Capa da publicação Alienação parental: o mito de Orestes no Judiciário
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Oresteia e alienação parental: um diálogo entre o mito e o Direito de Família

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10/06/2025 às 07:40
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A alienação parental é um drama ético que desestrutura vínculos afetivos e identidade infantil. Como a tragédia de Orestes ajuda a compreender seus efeitos jurídicos e psíquicos?

Resumo: Este artigo propõe uma leitura interdisciplinar entre a tragédia grega Oresteia, de Ésquilo, e o fenômeno contemporâneo da alienação parental, articulando elementos do direito, da psicologia e da sociologia, à luz do conceito de modernidade líquida, desenvolvido por Zygmunt Bauman. Partindo da análise simbólica da trajetória de Orestes — filho alienado que, ao reencontrar-se com a verdade, rompe o vínculo com a mãe e mergulha em culpa e sofrimento psíquico — o texto evidencia os efeitos devastadores da ruptura afetiva precoce na construção da identidade infantil. A partir disso, discute-se como, na atualidade, o crescimento dos casos de alienação parental não se deve apenas ao aumento dos divórcios, mas à forma como os adultos, imersos numa lógica narcisista, consumista e descartável das relações, lidam com a frustração conjugal e instrumentalizam os filhos como objetos de validação ou vingança. O artigo ressalta ainda a necessidade de uma atuação judicial firme, porém prioritariamente educativa, bem como da ampla disseminação de informações como estratégia preventiva. Ao final, conclui-se que compreender a alienação parental como drama ético e humano — e não apenas técnico ou jurídico — é fundamental para que o Direito se torne também um espaço de escuta, reparação e reconstrução simbólica dos laços familiares.

Palavras-chave: alienação parental; Oresteia; Zygmunt Bauman; modernidade líquida; vínculo afetivo; direito de família; psicologia do desenvolvimento.


Introdução

A trilogia trágica Oresteia, de Ésquilo, constitui um dos pilares da dramaturgia grega clássica e, ao mesmo tempo, uma das mais sofisticadas representações do drama familiar e da transição da vingança para a justiça institucionalizada. Escrita no século V a.C., a trilogia narra os eventos que se sucedem à Guerra de Troia, começando com o assassinato de Agamenon por sua esposa Clitemnestra, passando pela vingança matricida de Orestes e culminando em seu julgamento pelo tribunal do Areópago, criado pela deusa Atena. Mais do que uma sequência de eventos sangrentos, a Oresteia revela uma intricada teia de afetos, deveres, traições e culpas, oferecendo um retrato atemporal das consequências da ruptura dos laços parentais.

Este trabalho parte de uma releitura simbólica da Oresteia para abordar um tema jurídico e psicológico contemporâneo: a alienação parental. A trajetória de Orestes — separado do pai desde o nascimento, criado por uma mãe tomada pelo ressentimento, instigado à vingança por uma autoridade divina e lançado ao colapso psíquico após o matricídio — é aqui interpretada como um modelo arquetípico de filho alienado. O enredo trágico torna-se, assim, uma poderosa metáfora dos dilemas que ainda hoje acometem crianças e adolescentes em contextos de alta litigiosidade parental.

Ao articular a tragédia antiga com os desafios modernos do Direito de Família, o artigo pretende demonstrar que a alienação parental, longe de ser um fenômeno recente ou exclusivamente técnico, expressa um drama humano profundo: a destruição do vínculo fundante entre pai, mãe e filho. Por meio do paralelo com a Oresteia, busca-se evidenciar as consequências emocionais e existenciais da instrumentalização da criança nos conflitos conjugais, o papel transformador do Judiciário como mediador simbólico da reparação, e, sobretudo, a urgência de abordar a alienação parental com sensibilidade interdisciplinar, que una o direito, a psicologia e a cultura.


