Capa da publicação Quem enterrará Polinices? O poder de interpretar a lei
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Quem enterrará Polinices?

Breve ensaio sobre a relação histórica entre soberania, legitimidade e interpretação constitucional

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Resumo:


  • A tragédia de Antígona questiona os limites da soberania e da legislação em influenciar a liberdade do indivíduo.

  • Na modernidade, a interpretação da lei política é disputada entre o positivismo, que defende a rigidez das normas, e a Escola Livre, que propõe a discricionariedade dos juízes.

  • A legitimidade da lei política é determinada pela soberania popular, que, através do diálogo público, decide sobre a interpretação da Constituição e a aplicação das leis.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Antígona inspira reflexões modernas sobre lei, soberania e liberdade. Quem legitima e interpreta a norma jurídica: o Parlamento, o Judiciário ou o povo?

1. Prólogo

Talvez seja na tragédia “Antígona” de Sófocles que, pela primeira vez, na cultura ocidental, atente-se para uma dissociação entre voluntas e ratio dentro da própria lei, colocando sob tensão o intento do Estado e do indivíduo, o conflito entre a soberania e a liberdade. Antes, na Ilíada de Homero, a guerra de Tróia aparece como um capricho sentimental dos reis, onde a relação entre soberanos e súditos é rígida, sendo os últimos retratados como membros obedientes da única e inquestionável cabeça possível. Mesmo que o objetivo bélico fosse o trivial resgate de Helena dos braços de Páris1, príncipe de Tróia, na narrativa homérica não são retratados comandos desobedecidos, de modo que a vontade do povo e do soberano aparece como uma só: Deus constituía César e César recebia o que era de Deus.

Séculos mais tarde, Paulo escreverá de maneira clara e clássica sobre tal relação entre indivíduo, autoridade e Estado:

Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação2 (Carta aos Romanos 13:1-2).

Antígona, contudo, questiona qual tipo de autoridade ou autorização tem procedência divina. A tragédia inicia-se com a morte de Etéocles e Polinices, irmãos de Antígona, os quais se mataram reciprocamente na luta pelo trono de Tebas. Com a morte dos dois filhos de Édipo, Creonte, o homem mais próximo da linhagem real, ascende ao poder. De maneira extravagante, o novo rei ordena que Policines, ao contrário de seu irmão, não seria sepultado, tendo assim o seu corpo largado como comida para cães e aves de rapina. Inconformada com o édito do novo rei Creonte, Antígona se insurge, de forma que a tragédia é um retrato de sua tentativa de sepultar o seu irmão Polinices consoante os rituais sagrados. Não que aqui haja um conflito indubitável entre liberdade e soberania3, mas incidentalmente indagam-se os limites da soberania e até que ponto uma legislação tem legitimidade para influir na liberdade de ação do indivíduo. Que a lei pode ser a expressão de uma vontade soberana não resta dúvida, mas qual tipo de lei refletiria o intento divino e quem seria capaz de reconhecer tal tipo de autoridade?

Se a modernidade pode ser caracterizada como uma contínua secularização e desencantamento do mundo, o lócus da lei divina vai sendo gradativamente substituído pelo protagonismo do sujeito e pela racionalização teórica. Não basta dizer Deus: é preciso dizer “eu” e dar razões lógico-científicas sobre a adoção da medida do comportamento. Agora, a lei só se torna legítima quando remeter à possibilidade de apreensão pelo indivíduo e quando o conteúdo não for contrário ao novo deus chamado racionalidade4.

Nesse sentido, pode-se asseverar que basicamente três elementos determinam a legitimidade de uma lei:

  • a) a autoridade da qual emana a ordem, ou seja, a questão da soberania.

  • b) o conteúdo desta ordem, que deve ser racional, universal, justificável, realizável e limitado, respeitando as liberdades individuais.

  • c) a interpretação que os membros do grupo fazem da lei, pressupondo, sobretudo, a igualdade dos membros da comunidade.

E é nessa tensão entre vontade soberana, racionalidade das leis e a liberdade do indivíduo que a problema de Antígona se recoloca na modernidade, repetidamente diferenciado, com novos pressupostos e novos dilemas a serem explorados no presente ensaio.


