5. Causas Indiretas
5.1. Controle Judicial dos Atos Administrativos
Por mais paradoxal que possa parecer, o simulacro de devido processo legal tornou-se ainda mais recorrente após a edição da Súmula 665 do Superior Tribunal de Justiça, a qual impôs novas limitações ao controle judicial dos atos administrativos, especialmente no tocante à revisão do mérito das sanções disciplinares. Isso se deve ao fato de que, diante das barreiras para o reconhecimento da nulidade desses atos, os quais possuem presunção - juris tantum - de veracidade, aqueles que conduzem tais “simulacros de devido processo legal” passaram a agir com ainda maior liberdade, confiantes na dificuldade de revisão de decisões viciadas.
5.2. Ausência de Individualização da Pena Disciplinar
Outro fator que pode indiretamente reduzir a proteção da estabilidade, é a Súmula 650 do Superior Tribunal de Justiça:
“A autoridade administrativa não dispõe de discricionariedade para aplicar ao servidor pena diversa de demissão quando caracterizadas as hipóteses previstas no art. 132. da Lei n. 8.112/1990.”
É fato que a referida Súmula, à primeira vista, possui aplicação restrita às infrações disciplinadas pela Lei Federal nº 8.112/90, sendo certo que há outros regimes jurídicos adotam regramentos significativamente distintos e incompatíveis com tal entendimento. De fato, a título de exemplo, o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis do Estado de Goiás, instituído pela Lei nº 20.756, de 28 de janeiro de 2020, apresenta uma técnica legislativa mais alinhada aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, prevendo formas alternativas de imposição de penalidades. O artigo 202 desse diploma normativo estabelece, por exemplo, mecanismos diferenciados para a aplicação das sanções disciplinares, tais como:
“Art. 202. Constitui transgressão disciplinar e ao servidor é proibido:
LVI - fraudar o próprio registro de frequência ou de outrem: penalidade: suspensão de 61 (sessenta e um) a 90 (noventa) dias ou demissão” (g.n.)
Não obstante, é fato que o entendimento consolidado na referida Súmula poderá ser estendido a alguns Estados e Municípios, o que suscita grande preocupação, especialmente nos casos de tipos abertos, em que a discricionariedade na tipificação da infração com alguma frequência resulta em decisões arbitrárias. Essa indeterminação normativa amplia o risco de interpretações subjetivas, fragilizando a segurança jurídica e comprometendo os princípios da proporcionalidade e razoabilidade na aplicação das sanções disciplinares.
5.3. Fim do regime único
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao reconhecer o fim do regime único, decidiu que a Constituição permite a contratação de servidores públicos pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sem a garantia de estabilidade.
6. Conclusão – Eficiência e Garantismo
A estabilidade no serviço público, longe de ser um privilégio, constitui uma garantia essencial para a preservação da impessoalidade, da continuidade administrativa e da independência funcional do servidor no exercício de suas atribuições. No entanto, as recorrentes tentativas legislativas e administrativas de reduzir ou extinguir essa prerrogativa revelam uma preocupante tendência de fragilização da Administração Pública, sujeitando-a ainda mais a influências políticas e interesses transitórios de governos em exercício.
Ainda que se reconheça a necessidade de aprimoramento dos mecanismos de avaliação do desempenho funcional, a solução não reside na supressão da estabilidade, mas sim na sua modernização, mediante a adoção de critérios objetivos, periódicos e transparentes de aferição da eficiência do servidor. O estabelecimento de padrões rigorosos de avaliação, baseados em indicadores mensuráveis e dissociados de juízos discricionários ou subjetivos, assegura um equilíbrio adequado entre a proteção contra perseguições e a exigência de excelência no serviço público.
Portanto, a estabilidade deve ser preservada como um instrumento de fortalecimento institucional, mas vinculada a um sistema de avaliação que garanta eficiência, responsabilidade e comprometimento do servidor com o interesse público. Somente assim será possível conciliar a segurança jurídica necessária ao bom funcionamento da administração pública com a exigência de resultados efetivos na prestação dos serviços à sociedade.
Notas
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 34ª edição, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, Editora Malheiros, São Paulo, 2008, pág. 450.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional, 38ª edição, Editora Malheiros, São Paulo, 2015, pág.709.
FILHO, João Rodrigues Guimarães. A Estabilidade Do Servidor Público Concorre Para A Manutenção Do Interesse Público E Eficiência Na Administração Pública, Monografia apresentada à Coordenação Geral da PósGraduação, da Pesquisa e Extensão, do Instituto de Ciências Sociais – ICS do Centro de Ensino Unificado do Distrito Federal, Brasília, 2004, pág. 10.