1. A Oresteia

A história da guerra de Troia se popularizou no filme de 2004, dirigido pelo diretor alemão Wolfgang Petersen1. A obra da teledramaturgia é uma adaptação da Ilíada do poeta grego Homero, concentrada na ira de Aquiles, ou seja, os últimos cinquenta dias da guerra que durou dez anos.

A deflagração inicial do conflito é atribuída à fuga — ou, segundo algumas versões, ao rapto — de Helena de Esparta por Páris, um dos príncipes de Troia. Após ter acolhido Páris como hóspede em seu palácio, que lhe roubou a esposa, o rei Menelau, traído de forma desonrosa, recorre ao irmão Agamenon, rei de Micenas, em busca de vingança. Agamenon então reúne uma poderosa coalizão de reis gregos, resultando em uma frota de mil navios, liderada por heróis como Aquiles, Odisseu, Ájax, Diomedes e Nestor.

A Ilíada tem início com o conflito entre Aquiles e Agamenon, líder supremo dos gregos, motivado pela disputa por Briseida, mulher capturada por Aquiles durante o saque de Lirnesso, cidade aliada de Troia na campanha grega. Quando Agamenon é forçado a devolver sua própria prisioneira, exige Briseida como compensação, ferindo profundamente a honra de Aquiles. Enfurecido, o herói se retira do combate e recusa-se a voltar à guerra, colocando em risco a vitória dos gregos sobre os troianos.

A versão romanceada dessa narrativa, inspirada na Ilíada de Homero, tornou-se amplamente conhecida através da adaptação cinematográfica contemporânea.

Entretanto, menos conhecido é o enredo ocorrido antes do início da batalha, em que Agamenon matou sua filha Ifigênia, episódio que não faz parte da Ilíada. No poema "Ifigênia em Áulis", de Eurípides, Agamenon ofende a deusa Ártemis ao matar um de seus cervos sagrados, ou ao se gabar de ser melhor caçador que ela. Como punição, Ártemis faz com que os ventos parem em Áulis (porto de onde partiriam as naus gregas), impedindo a frota de zarpar rumo a Troia. O adivinho Calcas então revela que a única forma da deusa permitir a viagem é com o sacrifício de Ifigênia, filha de Agamenon2.

Agamenon convoca Ifigênia a Áulis sob o falso pretexto de casá-la com Aquiles. Quando ela e sua mãe, Clitemnestra, chegam, Ifigênia descobre a verdade. Com o sacrifício de Ifigênia, Agamenon consegue finalmente partir com sua frota rumo a Troia. O sacrifício permite o começo efetivo da campanha contra Troia, dando início ao cerco que durou dez anos, mas planta a semente da tragédia pessoal de Agamenon, ao fim da guerra em que se saiu vitorioso3.

Após a vitória na Guerra de Troia, Agamenon retorna para sua terra natal trazendo como espólio de guerra a princesa troiana Cassandra 4, tomada como concubina. Sua chegada e trágico destino são narrados na trilogia Oresteia, de Ésquilo, apresentada pela primeira vez em 458 a.C., em Atenas.

Na primeira peça da trilogia, Agamenon, sua esposa Clitemnestra finge alegria ao recebê-lo, ocultando seus verdadeiros sentimentos de rancor. Ela o persuade a pisar em tapeçarias púrpuras, símbolo de honra reservada aos deuses, explorando sua hýbris — a arrogância que desafia os limites humanos e provoca a ira divina. Enquanto Agamenon toma banho no palácio, Clitemnestra o assassina, golpeando-o com uma lâmina (ou enredando-o, segundo algumas versões). Em seguida, ela também mata Cassandra, que já havia previsto seu destino, mas — como sempre em seu mito — foi ignorada.

