Capa da publicação Quem enterrará Polinices? O poder de interpretar a lei
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Quem enterrará Polinices?

Breve ensaio sobre a relação histórica entre soberania, legitimidade e interpretação constitucional

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Resumo:


  • A tragédia de Antígona questiona os limites da soberania e da legislação em influenciar a liberdade do indivíduo.

  • Na modernidade, a interpretação da lei política é disputada entre o positivismo, que defende a rigidez das normas, e a Escola Livre, que propõe a discricionariedade dos juízes.

  • A legitimidade da lei política é determinada pela soberania popular, que, através do diálogo público, decide sobre a interpretação da Constituição e a aplicação das leis.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5. Existe uma lei racional? Ou quem irá dizer a Antígona sobre a possibilidade de enterrar Polinices?

Quando Kant delimita as condições de possibilidade do conhecimento, de forma que se torna impossível o conhecimento de Deus, da liberdade e da imortalidade, ele abria espaço para a fé19. O fundamento ou o saber incondicionado, o que está acima das forças humanas, nada mais é que uma crença. Assim, o que envolve a lei racional não é mais a autoridade divina, pois ela é incognoscível, mas um método e a crença nesse método. Embora, posteriormente Hegel quisesse solucionar a tensão entre a pretensão de conhecer o incondicionado e a impossibilidade de conhecê-lo, mas que se torna possível com uma realização contínua na ordem efetiva, sendo a realidade a forma como o Absoluto se conhece a si mesmo; na modernidade pós-hegeliana, a razão se dessessencializa. Deus está morto e não seria a racionalidade iluminista sua legítima sucessora.

No entanto, se não se pode dizer sobre a existência de uma lei divina ou de uma lei racional, com que autoridade ou sob quais condições uma lei se torna legítima? Se politicamente a resposta remete à autoridade do parlamento, em relação à racionalidade da lei a abordagem tem como perspectiva o procedimento. Não basta Creonte ou o Parlamento promulgarem suas leis, a metáfora do corpo político, em que o rei ou o Parlamento é a cabeça do Estado, torna-se insustentável. O Leviatã metamorfoseia-se em uma Hidra de milhões de cabeças. O peso da responsabilidade e a graça do poder recai não mais apenas sobre os ombros dos homens escolhidos, mas de todo o povo. Assim, mais que obedecer a uma só voz, torna-se preciso, antes de tudo, o consentimento entre os membros do corpo: emerge a soberania popular como procedimento democrático.

Não sendo corpo, o público não é mera resposta de um comando nervoso, mas torna-se um espaço de diálogo, de argumentação plurívoca, onde são formadas as opiniões populares, sempre provisórias e em constante mutação. No espaço público, uma arena de debates é defendida, uma arena com determinadas regras para formar novas regras, na forma de lei – sempre gerais e abstratas –, uma arena em que cada participante para adentrar deve excluir “todo interesse que não possa ser generalizado, admitindo apenas aquelas regulamentações que garantam liberdades iguais a todos” 20, uma arena que substitui a violência pelo entendimento e que tem como meta a formação democrática da vontade popular.

Assim, quem irá dizer a Antígona sobre a possibilidade de enterrar Polinices é o povo que, através de uma arena pública e sob os pressupostos de igual respeito e consideração, enunciará a racionalidade da lei e sua posição. Não mais uma autoridade divina nem a vontade do soberano, muito menos a evocação da lei natural, mas através do discurso público “sob condições de uma participação ampla, ativa e, ao mesmo tempo, disseminante”, e como condição de possibilidade desta participação, a existência de uma “cultura política igualitária, desprovida de privilégios de formação, e tornada intelectual em toda amplitude21”.


6. Antígona e o povo reveem o decreto de Creonte

Há mais, somos dirigidas por mais fortes, temos que obedecer a estas leis e a leis ainda mais duras. De minha parte, rogo aos que estão debaixo da terra que tenham piedade de mim, sou forçada a isso, obedecerei a quem está no poder; fazer mais que isso não tem nenhum sentido22.

Quando Ismene contesta Antígona com as palavras acima, expõe-se o ponto de vista da legitimidade na antiguidade: o poder estava com o rei e se manifestava em seus intentos, mesmo quando arbitrários.

Talvez Antígona atentasse para uma necessidade de controle do édito de Creonte ante aos preceitos da lei divina – “porque não foi Zeus que a promulgou”. O rei estava agindo sem temor aos deuses, desobedecendo à autoridade que lhe deu autoridade sobre os homens. E por isso a ordem de deixar o corpo de Polinices como comida às aves de rapina ofenderia a legitimidade dada pela hereditariedade e aquiescência divina. Creonte não teria fé nos deuses.

Alguns modernos diriam que Creonte agiu sem uma consciência plena, contra os ditames da racionalidade humana, sem se colocar no lugar do outro e sem obedecer à regra de jogo que compreende ver todos como iguais e dignos de consideração não arbitrária. Outros diriam que ele agiu cinicamente, transformando a lei em uma extensão de sua razão subjetiva privada. De todo modo, diriam que Creonte não sabia o que fazia ou, mesmo sabendo o que fazia, não teria fé na razão objetiva.