2. Da desobediência de Antígona ou o conflito entre lei divina e lei humana

Na modernidade, a conflito entre lei divina e lei humana (re)aparece diferentemente. Franz Neumann, em “A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa”, atenta para o que ele chama de dois sentidos distintos do conceito de lei: o racional e o político. O sentido político recorta a origem da lei, reconhecendo que somente as manifestações do soberano tem caráter legislativo estritamente por serem manifestações do soberano. Como em um sistema autorreferente e fechado, a lei é definida como aquilo que é gerado pelo soberano. “Lei é voluntas e nada mais” 5.

A lei racional, por sua vez, evoca uma justificação não pela origem, mas pelo conteúdo das leis. Como semelhantemente acontece em Antígona, nem todos os decretos do soberano podem ser reconhecidos como lei, da mesma forma que há leis plenamente compreensíveis e que soam como válidas mesmo sem referência à vontade do soberano. Lei é ratio: é ponderação sobre aquilo que é ordenado, é trazer ao foro interno da consciência se a ordem externa atenta contra a liberdade ou contra a manutenção da vida. Como escreve Hobbes:

Se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado) que se mate, se fira ou se mutile a si mesmo, ou que não resista aos que o atacarem, ou que se abstenha de usar os alimentos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer6.

Neumann lembra que no sistema tomista medieval tal distinção entre o sentido político e o sentido racional da lei não era reconhecida: uma lei emanada pelo soberano só seria lei enquanto correspondesse aos princípios fundamentais da lex naturalis advinda de Deus. O édito de Creonte não seria lei, bem como configuraria um dever à Antígona resistir aos comandos naturalmente injustos, não havendo nenhum dilema cívico e não devendo nenhuma hesitação no intuito de enterrar Polinices.

Se o sentido racional da lei remete ao reconhecimento de validade do conteúdo da norma por parte do sujeito, é em relação ao sentido político da lei que são travadas lutas pelo poder: afinal, a vontade de quem deve ser obedecida?

Pode-se dizer que a modernidade se inicia com a secularização da vontade divina, especialmente quando se trata de evocar a liberdade do indivíduo frente à interpretação e ponderação dos decretos soberanos, sejam de natureza divina ou humana. O sagrado, acessível só para uma casta técnica de sacerdotes e reis, consubstanciador do comando terreno do soberano em comando divino, fonte de autoridade ilimitada da Igreja sobre os súditos, passa a dar lugar à universalidade da lei, a qual atinge a todos e a reivindica internamente uma igualdade de acesso entre os membros da comunidade. O que legitima o poder soberano não é mais a autoridade de Deus, mas seu compromisso com a lei racional, a qual justamente limita o âmbito de incidência da soberania estatal.

Não coincidentemente que a identidade entre lei política e lei racional ruiu sob a insistente evocação de um direito natural fundado na liberdade do indivíduo – conforme defendeu Marsílio de Pádua –, e em menos de dois séculos, Lutero retirou das mãos da Igreja o monopólio da interpretação bíblica, indicando uma universalização da interpretação, de modo que cada indivíduo fosse considerado livre para discutir os limites da autoridade de uma instituição.

Assim, na modernidade, o conflito trágico de Antígona – a dúvida acerca de obedecer à lei humana ou à lei divina – transmuta-se em quatro problemas, a saber:

  1. Como legitimar a lei política?

  2. Como interpretar a lei política?

  3. Quem interpreta a lei política?

  4. Existiria uma lei racional?


3. Como legitimar a lei política? Ou o império do Direito destrona Creonte

Que a lei não consiste na mera vontade do soberano, mas deve se ajustar à lei natural, a qual garante a autonomia do indivíduo ante ao despotismo da coletividade – o todo não é anterior à parte, mas a parte é que forma o todo, tendo cada qual um direito natural a priori –, eis o que os teóricos do Estado absolutista, como Hobbes e Bodin, apregoavam, caracterizando, assim, a modernidade política.

No entanto, é sabido que, na história dos conceitos, algo se perde com o passar dos tempos, a ponto de um termo passar a significar paradoxalmente o seu oposto, invertendo a lógica do universal anteriormente posto, de forma que o que antes foi condenado passa a ser sinônimo do conceito criado para condenar; é um fato que a humanidade não está imune: parece que quanto mais emancipadora for uma idéia, mais fácil é torná-la agrilhoadora. E tal situação não foi diferente com o conceito de “direito natural”. Neumann explica:

Sempre que um grupo político ataca posições de poder de um outro, serve-se de um direito natural completamente revolucionário e deduz desse direito natural até mesmo o direito ao tiranicídio. Sempre que esse grupo conquista posições de poder, renuncia a todos os antigos ideais, nega a força revolucionária do direito natural e o transforma numa ideologia conservadora7

Fato é que o termo direito natural passou a remeter analogicamente a autoridade arbitrária da lei divina, na medida em que afirmava a existência de leis materiais fora do sistema normativo, leis que poderiam refletir o contorno e a intenção de quem as observava. Assim, com o desenvolvimento do liberalismo e da democracia - e conseqüentemente a teoria do contrato social – progressivamente desaparecia a referência ao direito natural.