A história pouco versada da queda de Agamenon no seu retorno ao lar é a que nos interessa neste artigo. A Oresteia consiste numa trilogia de tragédia grega escrita por Ésquilo, apontado como um dos mais importantes dramaturgos da Grécia Antiga. É composta pela primeira peça “Agamenon”, descrita acima com seu homicídio, seguida pelas “Coéferas”, quando os filhos de Agamenon, Orestes e Electra, se reúnem para vingar a morte do pai, e “As Eumênides”, última peça, em que Orestes, tendo cometido matricídio, busca sua purificação pelo julgamento através de um tribunal instituído por Atena, estabelecendo assim um dos primeiros precedentes jurídicos descritos que se tem notícias no mundo ocidental.

Essa transição, da justiça retributiva pessoal para a justiça institucionalizada, representa um dos mais antigos e poderosos símbolos da origem do Direito e do Estado de Direito. Ao final da trilogia, a substituição da vingança pela deliberação racional e legal marca um momento fundacional da civilização ocidental. Sigamos, então, à análise dessa passagem crucial.

Inicialmente, observa-se que Clitemnestra matou Agamenon de forma premeditada, cruel e simbólica, num dos momentos mais impactantes da tragédia grega. Clitemnestra não mata Agamenon apenas por ambição ou adultério — sua ação é movida por um complexo desejo de vingança, tanto pelo sacrifício de sua filha Ifigênia, como por sua longa ausência (dez anos), com o retorno vitorioso trazendo como concubina uma princesa troiana, humilhando-a publicamente. Em algumas versões, Clitemnestra desfere três golpes que vitimaram Agamenon, um para cada culpa: o sacrifício de Ifigênia, a guerra, e o adultério5.

Após o assassinato, Clitemnestra reivindica o ato como justo, um sacrifício em nome da filha morta. Seu discurso é de uma mulher que não se vê como criminosa, mas como instrumento da justiça divina.

O filho de Agamenon e Clitemnestra, Orestes, com a morte do pai é enviado ao exílio. A tragédia apresenta Orestes ainda criança nesse momento, o que sugere que era muito jovem quando da partida do pai, ou ainda não nascido, indicando que Clitemnestra estava grávida ao ser deixada pelo marido.

O detalhe da idade de Orestes lança mais uma luz sobre a profunda amargura de Clitemnestra, abandonada pelo marido em meio à gestação, enquanto ele partia para lutar por Helena, sua cunhada e irmã de Clitemnestra, tida como a mulher mais bela do mundo. Sentindo-se desprezada, substituída e traída, Clitemnestra não apenas cria o filho sozinha, mas vê-se reduzida a um papel secundário diante da obsessão heroica e egoísta de Agamenon. Essa ferida emocional, somada ao posterior sacrifício de sua filha Ifigênia, alimenta o ódio que culminará em sua vingança brutal: o assassinato do marido e de sua concubina ao seu retorno.

Quando se torna adulto, Orestes é incentivado por Apolo, ordenando-lhe que vingasse o assassinato do pai, mantando seus culpados: Clitemnestra e seu amante Egisto. A vingança através do matricídio é uma exigência divina, e uma condenação ao sofrimento psíquico e espiritual.

Retornando do exílio, Orestes se aproxima disfarçado, e com a ajuda da irmã Electra consegue entrar no palácio, matando Egisto primeiro, num ato rápido, e depois voltando-se contra a mãe.

No momento em que Clitemnestra compreende que está prestes a ser morta, ocorre o confronto verbal entre mãe e filho, em uma das passagens mais densas e perturbadoras do teatro trágico grego. A cena, situada em As Coéforas, é marcada por um ritual dramático de súplica: Clitemnestra ajoelha-se, rasga as vestes e expõe os seios que amamentaram Orestes 6, numa tentativa desesperada de evocação do vínculo materno.

Orestes, profundamente dividido entre a pietas filial e o mandato sagrado de vingar o assassinato de Agamenon, hesita diante da súplica. Sua resposta, no entanto, revela o peso trágico da decisão:

Tu me deste a vida, mas me lançaste na desgraça.

Ainda assim, Clitemnestra insiste, alertando o filho:

Teme a maldição de tua mãe!