Se hoje a legitimidade reside no poder do povo, sendo a Constituição o pacto vivo e expressão da racionalidade da lei, não caberia apenas a Creonte interpretar as cláusulas gerais, muito menos a uma casta parlamentar ou uma casta de juízes supostamente preparada para desvendar as transformações da manifestação do espírito constitucional. Ismene contemporânea assim diria: “Há mais, somos dirigidos por uns poucos, capazes de interpretar a universalidade e o conteúdo da Lei fundamental. Se temos que obedecer à Constituição que constituímos, temos que acatar a interpretação dos escolhidos. Sou forçada a isso, obedecerei a quem está no poder; fazer mais que isso não tem nenhum sentido”. E se Creonte não tiver fé na Constituição? Ou pior: e se o povo não acreditar nos deuses?

Jack M. Balkin23 responde: é preciso ter fé na Constituição. Para destronar o acesso autorizado da interpretação, é necessário, assim como fez Lutero, democratizar o a interpretação e tornar o texto constitucional mais que um símbolo de soberania popular, mas algo vivo em que cada membro da comunidade política está autorizado a decidir sobre o que a Constituição significa para si próprio. Contrário ao catolicismo constitucional, o qual prescreve que só o bispado teria autorização para ler a Bíblia ou interpretar a Constituição – como a Igreja Católica e as Cortes ou o Parlamento –, Balkin atenta para o protestantismo constitucional, o qual mesmo com interpretações dissonantes e por vezes contraditórias, criam uma arena pública dinâmica e uma cultura que privilegia a participação popular como expressão própria da soberania. O protestantismo constitucional professaria, consoante as ideias de Marramao, uma universalidade da diferença, em que cada um expressaria suas posições autônomas a fim de construir um universal, que conecta as múltiplas interpretações, desde o entendimento do público até a interpretação das instituições oficiais, assumindo-o como inesgotável e incompleto.

Fröebel, inspirado em Rousseau, dizia: “sempre há lei apenas para aquele que a fez ou lhe deu assentimento; para qualquer outro ela é um decreto ou uma ordem24”. Assentir a lei e não torná-la um decreto ou uma ordem é garantir a legitimidade. E em Antígona revisitada é a participação do povo na arena pública e sua interpretação sobre o contrato que os vincula, evocando a soberania popular, que irá determinar a legitimidade do decreto de Creonte. Não é remetendo à autoridade divina, tampouco ao direito natural, muito menos submeter à lei política que defende que uma lei é lei porque emana daquele que detém a autoridade para tanto. Antígona e o povo reveem o decreto de Creonte expondo suas razões e contrarrazões e obedecendo às regras de generalidade, impessoalidade, igual consideração e respeito, fraternidade. Não caberá ao parlamento nem aos juízes, nem aos reis ou divindades, enterrar Polinices.

Quem decidirá sobre o enterro de Polinices são as pessoas, enquanto dispostas a aceitar um sistema político e jurídico respeitável, no qual as pessoas estão conscientes e dispostas a aceitar o seu poder para fazer cumprir a lei sobre os outros e sobre elas mesmas, desfrutando dos benefícios políticos dessa união25.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALKIN, Jack M. Constitutional redemption: political faith in an unjust world. Harvard University Press, 2011.

HABERMAS. Soberania popular como procedimento: um conceito normativo de espaço público. Tradução de Márcio Suzuki. Novos Estudos CEBRAP. 26. (1990), p.100-113

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de Estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1983

KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003.

KANT. Textos seletos. Trad. Raimundo Vier. Vozes, Petrópolis, 1974, (Segundo prefácio da Crítica da Razão Pura, B XXX. p. 52)

NEUMANN, Franz. 2014. [1937]. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Trad. Bianca Tavolari. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-87, jul./dez. p. 67

SÁ, Alexandre Guilherme Barroso de Matos Franco de. O poder pelo poder: Ficção e ordem no combate de Carl Schmitt em torno do poder. Universidade de Coimbra, 2006 (Tese de doutoramento)

SCHMITT. Carl. Legalidad y legitimidad. Traducción de Jose Diaz Garcia. Imprenta: Madrid, Aguilar, 1971.

SEGAL, Jeffrey A. SPAETH, Harold J. The Supreme Court and the Attitudinal Model Revisited (Cap. 02. e 03). New York: Cambridge University Press.

SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre, L&PM: 1999

SUNSTEIN, Cass. E. Constitutional Personae. Nova Iorque: Oxford University Press, 2015.


Notas

  1. Concomitantemente , na cultura judaica-cristã, há o episódio do patriarca Jacó em Siquém, que se assemelha muito com a guerra de Troia. A paixão de Hamor, que se inicia desde quando vê pela primeira vez Diná, filha de Jacó, culmina no rapto e no defloramento da jovem hebréia. Indignados, os filhos de Jacó planejaram uma vingança astuta, tal qual o cavalo de madeira em Troia: o casamento com sua irmã seria permitido, desde que todos os homens de Siquém fossem circuncidados. A proposta agradou Hamor e aos homens de Siquém e todos se submeteram à operação. Aproveitando a fraqueza causada pela circuncisão, os filhos de Jacó, no meio da noite, resgataram sua irmã e mataram todos os homens de Siquém.

