, a criminologia midiática enfoca o papel da mídia na representação e na influência da percepção do público sobre o crime e a justiça criminal. A criminologia midiática reconhece que a mídia é uma influência significativa na sociedade contemporânea e que a maneira como a mídia representa o crime e a justiça criminal pode ter um impacto substancial na opinião pública, na política criminal e no comportamento criminal. Portanto, a criminologia midiática não apenas complementa, mas também expande o escopo da criminologia, ao incorporar a análise da mídia e de suas práticas na compreensão do crime e da justiça criminal.
Daher; De Paiva; Barcellos (2022), Santos (2023) e Fleury et al. (2024) convergem na opinião de que a prática da criminologia midiática é extremamente perigosa e nociva, pois contribui para a construção de um estereótipo criminoso, estigmatizando certos aspectos físicos, psicológicos e até econômicos como associados à prática de crimes, reforçando o que se denomina teoria do etiquetamento.
Nessa linha, Regassi (2019) observa que, especialmente em países da América Latina, o estereótipo recai com frequência sobre homens jovens de classes sociais menos abastadas. Assim, o sistema penal atua de forma seletiva, amparado em estigmas já construídos, o que contribui para a inércia na persecução de determinados indivíduos que também violam a legislação penal.
Não obstante, Póvoa (2019) afirma que a criminologia midiática articula imagens de modo a selecionar aquelas que evidenciam os poucos estereotipados que efetivamente delinquem e, posteriormente, os que não cometeram crimes ou apenas infrações menores, mas que possuem aparência semelhante.
Em ação julgada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, exemplifica-se a influência da mídia no caso:
APELAÇÃO. AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS. PROVA EMPRESTADA. ADMISSIBILIDADE. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DO CONTRADITÓRIO. DIVULGAÇÃO DE ACUSAÇÕES DE ABUSO SEXUAL. REPERCUSSÃO MIDIÁTICA DOS FATOS E CONSEQUÊNCIAS NA VIDA PESSOAL E PROFISSIONAL DO AUTOR. DEMISSÃO INJUSTA. AMEAÇAS DE MORTE. INQUÉRITO POLICIAL ARQUIVADO. CONSTATAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE ABUSO. RESPONSABILIDADE DA RÉ PELA DISSEMINAÇÃO DA ACUSAÇÃO. DANO MORAL. CABIMENTO. INDENIZAÇÃO. MAJORAÇÃO.
O juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório
A divulgação de acusações infundadas de abuso sexual de menor de idade, sem a devida comprovação e antes da conclusão das investigações oficiais, configura ato ilícito passível de responsabilização civil, nos termos dos arts. 186 e 927 do Código Civil.
A repercussão midiática dos fatos, aliada às ameaças de morte recebidas pelo ofendido e à sua demissão injusta do emprego, evidencia o grave impacto emocional, profissional e social causado pelas condutas da ofensora, o que justifica a majoração do valor da indenização por danos morais.
Apelação Cível. 1.0000.24.029221-9/0015019910-18.2020.8.13.0024 (1), Relator(a): Des.(a) Marco Aurélio Ferrara Marcolino, Data de Julgamento: 22/08/2024, Data da publicação da súmula: 27/08/2024
Compreende-se que a mídia exerce função essencial na transmissão de informações e na fiscalização dos poderes instituídos. Contudo, é preciso observar que sua atuação pode gerar desdobramentos graves quando ultrapassa os limites do interesse público e interfere na condução de processos judiciais. Essa também é a percepção de Ribeiro (2021), que reconhece a possibilidade de a cobertura midiática de casos criminais contribuir para o esclarecimento social, mas alerta para o risco de comprometer a imparcialidade do julgamento.
A despeito desse posicionamento, destacam-se os dizeres do Desembargador Amauri Pinto Ferreira (2021), em julgamento no TJMG:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. REQUISITOS LEGAIS. PRESENÇA. VEICULAÇÃO DE MATÉRIA JORNALÍSTICA. INFORMAÇÕES INVERÍDICAS E EXTRAPOLAÇÃO DOS LIMITES DA INFORMAÇÃO. OFENSA À HONRA E À IMAGEM. DANO MORAL CONFIGURADO. VALOR DA INDENIZAÇÃO. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. Para a configuração do dever de indenizar, sob a ótica da responsabilidade civil subjetiva, adotada, como regra, no CC/2002, deve ficar demonstrado o ato ilícito, a culpa lata sensu, o dano, e o nexo de causalidade. Presentes tais requisitos, impõe-se a responsabilização civil. A divulgação de informações sabidamente inverídicas, envolvendo o nome de ocupante de relevante cargo público, tendo o fato ganhado grande repercussão midiática, é capaz de causar transtornos muito além do razoável, configurando dano moral. A fixação do quantum a ser solvido a tal título deve ser feita com lastro nas circunstâncias do caso em concreto e em observância aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
A ampla divulgação de crimes pode fomentar um sentimento de insegurança na população, aumentando a pressão por punição rápida e exemplar. Como observa Mendes (2020, p. 213), "o tribunal midiático frequentemente antecipa a condenação antes mesmo da formação da culpa no âmbito judicial". Esse comportamento pode influenciar até mesmo a elaboração de leis mais rigorosas em resposta a casos de grande repercussão.