Orestes, por sua vez, responde com firmeza implacável:

E como evitarei a de meu próprio pai, se agora eu hesitar? (...) O trágico destino de meu pai querido te impõe hoje a punição que mereces ”.

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O destino da mãe é selado. Orestes a conduz para o interior do palácio, repetindo o gesto ritual de hospitalidade que ela havia usado com Agamenon, e a mata fora de cena, conforme a convenção da tragédia ática. O impacto da morte é sentido não pelo espetáculo visual, mas pelas falas carregadas de horror e confusão que se seguem, as quais Orestes relata em cena e inicia sua própria queda:

“Moreia ou víbora desde seu nascimento, um ser capaz de envenenar pelo contato, mesmo sem a picada, apenas pela audácia e por seus pensamentos cheios de maldade (verso 1280 Coéforas). Agora irei andando como um vagabundo, banido desta terra, pelo mundo afora, deixando atrás de mim uma fama hedionda por toda a vida e mesmo após a morte (verso 1345 Coéforas) Ai! Ai de mim! Criadas! Já as vejo ali, como se fossem Górgonas, com roupas negras, envoltas em muitas serpentes sinuosas! Não posso mais ficar aqui! Não posso mais! (verso 1355 Coéforas)”

Após o matricídio, Orestes entra em colapso psicológico e começa a ver as Erínias (fúrias), divindades vingadoras do sangue derramado de parentes, que o perseguem incansavelmente. Então foge em agonia, proclamando ter cumprido o dever e, portanto, não deveria estar carregando uma culpa insuportável. Orestes realiza a justiça, mas transgride a ordem natural cometendo o maior tabu dos gregos - o matricídio, se tornando ao mesmo tempo herói e criminoso. A peça central do ato é: Orestes é culpado ou justificado?

Enquanto Apolo defende Orestes, pois ordenou a vingança, as Erínias o perseguem, já que o crime contra a mãe é imperdoável segundo as leis antigas. Orestes busca a deusa Atena, que intervém para pôr fim ao ciclo de sangue, estabelecendo um tribunal de julgamento composto por cidadãos atenienses, o Areópago7. Pela primeira vez na tradição mítica, um crime de sague seria julgado não pela vingança pessoal, mas por um colegiado imparcial.

Na acusação, as Erínias, guardadoras da justiça ancestral, argumentam que o assassinato da mãe é inaceitável, qualquer que seja o motivo. Na defesa, Apolo advoga por Orestes, dizendo que o laço entre pai e filho é o mais importante, e que a ordem divina justificava a ação. Na votação os jurados empatam, e Atena, como presidente do tribunal, dá o voto de Minerva8 a favor de Orestes, que é absolvido.

Após, Atena convence as Eríneas a aceitarem a decisão, oferecendo-lhes o papel como Eumênides (as benevolentes)9, protetoras da cidade e da justiça, encerrando o ciclo de vingança familiar e inaugurando a justiça civilizada, baseada na deliberação, lei e instituições10.

A composição final (1365) versa: “O povo preferido por Atena acaba de ganhar a paz aqui para felicidade de seus lares, e assim vemos selar-se a união entre as Parcas e Zeus onividente! - Gritai agora, obedecendo aos ritos, numa resposta ao nosso canto estrídulo!” celebra o desfecho do julgamento de Orestes e a instalação de um novo regime de justiça em Atenas. O povo preferido de Atena (os atenienses) ganha a paz em razão da interrupção do ciclo de vingança e a instituição da justiça civil. A “felicidade de seus lares” marca o fim da instabilidade e o medo causado pelas constantes vinganças de sangue. As Parcas eram as divindades do destino, que nem mesmo os deuses poderiam desafiar facilmente. Sua união com Zeus (o destino e a autoridade divina racional), simboliza a nova ordem da justiça e sua elevação, como instrumento legítimo.

