Capa da publicação Fim da estabilidade do servidor: a quem interessa?
Capa: Sora
Artigo Destaque dos editores

A quem interessa o fim da estabilidade do servidor público?

Exibindo página 1 de 2
13/06/2025 às 14:36

Resumo:

- A estabilidade no serviço público é uma garantia constitucional importante para proteger a imparcialidade e a independência funcional dos servidores.
- A origem da estabilidade remonta ao "spoils system" nos Estados Unidos, que resultou em demissões arbitrárias e ineficiência administrativa.
- No Brasil, a estabilidade foi inicialmente inserida pela Lei 2.924/1915 e posteriormente incorporada nas Constituições de 1934, 1946 e 1988, enfrentando desafios de restrição e supressão.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A estabilidade do servidor público está sob ataque. Quais riscos institucionais decorrem da flexibilização dessa garantia constitucional?

Sumário: 1. Nota introdutória. 2. A estabilidade do servidor público. 2.1. Spoils system – sistema de despojos – 1.812. 2.2. Lei do Serviço Civil de Pendleton (16 de janeiro de 1883). 2.3. Brasil. 2.4. Das estabilidade nas Constituições brasileiras. 3. Estabilidade no serviço público - garantia ou privilégio. 4. Estabilidade - extinção e/ou restrição – iniciativas normativas. 4.1. A Emenda Constitucional 32/2020. 4.2. Projeto de Lei Complementar 550/2018. 4.3. Violações indiretas. 4.3.1. Forma dissimulada - simulacro de devido processo legal. 4.3.2. Simulacro de devido processo legal - parcialidade. 4.3.3. Simulacro de devido processo legal - contraditório e dialética. 4.3.4. Simulacro de devido processo legal – ocultação das provas existentes. 5. Causas indiretas. 5.1. Controle judicial dos atos administrativos. 5.2. Ausência de individualização da pena disciplinar. 5.3. Fim do regime único. 6. Conclusão – eficiência e garantismo.


1. Nota Introdutória

A estabilidade no serviço público, concebida como instrumento de proteção à imparcialidade, à independência funcional e à continuidade administrativa, tem sido objeto de constante desconstrução institucional. Dentre as iniciativas explícitas que visam sua restrição — ou até mesmo sua supressão — destaca-se a Proposta de Emenda à Constituição nº 32/2020, que representa significativo esforço legislativo no sentido de reformular o regime jurídico dos servidores públicos.

Contudo, para além das investidas diretas, observam-se mecanismos mais sutis, porém igualmente preocupantes, de esvaziamento da estabilidade. É o que ocorre, por exemplo, na condução inadequada de procedimentos disciplinares, utilizados não raras vezes como instrumento de pressão ou retaliação, comprometendo a segurança jurídica que o instituto da estabilidade visa assegurar.

Ademais, verifica-se que a jurisprudência, embora majoritariamente sensível à relevância da estabilidade como garantia institucional, por vezes contribui para sua fragilização. Isso se evidencia quando o Poder Judiciário, invocando o fundamento da independência das instâncias, recusa-se a examinar o conteúdo das decisões administrativas disciplinares, limitando-se ao controle meramente formal do procedimento.

É nesse contexto de tensionamento entre as garantias constitucionais e as investidas legislativas e práticas administrativas que se insere a presente reflexão, cujo objetivo é analisar criticamente os riscos contemporâneos à estabilidade do servidor público e propor uma releitura comprometida com a preservação de sua função institucional.


2. A Estabilidade do Servidor Público

A estabilidade, tradicionalmente vinculada ao regime jurídico dos servidores públicos, constitui, segundo o clássico magistério de Hely Lopes Meirelles, “uma garantia constitucional de permanência no serviço público, concedida ao servidor que, nomeado para cargo de provimento efetivo, tenha sido aprovado no estágio probatório de três anos.”1 Por sua vez, o cargo de provimento efetivo — condição indispensável à aquisição da estabilidade — é definido por José Afonso da Silva como aquele que, “segundo a lei, deve ser preenchido em caráter definitivo, referindo-se essa característica à titularidade do cargo, para indicar que a pessoa nele investida o será como seu titular definitivo, em princípio, pois isso não impede remoção ou transferência.” 2

Desde logo, observa-se que a estabilidade, tal como delineada no modelo constitucional vigente, mantém relação intrínseca com os princípios da continuidade do serviço público e da eficiência administrativa, assegurando a estabilidade necessária ao adequado funcionamento da Administração Pública.