Apelação Cível 1.0000.21.224206-9/0015128946-34.2016.8.13.0024, Relator: Des. Amauri Pinto Ferreira, Data de Julgamento: 17/11/2021, Data da publicação da súmula: 19/11/2021, Grifo Meu.
É importante refletir que o devido processo legal, garantido pela Constituição Federal de 1988, tem como um de seus eixos norteadores a presunção de inocência, prevista no art. 5º, inciso LVII. No entanto, quando a mídia adota uma postura mais célere que o próprio Judiciário, pode ocorrer a inversão desse princípio, fomentando um prejulgamento midiático que influencia a percepção social sobre o caso.
Não resta dúvida de que a presunção de inocência precisa ser reforçada e que a execução provisória da pena representa violação a princípios constitucionais. Existe, por parte do Judiciário, a preocupação em manter a integridade do processo, evitando que fatores externos desvirtuem sua finalidade, como ponderam Barradas et al. (2024).
É necessário discutir o sensacionalismo midiático como fenômeno que cria um contexto de pressão sobre os operadores do Direito, levando a sentenças mais severas ou acelerando indevidamente o trâmite processual. De acordo com Ribeiro (2021), transformar o processo em um “espetáculo do crime” compromete a análise imparcial e equilibrada das provas, gerando uma opinião pública, muitas vezes, ávida por punição.
DIREITO PENAL. AÇÃO PENAL. JÚRI. HOMICÍDIO QUALIFICADO CONSUMADO, POR DUAS VEZES, E TENTADO, POR TRÊS VEZES. DESAFORAMENTO. REQUISITOS LEGAIS NÃO PREENCHIDOS. INDEFERIMENTO. I. CASO EM EXAME Pedido de desaforamento formulado pela defesa do réu, pronunciado por homicídio qualificado, com alegações de clamor público e parcialidade do júri. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO Discute-se se há risco à ordem pública e/ou se há dúvida sobre a imparcialidade do júri. III. RAZÕES DE DECIDIR Ausência de elementos concretos que demonstrem o comprometimento da imparcialidade dos jurados. Divulgação do caso pela mídia local que, por si só, não justifica o desaforamento. Precedentes do STJ e deste E. Tribunal. Ausência de interesse da ordem pública. Pedido indeferido. IV. DISPOSITIVO Pedido indeferido. Legislação e Jurisprudência Relevantes Citadas: CPP, arts. 427 e 428; STJ, HC n. 492.964/MS, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. 23/03/2020; STJ, HC n. 56.384/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, j. 30/03/2009.
Processo 2329110-97.2024.8.26.0000, Relator: Marcelo Semer, 13ª Câmara de Direito Criminal, julgamento: 27/02/2025, publicação: 27/02/2025
A defesa alegou que o clamor público e a ampla cobertura midiática do caso, por meio de reportagens televisivas e jornais locais, colocaram em risco a ordem pública. Em razão das discussões ocorridas nas sessões da plenária do júri, o promotor e o juiz concederam entrevistas à mídia, apresentando dados distorcidos, o que representaria afronta ao princípio da paridade de armas. Além disso, a defesa sustentou que o promotor reforçou uma narrativa de condenação, influenciando negativamente a formação da opinião pública ao utilizar sua posição institucional para difundir uma versão unilateral dos fatos à sociedade.
A exposição midiática do réu, somada à atuação ativista do promotor, colocava em dúvida a parcialidade do júri, motivo pelo qual foi requerido o desaforamento do julgamento. Contudo, o relator Marcelo Semer destacou que o desaforamento é medida excepcional, admitida apenas quando comprovados fatos objetivos e concretos que indiquem a parcialidade do Conselho de Sentença, o que não se verificou no caso, motivo pelo qual indeferiu o pedido.