O coro das Eumênides, antes temíveis como Erínias, agora transformadas em protetoras benevolentes da cidade, convida à celebração ritual. O “grito estrídulo” representa a antiga voz da vingança, agora domesticada e incorporada ao novo culto estatal e civilizatório. O povo deve responder, mas não com medo ou ódio, e sim com respeito e adesão à nova ordem sagrada da justiça institucionalizada.

O trecho celebra a transição da barbárie para a civilização, da justiça baseada em vingança familiar para uma ordem jurídica pública e racional.


2. A alienação parental e a Oresteia

A denominação Oresteia atribuída à trilogia acima resumida deriva do nome de seu personagem central, Orestes, figura trágica que encarna o drama da herança sangrenta e da ruptura familiar. Ainda criança, Orestes vê-se privado do pai, assassinado por sua mãe, Clitemnestra. Já adulto, tomado pelo inconformismo e pela dor de restaurar a honra paterna, ele se volta contra a mãe — e a mata, reproduzindo o mesmo padrão de violência que acreditou ter vitimado Agamenon.

A trajetória de Orestes pode ser lida, sob uma perspectiva contemporânea, como uma representação simbólica arcaica do que hoje se compreende como alienação parental. No mito, Orestes é separado de seu pai, Agamenon, ainda na infância, e cresce sob a sombra de uma narrativa materna marcada pela hostilidade e o ressentimento. Quando retorna na idade adulta e descobre que o pai foi assassinado por sua própria mãe, rejeita visceralmente o vínculo materno, atribuindo-lhe a perda do laço paterno e a desintegração da estrutura familiar que o constituía. Essa reação espelha, no plano psicológico, o comportamento observado em filhos alienados que, ao alcançarem maturidade emocional e autonomia, passam a rejeitar o convívio com o genitor alienador, ressentidos por terem sido afastados injustamente do outro genitor. Assim, a tragédia de Ésquilo antecipa, em linguagem mítica, conflitos familiares profundos que, ainda hoje, desafiam o campo do direito, da psicologia e da ética, ressaltando as consequências devastadoras da manipulação afetiva sobre a formação da identidade e da memória afetiva de um filho.

A alienação parental tem sido objeto de intenso debate jurídico, psicológico e social. Muito além de um mero conflito entre genitores, representa a ruptura da tessitura afetiva que deveria estruturar a subjetividade da criança. Para além dos diagnósticos técnicos, cabe ao operador do Direito reconhecer que esse fenômeno carrega marcas de tragédia — no sentido clássico e psicanalítico do termo.

Apesar de alguns segmentos da psicologia no país11 insistirem que a alienação parental é centrada na elaboração das teorias de Richard Gardner de 198512, a verdade é que o fenômeno já aparece na descrição dos divórcios de alto litígio desde o século XIX nos tribunais dos Estados Unidos e Inglaterra. Ainda em meados de 1940, clínicos que trabalhavam com famílias divorciadas começaram a publicar suas observações sobre pais que tentavam destruir o amor do filho pelo outro genitor13 e recrutar seus filhos como “aliados” contra o genitor rejeitado14. Portanto, parece-nos que reduzir o construto da alienação parental às formulações de Gardner é fazer tábua rasa dos estudos e achados científicos de milhares de cientistas que se debruçam sobre o mesmo tema à séculos. Assim como os negadores do aquecimento global e os criacionistas, os negadores da alienação parental prosperam em um mundo pós-fato 15.

Apesar da antiguidade dos estudos sobre a matéria, o aumento de casos de alienação parental nos tempos atuais pode estar profundamente relacionado às transformações sociais descritas por Zygmunt Bauman como características da modernidade líquida — uma era marcada por relações instáveis, descartáveis e regidas pelo imediatismo16.

Na sociedade contemporânea, os laços afetivos tornaram-se frágeis, e o fim dos relacionamentos é vivenciado sob uma lógica de consumo: tudo o que não satisfaz imediatamente é descartado. Esse mesmo padrão é aplicado às relações familiares, em que o ex-parceiro passa a ser visto como um “objeto inútil” e, em muitos casos, a criança é transformada em instrumento de validação emocional, disputa de poder ou vingança.

