9. Conclusão
A análise aprofundada realizada ao longo deste estudo revela uma problemática multifacetada que transcende meros aspectos jurídicos para adentrar nos domínios filosóficos, psicológicos, sociais e culturais, englobando a complexa realidade do abandono parental, suas repercussões na formação da personalidade humana e a necessária reconstrução da dignidade afetiva e material do indivíduo em um contexto de pós-modernidade. A abordagem interdisciplinar adotada permitiu não só compreender a gravidade e extensão dos efeitos do abandono, mas também identificar os desafios contemporâneos que esse fenômeno impõe ao Direito, às políticas públicas e à própria sociedade.
O abandono parental, entendido como a ausência continuada e sistemática de cuidado, proteção e afeto, compromete de forma profunda e duradoura o que denominamos aqui como a “arquitetura invisível do ser” — uma metáfora que representa a estrutura íntima, psíquica e emocional que sustenta a identidade, a autoestima e a capacidade de estabelecer vínculos afetivos e sociais do indivíduo. Essa arquitetura, embora invisível aos olhos, é fundamental para o desenvolvimento saudável e harmonioso da personalidade, influenciando diretamente a trajetória de vida, as escolhas e a inserção social do sujeito. Assim, o abandono não pode ser visto como um simples descuido ou omissão, mas sim como uma ruptura estrutural que produz cicatrizes emocionais e psicológicas profundas, muitas vezes difíceis de mensurar e reparar.
Ao longo do estudo, evidenciou-se que o Direito, enquanto instrumento regulador e reparador das relações sociais, vem passando por uma necessária transformação paradigmática. A visão tradicional, restrita à obrigação material e biológica dos pais para com os filhos, tem sido ampliada para contemplar dimensões emocionais e afetivas, reconhecendo que a parentalidade se funda não apenas no sustento econômico, mas no cuidado contínuo, na presença afetiva e no suporte emocional como direitos essenciais e permanentes. Essa evolução jurisprudencial e legislativa sinaliza um avanço importante na compreensão do que significa ser pai ou mãe no século XXI, sobretudo diante das complexas configurações familiares e sociais da pós-modernidade.
Entretanto, essa ampliação do conceito de deveres parentais também encontra desafios e paradoxos na realidade contemporânea. Por um lado, observa-se a persistência — e em muitos casos o agravamento — do abandono afetivo e material, que deixa vítimas silenciosas e fragilizadas ao longo de toda a vida. Por outro lado, surgem fenômenos inusitados e culturalmente carregados, como o interesse crescente de certas pessoas em cuidar de bebês reborn, que são bonecos hiper-realistas, chegando a pleitear direitos formais como licença-maternidade, registro civil e até batismo para esses objetos simbólicos. Esse fenômeno, que pode parecer distante ou até excêntrico, deve ser compreendido como uma manifestação das carências afetivas e do anseio por cuidado e pertencimento, refletindo as lacunas deixadas pelo abandono e pela ausência de vínculos familiares verdadeiros.
A existência simultânea dessas realidades — o abandono de crianças reais por genitores e a busca por cuidados simbólicos e legais para bonecos reborn — destaca um cenário social marcado por tensões e desequilíbrios emocionais que requerem respostas articuladas e sensíveis. O Direito, a Psicologia e as políticas sociais precisam caminhar juntas para proteger a infância real, garantindo a reparação integral dos danos causados pelo abandono, e para ao mesmo tempo entender e orientar as novas expressões de afetividade que emergem na contemporaneidade, sem perder de vista sua função primordial de proteção e promoção da dignidade humana.
A discussão sobre a imprescritibilidade do direito à reparação por abandono, por exemplo, é emblemática para refletir a complexidade do dano afetivo, que se estende por toda a vida do indivíduo e não se esgota em prazos legais convencionais. Reconhecer o abandono afetivo como causa legítima de reparação jurídica, incluindo compensações morais e simbólicas, é um avanço que reafirma o compromisso do Direito com a proteção integral da pessoa, ressaltando a centralidade do afeto e do cuidado como bases para a dignidade humana.
Além disso, o estudo indicou que as transformações sociais da pós-modernidade — com o aumento das famílias monoparentais, reconfigurações nas relações de gênero, individualismo crescente e pluralidade de formas familiares — impõem uma revisão constante dos parâmetros tradicionais do Direito de Família. Essa adaptação exige uma visão mais flexível e inclusiva, capaz de reconhecer a diversidade e de garantir o direito à afetividade, ao cuidado e ao suporte emocional em todas as suas manifestações legítimas.
A partir dessa perspectiva, torna-se evidente que a proteção jurídica das crianças e adolescentes não pode ser limitada a garantias formais e superficiais, mas deve se aprofundar na efetividade dos direitos afetivos e emocionais, que são essenciais para o desenvolvimento humano pleno. Políticas públicas que promovam suporte familiar, acompanhamento psicológico e social, programas educativos e mecanismos de prevenção do abandono são imprescindíveis para construir uma rede de proteção eficaz e sustentável.
Por fim, o presente trabalho reforça que a reconstrução da “arquitetura invisível do cuidado” é um imperativo ético, social e jurídico que exige a conjugação de esforços entre o Estado, a sociedade civil, as famílias e os indivíduos. É necessária uma mobilização ampla para promover a cultura do cuidado, do afeto e do reconhecimento da dignidade em todas as fases da vida, assegurando que nenhuma criança ou adulto seja invisibilizado pela ausência dos laços afetivos fundamentais.
A partir dessa análise aprofundada, pode-se concluir que o desafio maior não reside apenas em reparar juridicamente os danos causados pelo abandono, mas em construir uma sociedade que valorize e priorize a afetividade como fundamento do Direito, da convivência social e do desenvolvimento humano. Somente com essa transformação cultural e institucional será possível garantir um futuro no qual todos possam vivenciar seus direitos plenos, a partir de vínculos familiares e sociais que efetivamente lhes deem suporte, cuidado e reconhecimento.
Este trabalho, portanto, contribui para o debate contemporâneo ao integrar diferentes campos do saber, promovendo uma visão holística e humanizada dos deveres parentais e da proteção da dignidade, e abre caminhos para novas pesquisas, políticas e práticas jurídicas mais sensíveis às demandas emocionais e sociais da vida em sociedade. A esperança é que tais reflexões possam inspirar mudanças concretas que, efetivamente, transformem o cenário do abandono parental e fortaleçam a “arquitetura invisível do ser” para as gerações presentes e futuras.
Referências Bibliográficas
ALVES JÚNIOR, Silvio Moreira. Bebês reborn, realidade alternativa e limites jurídico-sociais: Entre o afeto simbólico e o risco psicossocial nas plataformas digitais. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 30, n. 7996, 23 maio 2025. ISSN 1518-4862. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/114011/bebes-reborn-realidade-alternativa-e-limites-juridico-sociais-entre-o-afeto-simbolico-e-o-risco-psicossocial-nas-plataformas-digitais>. Acesso em: 31 mai. 2025.