A lei política deveria seguir um método, consoante a lei racional, e estabelecer limites na sua construção e aplicação: toda lei deveria ser universal, não retroativa e construída como um tipo especial de proposição. Inaugurava-se, assim, o império do direito.

Kant é quem vai centralizar a universalidade das leis em sua teoria do direito, explicando o direito natural não como algo intrínseco e posto pela natureza, mas derivado da racionalidade. Razão que, para Kant, não é estática ou definida como uma idéia platônica imutável e fundadora da realidade, antes, porém, a racionalidade do direito funda-se na liberdade, enquanto tarefa infinita que possibilita a transformação da sociedade. O Estado, portanto, deve governar por meio de leis gerais e universais, resguardando sempre a liberdade do sujeito. Conforme preceitua o filósofo de Königsberg:

O direito estrito fundamenta-se sem dúvida na consciência da obrigação de cada um adequar-se à lei; (...) esse direito apóia-se unicamente sobre o princípio da possibilidade de uma coerção externa que possa coexistir com a liberdade de cada um, segundo as leis gerais8

Assim, a universalidade das leis substituiu o direito natural como legitimador da lei política. Nesse contexto de império do direito, é fortalecida a teoria da separação dos poderes, de modo que à pergunta “como legitimar uma lei política?” responde-se: é o Parlamento, local de deliberação e de formação da vontade geral, quem é o responsável por editar leis universais, capazes de atingir todos os cidadãos em prol da comunidade. Não mais o credo na autoridade do rei soberano, nem na tradição farisaica que cria uma estrutura de poder centrada na condição hereditária. O império do direito destrona Creonte. Inicia-se a construção de um novo credo em que os cidadãos sem distinção de raça, religião, condição financeira, no gozo pleno de suas faculdades exerceriam a cidadania – enquanto comunhão no corpo do Estado – através do voto, elegendo seus representantes, de forma que estes, por compartilhar o mesmo ideal dos eleitores, contribuiriam para uma sociedade mais livre e justa. Que cidadãos conscientes da necessidade de sua interferência na coletividade escolheriam a voz mais apta, a mente mais apta a representar suas ideias e demandas frente ao Estado, pleiteando com propriedade e fé na máquina, os interesses a serem consolidados. Que os cidadãos – e não mais o sangue –, fonte legitimadora da lei política, fiscalizariam aqueles que foram eleitos, ao mesmo tempo em que surgissem novos pleitos a serem debatidos, propostas infinitas que nunca atingem definitivamente a Democracia, este céu e nova terra inacessível, mas possível e passível de uma aproximação contínua. Que os cidadãos, conscientes e crentes da estrutura do Leviatã, a trindade de Montesquieu – Executivo, Legislativo e Judiciário –, em que o Legislativo como o Pai, fonte e comando do Filho e do Espírito, seria o único caminho possível para criar o direito.

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Se a legitimidade das leis advém do fato delas serem originadas no Parlamento, sendo a lei a expressão da vontade geral, se é o procedimento que garante a legitimidade da lei política, se a lei não tem a voz de um rei nem se dirige para um fato determinado, mas geral e abstrato, como o Espírito das leis será manifestado e aplicado na prática? O problema então se desloca: quem vai e como vai dizer a Antígona sobre a possibilidade ou não de enterrar Polinices?


4. Como interpretar a lei política? Quem interpreta a lei política?

Se, na Idade Média, a Igreja tentava ser o espelho duro e reflexo claro da Palavra de Deus, sendo a única autorizada a interpretar as Escrituras, cabendo ao povo como ovelhas guiadas pelo pastor, obedecer fielmente; de maneira semelhante se deu, inicialmente, em relação à interpretação das leis no Império do Direito.

Como retrata Neumann9:

Quando a lei – e só a lei – impera, então o juiz não tem nada além do que tarefas cognitivas. Os juízes são, como Montesquieu os caracterizou, nada mais do que “a boca que proclama as palavras da lei, ser inanimado”.