Diferente de épocas em que os vínculos eram mais duradouros e estruturados, a atual valorização extrema do individualismo, somada à urgência de restaurar a autoestima após o fim da conjugalidade, leva muitos pais a priorizarem seus próprios desejos em detrimento das necessidades emocionais dos filhos. Isso resulta em uma instrumentalização da criança, que deixa de ser vista como sujeito de direitos e passa a ser usada para ferir, excluir ou apagar o outro genitor da vida familiar.

Portanto, o aumento dos casos de alienação parental não nos parece ser apenas consequência da elevação do número de divórcios, mas sobretudo do modo como os adultos modernos lidam com o rompimento afetivo, imersos numa cultura do descarte, da substituição e da falta de empatia. A lógica relacional contemporânea — volátil, narcisista e consumista — cria o ambiente propício para a proliferação de condutas alienantes.

Quando criança é condicionada — muitas vezes inconscientemente — a rejeitar um dos genitores, essa rejeição, ainda que sustentada por lealdade ao alienador, é antinatural, e provoca um conflito interno profundo. A criança alienada geralmente internaliza essa culpa, ainda que não a compreenda ou nomeie. Na fase adulta, esse sentimento pode emergir como culpa não elaborada, ansiedade relacional, ou até mesmo rejeição ao próprio alienador.

Em estudo realizado em 2005 e publicado em 2006, pelos pesquisadores Amy JL Baker e Douglas Darnall, foram identificadas 1.300 ações alienadoras, descritas pelos 97 participantes entre adultos que haviam sido alienados pelos seus pais, e pais que foram afastados de seus filhos. Os resultados revelaram 66 tipos de estratégias, 11 mencionadas por pelo menos 20% da amostra. Houve sobreposição considerável, mas não completa, entre as estratégias identificadas pelos pais-alvo e aquelas descritas por filhos adultos (de outro estudo)17.

Darnall (2006) define alienação parental como “qualquer constelação de comportamentos, conscientes ou inconscientes, que possam evocar uma perturbação na relação entre a criança e o outro genitor”. O estudo foi conduzido para começar a "desvendar" esse conceito de alienação, examinando detalhadamente os tipos de comportamentos ou estratégias que se acredita que pais alienadores exibem.

A lista dessas estratégias identificadas pelos estudos dos psiquiatras americanos pode ser vista, com algumas adaptações de cultura e linguagem, nos incisos do artigo 2º, parágrafo único da nossa Lei 12.318/2010: I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; II - dificultar o exercício da autoridade parental; III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor; IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.

Já a Lei 13.431/2017 dispõe que o ato de alienação parental é forma de violência psicológica perpetrada contra a criança por um dos pais ou guardiões, na qual os comportamentos emitidos pela parte alienadora têm como função hostilizar com o intuito de afastar a parte alienada do convívio com a criança. No mesmo sentido do regramento legal, “alguns autores consideram a AP como uma forma de abuso psicológico na infância (Baker, 2010; Baker & Verrocchio, 2013, 2014; Gama, 2019), pois as consequências relatadas pelos sujeitos que vivenciaram a AP na infância são semelhantes às apresentadas em outras formas de violência psicológica (Baker, 2010; Bernet et al., 2020; Boch-Galhau, 2018, 2020; Harman et al., 2018; Kruk, 2018)18.