2.1. Spoils System – Sistema de despojos – 1812

A estabilidade dos funcionários públicos, conforme magistério de João Rodrigues Guimarães Filho, tem sua origem nos Estados Unidos da América, onde a alternância de poder entre Democratas e Republicanos resultava, especialmente nos postos de comando, na demissão daqueles considerados desalinhados ou dispensáveis à política da gestão vigente, abrindo espaço para nomeações de simpatizantes3 – procedimento que ficou conhecido como "spoils system" ("sistema de espólios").4

Essa prática nefasta, que ganhou força em 1820, causava severas interrupções no serviço público, comprometendo tanto a quantidade quanto a qualidade das atividades desempenhadas, em flagrante prejuízo de toda a sociedade. Seu impacto foi tão significativo que o termo spoils system passou a designar outros abusos de poder político, voltados ao favorecimento e enriquecimento do partido governante. Essas mudanças atingiam até mesmo cargos sem vínculo direto com a formulação das políticas de governo, como ocorreu na administração de Benjamin Harrison, na qual 31.000 diretores dos correios foram afastados em apenas um ano, resultando em ineficiência administrativa.5

2.2. Lei do Serviço Civil de Pendleton (16 de janeiro de 1883)

É fato que esse sistema, em razão de suas consequências deletérias, não poderia se perpetuar, sendo substituído pela Lei da Função Pública de Pendleton (Pendleton Civil Service Act), sancionada em 16 de janeiro de 1883, norma que instituiu a contratação permanente no serviço público federal com base no mérito, afastando a influência da filiação política.6

2.3. Brasil

No Brasil, conforme assevera Flávia Pessoa de Araújo, a estabilidade foi inicialmente inserida ao ordenamento jurídico pela Lei 2.924, de 1915, que fixava a “Despeza Geral da Republica dos Estados Unidos do Brazil para o exercicio de 1915”, cujo artigo 215 assim dispunha:7

Art. 125. O funccionario ou empregado publico federal, salvo os funccionarios em commissão, que contar dez ou mais annos de serviço publico federal sem ter soffrido penas no cumprimento de seus deveres, só poderá ser destituido do mesmo cargo em virtude de sentença judicial, ou mediante processo administrativo.”

Não demorou para que a estabilidade fosse incorporada pela Constituição de 1934, mantendo-se em vigor até os dias atuais, apesar das reiteradas investidas para sua restrição ou supressão – temas centrais do presente artigo.

Considerando a experiência norte-americana, é essencial se dispensar uma detida atenção a uma última advertência inserta na Enciclopédia Britânica:8

Embora o sistema de espólios seja um termo político americano, a prática de distribuir cargos públicos para recompensar apoiadores e fortalecer um governo é e tem sido comum em muitos outros países também.”

2.4. Das Estabilidade nas Constituições Brasileiras

A estabilidade no serviço público sempre ocupou um papel de destaque na ordem constitucional brasileira, refletindo a preocupação do legislador com a proteção da Administração Pública contra ingerências políticas e demissões arbitrárias. De fato, a estabilidade do servidor público é uma garantia consagrada há décadas no ordenamento constitucional brasileiro. A Constituição de 1934, em seu artigo 169, estabelecia expressamente que os funcionários públicos concursados adquiririam estabilidade após dois anos de efetivo exercício, enquanto os demais a obteriam após dez anos, podendo ser destituídos apenas por sentença judicial ou mediante processo administrativo. 9

Por sua vez, a Constituição de 1946 aprofundou o tema, mantendo, em seu artigo 188, a estabilidade e o prazo de dois anos para os concursados, mas reduzindo para cinco anos o requisito temporal para os servidores nomeados sem concurso. O texto constitucional também foi expresso ao excluir os ocupantes de cargos em confiança do direito à estabilidade. Além disso, a perda do cargo de servidores estáveis sofreu uma pequena alteração: passou a depender de sentença judicial transitada em julgado, no caso dos vitalícios, e, para os estáveis, além de decisão judicial, poderia ocorrer mediante processo administrativo em que fosse garantida a ampla defesa. Por fim, a Constituição de 1946 previu expressamente a perda do cargo em razão da extinção da função. 10

A Constituição de 1967, em seu art. 177, limitou-se a assegurar direitos à estabilidade àqueles funcionários amparados pela legislação anterior 11 e aos funcionários públicos que participaram de ações bélicas da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial.12

A Constituição vigente manteve essa tradição, assegurando a estabilidade aos ocupantes de cargos de provimento efetivo após três anos de exercício, ao mesmo tempo em que estabelece as exceções que admitem a perda do cargo.