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Enciclopédia Britannica - “Spoils System": “ sistema de despojos , prática em que o partido político que vence uma eleição recompensa seus trabalhadores de campanha e outros apoiadores ativos por nomeação para cargos governamentais e com outros favores. O sistema de despojos envolve a atividade política de funcionários públicos em apoio ao seu partido e a remoção dos funcionários do cargo se seu partido perder a eleição. Uma mudança no controle partidário do governo necessariamente leva novos funcionários a altos cargos com responsabilidade política, mas o sistema de despojos estende a rotatividade de pessoal para cargos governamentais rotineiros ou subordinados.” Fonte: https://www.britannica.com/topic/spoils-system - 05.02.2.025.
Enciclopédica Britânica - : https://www.britannica.com/topic/spoils-system - 05.02.2.025.
Enciclopédia Britannica - A Lei do Serviço Civil Federal de Pendleton de 1883 forneceu a base inicial para a adoção do sistema de mérito no recrutamento de funcionários federais e, no final do século 20, os sistemas de mérito substituíram quase completamente o sistema de despojos nos níveis federal, estadual e municipal de governo.
ARAÚJO, Flávia Pessoa de. Estabilidade Do Servidor Público: Limites E Possibilidades Dentro Da Proposta Da Nova Reforma Administrativa (Pec Nº 32/2020), Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito, Santa Rita, 2020.
Enciclopédia Britânica, idem.
BRASIL, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1934 - Art. 169. Os funccionarios publicos, depois de dois annos, quando nomeados em virtude de concurso de provas, e, em geral, depois de dez annos de effectivo exercicio, só poderão ser destituidos em virtude de sentença judiciaria ou mediante processo administrativo, regulado por lei, e, no qual lhes será assegurada plena defesa.
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BRASIL, Constituição dos Estados Unidos do Brasil, 1.946 –
Art 187 - São vitalícios somente os magistrados, os Ministros do Tribunal de Contas, titulares de Ofício de Justiça e os professores catedráticos.
Art 188 - São estáveis:
I - depois de dois anos de exercício, os funcionários efetivos nomeados por concurso;
II - depois de cinco anos de exercício, os funcionários efetivos nomeados sem concurso.
Parágrafo único - O disposto neste artigo não se aplica aos cargos de confiança nem aos que a lei declare de livre nomeação e demissão.
Art 189 - Os funcionários públicos perderão o cargo:
I - quando vitalícios, somente em virtude de sentença judiciária;
II - quando estáveis, no caso do número anterior, no de se extinguir o cargo ou no de serem demitidos mediante processo administrativo em que se lhes tenha assegurado ampla defesa.
Parágrafo único - Extinguindo-se o cargo, o funcionário estável ficará em disponibilidade remunerada até o seu obrigatório aproveitamento em outro cargo de natureza e vencimentos compatíveis com o que ocupava.
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BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 1.967 - Art 177 - Fica assegurada a vitaliciedade aos Professores catedráticos e titulares de Oficio de Justiça nomeados até a vigência desta Constituição, assim como a estabilidade de funcionários já amparados pela legislação anterior.
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 1967 - Art 178 - Ao ex-combatente da Força Expedicionária Brasileira, da Força Aérea Brasileira, da Marinha de Guerra e Marinha Mercante do Brasil que tenha participado efetivamente de operações bélicas na Segunda Guerra Mundial são assegurados os seguintes direitos: a) estabilidade, se funcionário público...”
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BRASIL, Constituição Federal. Art. 41, § 1º O servidor público estável só perderá o cargo:
I - em virtude de sentença judicial transitada em julgado;
II - mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa;
III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa...”
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição, 6ª edição, editora Malheiros, São Paulo, 2009,pág. 376.
No setor privado há a estabilidade provisória, reconhecida no caso de (i) gestantes, (ii) dirigentes sindicais, membros da CIPA, (iii) vítimas de acidente do trabalho, etc.
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Políticas Públicas: Conjunto de ações e diretrizes permanentes do Estado voltadas para atender às necessidades da sociedade em áreas essenciais como saúde, educação e segurança. Caracterizam-se pela continuidade, independentemente das mudanças de governo, e são formuladas com base no interesse público.
Políticas de Governo: Estratégias e ações adotadas pelo governo em exercício para implementar suas prioridades e diretrizes, frequentemente alinhadas à sua ideologia ou plano de gestão. Em muitos casos, podem ser modificadas ou descontinuadas por governos subsequentes, especialmente quando há mudanças de orientação política.
Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito.
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BRASIL, Constituição Federal, 1988, Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público,
§ 1º O servidor público estável só perderá o cargo
III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.