Não apenas na lei brasileira, o construto da alienação parental acabou por incorporado também pelo DSM-5 em três diagnósticos específicos: 1 Criança afetada por sofrimento no relacionamento parental (V61.29), 2 Problema relacional pai-filho (V61.20) e 3 Abuso psicológico infantil (995.51). Segundo Joshi (2020), os membros da Força-Tarefa do DSM-5 "nunca disseram que duvidavam da realidade ou da importância da alienação parental”. No entanto, eles concluíram que a alienação parental não atendia à definição padrão de um transtorno mental, ou seja, o requisito de que um transtorno exista como uma condição interna que reside dentro de um indivíduo. Consequentemente, a Força Tarefa do DSM-5 “disse que a alienação parental deveria ser considerada um exemplo de um problema relacional porque envolve uma perturbação no relacionamento da criança com um ou ambos os pais”. “Criança afetada por sofrimento no relacionamento parental” (CAPRD)19.

Ainda de acordo com o autor, os danos psicológicos associados à alienação parental foram bem pesquisados e documentados: Wallerstein, J., & Blakeslee, S. (1989). Second chances: Men, women, and children a decade after divorce, Ticknor & Fields; Baker, A. (2005). The long-term effects of parental alienation on adult children: A qualitative research study. American Journal of Family Therapy, 33, 289–302.

Assim como Clitemnestra reivindica o assassinato do marido como um ato de justiça — um sacrifício legitimado pela morte da filha — e discursa não como uma criminosa, mas como instrumento da justiça divina, o genitor alienador pode igualmente alimentar desconfiança intensa e temor em relação ao ex-cônjuge, acreditando sinceramente que este é, na melhor das hipóteses, irrelevante, e na pior, uma ameaça à integridade do filho. A partir dessa convicção, consolida-se uma das crenças centrais da alienação parental: a ideia de que o filho não precisa da presença do outro genitor em sua vida20.

Na tragédia grega, Orestes sequer conviveu com o pai, que partiu ainda durante a gestação de sua mãe, movido por uma busca egoísta pela kleos — a glória imortal tão valorizada pelos heróis da Antiguidade. Apesar da ausência real, a imagem idealizada do pai herói passou a exercer enorme influência sobre Orestes através das sugestões emanadas por Apolo, a ponto de levá-lo a se voltar contra sua própria mãe, única figura de afeto presente em sua vida até então. Esta, ao ser responsabilizada por impedir a construção desse vínculo paternal essencial, é simbolicamente rotulada como “víbora” por Orestes.

Sob a ótica da psicologia do desenvolvimento, a narrativa ilustra de forma trágica como a criança é marcada pela necessidade de vínculo emocional com ambas as figuras parentais. A ausência de um dos genitores — especialmente quando envolta em idealizações ou conflitos — pode gerar lacunas afetivas profundas, levando a sentimentos ambivalentes, rupturas internas e, por vezes, atitudes destrutivas em busca de equilíbrio emocional. Orestes, privado da possibilidade de integrar as imagens materna e paterna de forma saudável, reage ao vazio paterno projetando frustração e hostilidade sobre a mãe, demonstrando como a presença equilibrada de ambos os pais é fundamental para a construção da identidade e da saúde psíquica da criança 21.

É importante destacar que, na literatura nacional, Gomide (2024), ao desenvolver a Escala de Alienação Parental, evidenciou em suas pesquisas que comportamentos alienantes podem ser praticados por genitores de ambos os sexos, sem distinções de proporção. A única exceção observada refere-se à conduta de dificultar ou impedir o relacionamento da criança com o outro genitor, comportamento este que, de maneira recorrente, está associado ao genitor que detém a guarda do filho.22.

Os estudos para aferição sobre a distinção entre os gêneros na incidência das práticas alienantes também foram conduzidos em Roma e nos Estados Unidos, chegando-se às mesmas conclusões acima23.

A rejeição ao alienador na fase adulta é também um ato de vingança psíquica, mas que não alivia a dor infantil reprimida. Como Orestes, o filho busca justiça emocional, mas encontra um campo de ruínas, onde nenhum afeto é mais confiável.