  2. Bem verdade que, em Atos dos Apóstolos 5:3, apregoa-se que o cristão deve obedecer a Deus antes que aos homens, de modo que a lei terrena jamais deve suplantar a autoridade divina. Que tal posição é a mesma de Antígona não resta dúvidas, mas no cristianismo paulino a desobediência civil não propõe um caráter revolucionário de buscar a materialização dos anseios divinos na ordem concreta. Há dois mundos que não se interprenetram: o céu dos fiéis está distante da terra firme. A César cabe o mundo terreno, porque o mundo de Deus está em outro plano.

  3. Pode-se objetar que o conflito principal da tragédia dá-se em relação à (des) obediência quanto às leis humanas são (in) compatíveis com as leis divinas.

  4. Hans Blumenberg é um dos que atenta para a aparência de secularização da modernidade, na medida em que a filosofia da história recupera a posição de uma salvação histórica, compreendendo elementos da escatologia cristã. Cf. BLUMENBERG,, Hans. The Legitimacy of the Modern Age. Trans. Robert M. Wallace. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1983. P. XXIII.

  5. NEUMANN, Franz. 2014. [1937]. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Trad. Bianca Tavolari. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-87, jul./dez. pg. 21.

  6. HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de Estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 135

  7. NEUMANN, Franz. 2014. [1937]. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Trad. Bianca Tavolari. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-87, jul./dez. pg. 23.

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  8. KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003. p. 407

  9. NEUMANN, Franz. 2014. [1937]. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Trad. Bianca Tavolari. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-87, jul./dez. pg. 37

  10. SEGAL, Jeffrey A. SPAETH, Harold J. The Supreme Court and the Attitudinal Model Revisited. New York: Cambridge University Press. p. 10.

  11. SUNSTEIN, Cass. E. Constitutional Personae. Nova Iorque: Oxford University Press, 2015.

  12. RADBRUCH apud NEUMANN. IN: NEUMANN, Franz. 2014. [1937]. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Trad. Bianca Tavolari. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-87, jul./dez. p. 40

  13. Liberais nacionalistas já no século XVIII, como Fichte, alertavam que um Estado liberal deveria tratar todos seus membros como iguais e em iguais condições de partida, de modo que a herança seria confiscada pelo Estado, o qual garantiria as condições primordiais a todos as pessoas, que por mérito formariam sua própria riqueza.

  14. SCHMITT. Carl. Legalidad y legitimidad. Traducción de Jose Diaz Garcia. Imprenta: Madrid, Aguilar, 1971.

  15. SÁ, Alexandre Guilherme Barroso de Matos Franco de. O poder pelo poder: Ficção e ordem no combate de Carl Schmitt em torno do poder. Universidade de Coimbra, 2006 (Tese de doutoramento) p. 310

  16. Bem verdade que, para Carl Schmitt, o Estado de liderança – tipo do estado nacional-socialista alemão – seria a melhor forma de governo, em que a separação entre o legislativo e o executivo é superada e “leis constitucionais aparecem através de uma decisão do governo do Reich dirigido pelo líder” (SCHMITT apud SÁ, p. 509).

  17. MARX apud NEUMANN. IN: NEUMANN, Franz. 2014. [1937]. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Trad. Bianca Tavolari. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-87, jul./dez. p. 42.

  18. NEUMANN, Franz. 2014. [1937]. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Trad. Bianca Tavolari. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-87, jul./dez. p. 67

  19. KANT. Textos seletos. Trad. Raimundo Vier. Vozes, Petrópolis, 1974, (Segundo prefácio da Crítica da Razão Pura, B XXX. p. 52)

  20. HABERMAS. Soberania popular como procedimento: um conceito normativo de espaço público. Tradução de Márcio Suzuki. Novos Estudos CEBRAP. 26. (1990), p.100-113. P. p. 102.

  21. Ibidem, p 113.

  22. SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre, L&PM: 1999 (frag. 65)

  23. BALKIN, Jack M. Constitutional redemption: political faith in an unjust world. Harvard University Press, 2011.

  24. HABERMAS. Soberania popular como procedimento: um conceito normativo de espaço público. Tradução de Márcio Suzuki. Novos Estudos CEBRAP. 26. (1990), p.100-113. P. 103

  25. BALKIN, Jack M. Constitutional redemption: political faith in an unjust world. Harvard University Press, 2011. p. 36

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Rafael Guimarães Abras. Quem enterrará Polinices? : Breve ensaio sobre a relação histórica entre soberania, legitimidade e interpretação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8015, 11 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114194. Acesso em: 5 dez. 2025.

Mais informações

Artigo final apresentado para a Disciplina TEMAS DE FILOSOFIA DO ESTADO: LEGALIDADE E LEGITIMIDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, ministrada pelo Prof. Dr. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG - 07/12/2015.

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