Outro exemplo é encontrado na decisão do Supremo Tribunal Federal, em que o Ministro Cristiano Zanin negou seguimento à impetração, nos termos do art. 21, § 1º, do Regimento Interno do STF:
Trata-se de habeas corpus impetrado contra decisão monocrática proferida por Ministro do Superior Tribunal de Justiça - STJ, assim redigida: “Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em favor de DSV, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (HC n. 1.0000.23.251277-2/000). Consta dos autos que o paciente foi preso temporariamente (e-STJ fl. 100), em 20/9/2023 a prisão foi convertida em preventiva (e-STJ fl. 94) e denunciado pela suposta prática dos crimes previstos no art. 121 §2°, III, IV e VI, no contexto da Lei n. 11.340/2006, art. 347, parágrafo único, e art. 211, na forma do artigo 69, todos do CP (eSTJ fl. 101), porque no dia 16/7/2023 teria praticado o crime de feminicídio consumado contra sua namorada. Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus na Corte estadual alegando, em síntese, que não estariam presentes os requisitos do art. 312 do CPP para a manutenção da prisão preventiva. Destacou as condições pessoais favoráveis do denunciado - é primário, com bons antecedentes, residência fixa e ocupação lícita - e defende a aplicação de medidas cautelares mais brandas, declarando que DSV não possui vínculo com organizações criminosas e não evadirá do distrito de culpa. Por fim, invocou o princípio da presunção de inocência e declarou que a manutenção da prisão cautelar representaria a condenação antecipada do paciente.(...) no caso, assim foi fundamentada a prisão (e-STJ fls. 90/94): Compulsando os autos, verifico que a materialidade dos ilícitos está amplamente provada, o que também se verifica quanto aos contundentes indícios da autoria, os quais convergem para o investigado DSV. Diante das situações narradas nos autos, a garantia da ordem pública se mostra ameaçada caso o ora investigado seja solto, tendo em vista principalmente a gravidade concreta dos fatos imputados, um feminicídio praticado com crueldade que saltam aos olhos, que gerou substancial clamor e inquietude social, com repercussão midiática de larga escala. Como se não bastasse, as provas até agora amealhadas aos autos indicam que a soltura do réu frustrará a garantia da ordem pública, da instrução processual e potencial aplicação da Lei penal, eis que há nos autos elementos indicativos de que, livrando-se solto, irá ele evadir-se do distrito da culpa. Cabe salientar, por oportuno, que não se trata aqui de antecipação do cumprimento da pena. Ainda que vigore no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da presunção de inocência, esse não absoluto, vez que a prisão antes do trânsito em julgado do edito condenatório pode ser admitida a título de cautela, em virtude do periculum libertatis. É o que ocorre no presente caso.
HC 236023 / MG, Relator: Min. CRISTIANO ZANIN, Julgamento: 08/12/2023, Publicação: 11/12/2023
Compreende-se que os tribunais brasileiros têm se manifestado de modo consolidado acerca dos riscos do prejulgamento midiático, evidenciando que o Poder Judiciário é constantemente acionado para intervir em casos em que a atuação da mídia excede os limites aceitáveis e influencia o desfecho processual. De fato, os desdobramentos da mídia no Direito Penal pátrio abrangem tanto a criação de legislações mais severas, como resposta à pressão popular, quanto o fortalecimento do punitivismo judicial. Vale destacar que, com frequência, a legislação penal é reestruturada de forma acelerada em reação a casos de grande repercussão, sem que se realize a necessária análise das consequências dessas mudanças.
A reflexão proposta envolve a presunção de inocência, princípio basilar do Estado Democrático de Direito e do devido processo legal, que muitas vezes é negligenciado pela mídia. Ao adiantar julgamentos e promover “tribunais paralelos”, a imprensa desrespeita direitos fundamentais e transmite a percepção de fragilidade da integridade da Justiça. A pesquisa demonstrou que a construção da opinião pública, mediada por veículos de comunicação frequentemente pautados por discursos que fomentam a insegurança e o medo, culmina em protestos sociais que exigem respostas penais imediatas e mais rigorosas. Esse movimento alimenta o populismo penal e leva legisladores a adotar políticas criminalizadoras.
Ficou evidenciado que o sistema punitivo brasileiro, em diversos casos, tem sido moldado mais pela emoção coletiva fomentada pela mídia do que por critérios técnico-jurídicos. Esse fenômeno se manifesta tanto na atuação de magistrados quanto na promulgação de leis penais mais duras, geralmente aprovadas em reação a crimes de grande repercussão.
Os casos analisados ao longo deste estudo exemplificaram graves consequências da exposição indevida de acusados: ameaças, demissões injustas, danos à imagem e até condenações sociais irreversíveis. Em alguns casos, mesmo após a absolvição judicial, o estigma permanece, dificultando a reintegração social. Nesse sentido, destaca-se o fenômeno da “teoria do etiquetamento”, que evidencia como a mídia contribui para estigmatizar determinados grupos sociais — jovens, negros e pobres — como potenciais delinquentes, reforçando padrões discriminatórios e seletivos do sistema penal.
Dessa forma, compreende-se que a criminologia midiática amplia o escopo da criminologia tradicional ao incluir a mídia como variável determinante no estudo da criminalidade. Tal ampliação é essencial para compreender como se constroem os discursos de criminalização e quais interesses os sustentam. Embora a liberdade de informação seja constitucionalmente garantida, ela não é absoluta, devendo ser harmonizada com o respeito à honra, à privacidade, à imagem e à presunção de inocência dos envolvidos.
As jurisprudências mencionadas demonstram que o Judiciário tem enfrentado esse dilema com cautela, reconhecendo, em alguns casos, o dano moral provocado pela mídia, mas também compreendendo que a mera repercussão não compromete, por si só, a imparcialidade do julgamento. Ao analisar casos como habeas corpus negados ou pedidos de desaforamento, evidencia-se que nem sempre os impactos morais decorrentes da exposição midiática são plenamente identificados ou reparados pelo sistema de justiça, o que fragiliza o sentimento de justiça.
Sugere-se a criação de códigos de conduta específicos para a mídia e o incentivo à educação midiática da população, como forma de oferecer capacidade crítica para o consumo de informações, reduzindo os efeitos da manipulação de narrativas e do discurso punitivista.