CNN Brasil. 8. em cada 10 brasileiros são a favor da demissão de servidores por má performance, diz Datafolha” - https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/8-em-cada-10-brasileiros-sao-a-favor-da-demissao-de-servidores-por-ma-performance-diz-datafolha/ - 05/02/2024.
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Câmara Federal . Agência Câmara de Notícias - Professores do setor público temem perda de estabilidade com reforma administrativa - Notícias - Portal da Câmara dos Deputados
FERNANDES, Antonio Scarance, Processo Penal Constitucional, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2003 pág. 58.
COSTA, José Armando da. Processo Administrativo Disciplinar, 6ª. edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2011, pág. 117.
Não se pode perder de vista que, ao contrário do impedimento, a suspeição revela-se de dificílima comprovação.
FERRAZ, Sérgio, DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo, 2ª edição, editora Malheiros, São Paulo, 2007, pág.137.
Idem.
Instituição em que os Membros se acham muito menos suscetíveis a pressões.
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SÃO PAULO, Município, Compete ao Departamento de Procedimentos Disciplinares (PROCED), por meio de suas Comissões Processantes Permanentes, a condução de Sindicâncias, Inquéritos Administrativos, Processos Sumários e Procedimentos Sumários (exceto quanto aos servidores integrantes dos quadros da Guarda Civil Metropolitana, que são regidos pela Lei 13.530/2003).
Incumbe também a PROCED a condução dos procedimentos de exoneração no interesse do serviço público, aplicáveis a servidores em estágio probatório, nos casos previstos no artigo 19 da Lei 8989/79. https://capital.sp.gov.br/web/procuradoria_geral/w/duvidas/1217. A respeito, vide: DECRETO Nº 43.233 de 22 de Maio de 2003.
SÃO PAULO, Lei Complementar n. 1.419. de 27 de dezembro de 2.024.
Numa primeira tentativa a proposta de emenda não atingiu o quórum necessário.
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SÃO PAULO, MENDA CONSTITUCIONAL N° 55, DE 27 DE NOVEMBRO DE 2024
Altera a redação da Constituição do Estado na forma que especifica.
A MESA DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO, nos termos do § 3° do artigo 22 da Constituição do Estado, promulga a seguinte Emenda ao texto constitucional:
Artigo 1° - O artigo 255 da Constituição do Estado passa a vigorar com a seguinte redação:
"Artigo 255 - O Estado aplicará, anualmente, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) da receita resultante de impostos, incluindo recursos provenientes de transferências , para cumprir o disposto no "caput" do artigo 212 da Constituição Federal." (NR)
Artigo 2° - Fica acrescentado à Constituição do Estado o artigo 217-A, com a seguinte redação:
"Artigo 217-A - O Poder Executivo aplicará, anualmente, além dos recursos previstos no artigo 255 e no item 1 do parágrafo único do artigo 222 desta Constituição, no mínimo 5% (cinco por cento) da receita resultante de impostos, incluindo recursos provenientes de transferências, em despesas com educação ou em ações e serviços públicos de saúde ou em ambos, observando o disposto no § 2° do artigo 198 e no § 1° do artigo 212 da Constituição Federal." (NR)
Artigo 3° - Fica revogado o inciso IX do artigo 99 da Constituição do Estado.
Artigo 4° - Esta Emenda Constitucional e sua Disposição Transitória entram em vigor na data de sua publicação.
DISPOSIÇÃO TRANSITÓRIA
Artigo único - Enquanto não for editada lei dispondo sobre a competência para a realização de procedimentos administrativos disciplinares não regulados por lei especial, caberá à Procuradoria Geral do Estado fazê-lo . Destaques não originais.
Não há, nesta observação, qualquer denúncia de futura violação ao devido processo legal pleno e efetivo, mesmo porque, até o presente momento o novo modelo ainda não se instaurou. Espera-se e confia-se que serão respeitadas todas as garantias constitucionais.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 25ª edição, Editora Malheiros, São Paulo, 2008, pág. 112.
Tipos abertos são aqueles nos quais a conduta considerada ilícita não vem descrita de forma pormenorizada.
Caminho difícil de se trilhar, notadamente quando o próprio Judiciário, a despeito de expressa determinação contida no art. 489, § 1º, IV, do Código de Processo Penal, tem entendido que o juiz não é obrigado a se manifestar sobre todas as alegações das partes. Superior Tribunal de Justiça: EDcl nos EDcl no REsp 96051 / PR, EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL 1996/0031611-2, 15/06/1998.
V.g.: União, Lei 8.112/90.
V.g.: Estado de São Paulo, Lei 10.261/68.