Nova casta autorizada a aplicar os preceitos rígidos da lei criada pelos representantes do povo, o Judiciário começa a criar o mito do juiz imparcial, do juiz como soldado obediente às ordens do legislador e que, quando este se silencia, não é capaz de resolver o conflito no campo de batalha. É pela ótica do mito do juiz imparcial que o juiz John Marshall defende que o poder judiciário não tem uma real existência, senão consiste em um mero instrumento da lei e não poder almejar nada além dela; que o poder discricionário do juiz não significa ir de encontro à sua vontade individual, mas à vontade do legislador10. Como um vaso na mão de um oleiro – à expressão cristã -, o juiz seria um porta-voz da vontade de Pai, o Parlamento democrático, acessível a todos e que trata a todos de igual modo, só que, uns são mais iguais que os outros quando o assunto é legislar e decidir como o Verbo vivo irá se manifestar. Cass Sunstein11 talvez caracterizasse esse primeiro tipo de juiz como um soldado, na medida em que restringem sua atuação aos comandos dos poderes politicamente legitimados, não competindo atualizar ou redefinir os valores das ordens dadas.

No início do liberalismo democrático, chegou-se ao ponto de coibir a formação de escolas de interpretação, de comentários e de construção doutrinária. Como prescrevia os decretos de 16 e 24 de agosto de 1790 na França revolucionária, em caso de dúvida, o juiz deveria recorrer à autoridade legisladora. Uma instrução na Baviera de 19 de outubro de 1813 proibia os funcionários públicos e especialista de escrever comentários ao Código Penal12.

A nova Igreja, baseada na soberania do Parlamento e na universalidade das leis, só garantia seus adeptos porque não afetava os seus interesses das camadas dominantes. César enquanto Parlamento constituía a nova Igreja e a nova Igreja era fiel aos interesses de César. Enquanto houvesse influência e coesão institucional, enquanto a representatividade dos juízes correspondesse aos anseios da burguesia, enquanto as leis refletissem esses interesses de forma clara, não havia outra forma além de buscar o sentido literal da norma.

No entanto, assim como a unidade de interesses econômicos e a formação de uma estrutura hierárquica possibilitam o surgimento de monopólios e a santificação de uma classe, a nova Igreja viu-se confrontada com a força crescente da classe operária e o desejo de novos liberais em ascender ao bispado. A nobreza de sangue, anteriormente tão criticada, era substituída por seu novo reflexo repetido e diferenciado: a burguesia da herança13. Nesse sentido, aliado ao desenvolvimento das teorias do contrato social, foi preciso, com o passar dos anos, elaborar uma constituição: um compromisso político de que a nova Igreja não era a velha Igreja farisaica.

Como valor de referência de toda a legitimidade da ação estatal, a Constituição enquanto lei fundamental tornou-se responsável por orientar e estabilizar as relações institucionais e sociais. Substituto secular para as Sagradas Escrituras, a lei fundamental desempenhou tanto uma relação com a moral, quanto remeteu ao procedimento especial junto ao legislativo, consolidando-se, em um sentido mais forte, como um conjunto de princípios imutáveis para além do alcance de qualquer instituição de governo, além da órbita social, econômica ou religiosa.

Assim, diante da iminente participação da classe operária na atividade legislativa, procurou-se limitar a soberania do parlamento. É o que se avaliou Carl Schmitt, especialmente na obra “Legalidade e Legitimidade14”, ao analisar o Estado Legislador. Se a constituição nada mais era que um contrato estabelecido entre o Estado e o povo, entre o soberano e o parlamento, de modo que aquele que impôs o contrato (o parlamento) deveria fiscalizar e defender seus interesses ante ao contratado (o monarca)15, haveria a possibilidade da constituição ser ameaçada pelo próprio legislador. Um poder distinto do executivo e do legislativo era necessário para, com imparcialidade, guardar a constituição16.

Sob a égide de uma soberania da razão constitucional em contraposição à razão do parlamento – ou à razão do povo, na expressão de Marx17 –, o poder judiciário torna-se, então, capaz de rever judicialmente a constitucionalidade das normas. O juiz, que deveria ser o humilde sacerdote do Parlamento, na fragilidade do Pai, ressuscita as ideias de universalidade e generalidade, as quais são capazes de, tal qual o direito natural, tornarem-se o espelho maleável de quem os maneja e observa.