Na Coéforas, segunda peça da Oresteia, Orestes é instigado a vingar a morte do pai, Agamenon, assassinado pela mãe, Clitemnestra. Mesmo reconhecendo a necessidade de cumprir a ordem divina e moral, Orestes hesita. Há um afeto residual, um vínculo materno que o impede de agir sem dor. Após matá-la, ele mergulha em delírio e é perseguido pelas Erínias, símbolos da culpa e do remorso. O sentimento insuportável da culpa certamente se apresenta como o efeito mais doloroso descrito pelas vítimas da alienação parental na vida adulta24.

Fidler e Bala (2010) descrevem também os sentimentos experimentados pela criança, ainda como vítima dos atos de alienação parental: 1. Teste de realidade deficiente; 2. Operações cognitivas ilógicas; 3. Processamento de informações simplista e rígido; 4. Percepções interpessoais imprecisas ou distorcidas; 5. Funcionamento interpessoal perturbado e comprometido; 6. Ódio a si mesmo; 7. Baixa autoestima (internalizar partes negativas do pai rejeitado, dúvida sobre suas próprias percepções, auto culpa por rejeitar o pai ou abandonar os irmãos, desconfiança, sentir-se indigno ou não amado, sentir-se abandonado) ou autoestima ou onipotência inflada; 8. Pseudomaturidade; 9. Problemas de identidade de gênero; 10. Diferenciação deficiente do eu (enredamento); 11. Agressão e transtornos de conduta; 12. Desrespeito às normas sociais e à autoridade; 13. Controle deficiente dos impulsos; 14. Constrição emocional, passividade ou dependência; e a 15. Falta de remorso ou culpa.

A transgeracionalidade da violência também é destacada:

“(...) Consistente com estudos de caso e literatura clínica, os entrevistados de Baker relataram que ficaram com raiva e ressentidos por serem emocionalmente manipulados e controlados; isso acabou afetando negativamente seu relacionamento com o genitor alienador. Cerca de metade da amostra de Baker relatou ter se alienado de seus próprios filhos. (...)”25.

Orestes vive a culpa pelo rompimento de um vínculo essencial (a mãe), mesmo que esse rompimento tenha sido “justificado” por ela ter matado seu pai. Assim como a criança alienada, ele sofre por ter participado da destruição de uma relação originária com a mãe, e o que resta não é alívio, mas dor psíquica irreparável.

A Oresteia, ao narrar a maldição da Casa de Atreu, marcada por homicídios intrafamiliares que se perpetuam entre gerações, indica que esse ciclo só se rompe com a criação de um tribunal, em Eumênides, no qual Orestes é julgado e absolvido, inaugurando o primado da justiça pública sobre a vingança privada. O conflito doméstico se resolve (quando se resolve) com a intervenção de uma instância simbólica externa — o Judiciário — que deve restaurar a justiça não apenas como reparação, mas como reordenação simbólica do lugar de cada um.

Fidler e Bala (2010) afirmam que, embora possa existir resistência às ordens judiciais, a reversão da guarda e a suspensão temporária do contato com o genitor alienador, instrumentos válidos e relevantes no arsenal judicial para o enfrentamento da alienação parental, estes devem ser empregados apenas como último recurso. O papel prioritário do juiz, salvo nas situações mais complexas, deve ser de caráter educativo, atuando como uma figura de autoridade que oriente ambos os genitores sobre os efeitos nocivos de suas condutas na vida emocional e psicológica dos filhos.

Ainda segundo os autores, o estabelecimento claro de expectativas comportamentais e consequências jurídicas por parte do magistrado tende a ser eficaz na maioria dos casos. Apenas genitores que apresentem transtornos de personalidade mais graves ou resistentes à autoridade judicial tenderão a desafiar tais orientações. Nestes casos excepcionais, será necessário adotar medidas mais rigorosas e especializadas, compatíveis com o nível de gravidade da alienação parental em curso26.

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Sobre a autora
Beatrice Merten Rocha

Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Beatrice Merten. Oresteia e alienação parental: um diálogo entre o mito e o Direito de Família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8014, 10 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114344. Acesso em: 14 jun. 2025.

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