Nesse período, que compreende o início do século XX, duas escolas travam uma batalha sobre como os juízes devem interpretar a lei. De um lado, o positivismo, munido de técnicas cada vez mais sofisticadas, percebia a ordem jurídica como um sistema coerente e científico, concebendo o direito como a produção legislativa feita por autoridades competentes politicamente para impor as normas jurídicas. Dever-se-ia respeitar a autoridade e o procedimento, tendo em vista, sobretudo, os limites formais de atuação dos juízes. De outro lado, nascia a Escola Livre de Direito, que questionava a rigidez positivista e vislumbrava o direito como um sistema aberto, repleto de lacunas a serem preenchidas pela discricionariedade dos juízes. Que o juiz deve criar o direito, sendo mais que um mero aplicador, na medida em que o império das leis aponta para além da letra fria e rígida do contrato e constantemente reformula seu significado, sendo o juiz o mais capacitado para reinterpretar as novas manifestações do espírito das leis consoante às Sagradas Escrituras. Renascia a autoridade arbitrária da lei divina, não sob forma de direito natural, mas sob a roupagem de cláusulas gerais e o entendimento de que a verdadeira interpretação destas deveria ser feita pelos varões mais capacitados do Estado de Direito: os juízes.

Pascal dizia: "Nunca se faz tão perfeitamente o mal como quando se faz de boa vontade”. Lembra Neumann18 que, antes de 1918, o que motivava a Escola Livre de Direito a defender a discricionariedade dos juízes era a possibilidade de implantar idéias progressistas num cenário reacionário. No entanto, no decorrer dos anos, tal doutrina serviu mais como forma de controle dos grupos de poder, como criador de uma barreira formal ante a crescente onda de materialização de direitos historicamente não reconhecidos às classes menos privilegiadas, como protetor dos interesses monopolistas. Aos amigos, a imparcialidade e espelho duro da lei, aos inimigos, a possibilidade de interpretação e desconstrução do significado.

As cláusulas gerais possibilitavam a criação de leis caracterizadas por uma falsa universalidade. Expressões como “saudável sentimento popular” e ofensa “aos bons costumes”, cujo conteúdo não é claro, permitiam implementar o ponto de vista dos políticos dominantes.

Assim, à indagação sobre quem é competente a interpretar e como interpretar a lei política apresenta-se duas respostas: a primeira com a submissão do Judiciário ao Parlamento, sem a liberdade para preencher supostas lacuna – como apregoa o positivismo –; a segunda resposta consiste na perspectiva da Escola Livre, em que o juiz está na posição de criar um novo direito, consoante ao seu arbítrio.

É uma ilusão acreditar que as reformas sociais ocorreriam apenas através da lei parlamentar e que as demais autoridades apenas como espelho duro das coisas refletiriam o prescrito, conforme o positivismo. De igual maneira, mais ingênuo é crer que a livre apreciação do juiz criando um novo direito estaria em conformidade com os intentos da democracia, sendo expressão de uma lei racional.

Esperar o parlamento solidamente discutir e decidir já não é mais uma alternativa para modernidade espumosa, de forma que o positivismo, com seus juízes soldados ou mudos, perde o protagonismo nesse embate acerca de quem e como deve ser feita a interpretação constitucional. Sobre o modo de interpretação, fato é que, se não se pode fugir das cláusulas gerais nem ficar preso à lei fria da lei positivista, quando inevitavelmente aparecem casos em que diretrizes amplas ou princípios são invocados, tornando-se necessário limitar o grau de discricionariedade, através de regras teóricas e práticas, a fim de assegurar integridade ao sistema. De outro lado, acerca do sujeito da soberania, tanto na criação de leis quanto na interpretação, irrompe a necessidade democrática de horizontalizar a participação: questiona-se a delegação ao Judiciário do monopólio da interpretação constitucional e retoma-se o conceito de soberania popular enquanto autoridade na construção do espaço público.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Rafael Guimarães Abras. Quem enterrará Polinices? : Breve ensaio sobre a relação histórica entre soberania, legitimidade e interpretação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8015, 11 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114194. Acesso em: 5 dez. 2025.

Mais informações

Artigo final apresentado para a Disciplina TEMAS DE FILOSOFIA DO ESTADO: LEGALIDADE E LEGITIMIDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, ministrada pelo Prof. Dr. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG - 07/12/2015.

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