No cenário atual, o servidor somente perderá o cargo, nas hipóteses contempladas no §1º., do art. 41, da Constituição Federal, 13 interessando, para fins deste artigo, o processo administrativo disciplinar.

Isto posto, alinhando-se ao magistério de José Afonso da Silva, 14 é correto afirmar que a estabilidade constitui um direito constitucionalmente assegurado ao servidor público, sem que isso exclua, obviamente, a permanente vigilância que deve ser dedicada não só à sua manutenção, como, também ao seu aperfeiçoamento.

Depreende-se, portanto, que, embora prevista no texto constitucional, essa garantia não implica, necessariamente, na prática, sua manutenção ou respeito efetivo.


3. Estabilidade no Serviço Público - Garantia ou Privilégio?

Frequentemente associada a um privilégio injustificável, especialmente por não encontrar correspondência nos mesmos moldes na iniciativa privada,15 a estabilidade permanente do servidor público tem sido alvo de ataques cada vez mais intensos, sobretudo em tempos recentes.

A comparação com a iniciativa privada, contudo, não se justifica.

Isso porque, no setor privado, a lógica predominante é a maximização do lucro, no qual o empregador, de modo geral, busca valorizar os trabalhadores mais produtivos, ou seja, aqueles que lhe garantem maior rentabilidade.

No serviço público, entretanto, a lógica adotada se diferencia substancialmente, sobretudo porque, conforme a clássica lição de Hely Lopes Meirelles, a Administração tem como finalidade precípua a promoção do "bem comum da coletividade administrada", objetivo que se concretiza, entre outros fatores, pela continuidade do serviço público e eficiência.

Não se pode ignorar, notadamente após a constatação da experiência norte-americana do século XIX, que esse propósito está sujeito a alterações constantes a cada ciclo eleitoral, em razão da alternância no poder. De fato, no Brasil, com a posse de novos governantes, não é incomum que ocorra descontinuidade administrativa, uma vez que gestores recém-empossados, frequentemente movidos por interesses políticos, tendem a desmantelar iniciativas bem-sucedidas de seus antecessores, especialmente quando estes são considerados adversários.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Nesse cenário de instabilidade institucional, a ausência de políticas públicas “permanentes”16 expõe o servidor público a uma posição de extrema vulnerabilidade, razão pela qual, sem garantia da estabilidade funcional, assim como no spoils system, estaria à mercê do arbítrio, do assédio institucional e do risco iminente de dispensa por conveniências políticas, especialmente quando o novo mandatário busca reformular a estrutura administrativa em desalinho com o interesse público.

Essa reformulação, aliás, a exemplo do que se verificou nos Estados Unidos, muitas vezes se materializa na substituição de cargos estratégicos na Administração, o que tende a enfrentar oposição de servidores que priorizam a legalidade, o interesse público e a impessoalidade, em detrimento de interesses políticos momentâneos.

Essa realidade, é retratada com precisão por Flávia Pessoa de Araújo em sua monografia Estabilidade do Servidor Público: Limites e Possibilidades Dentro da Proposta da Nova Reforma Administrativa (PEC nº 32/2020), na qual cita, a título de exemplo, a experiência vivida nos EUA; a saber:17

O instituto da estabilidade auxilia a máquina pública, pois contribui para o seu funcionamento independente da troca dos governantes. No passado era comum, a cada eleição, a mudança excessiva dos funcionários públicos, retirando aqueles que faziam parte dos quadros funcionais geridos pelos ex-governantes e substituindo por aliados políticos do atual governante. Segundo Villa-Verde Filho (1997, p. 180), ‘tal ligação da função pública à política chegou ao seu apogeu nos Estados Unidos do século XIX, onde o partido vitorioso expulsava os adversários do serviço público, para assegurar vagas aos seus amigos e apaniguados’.

Por mais paradoxal que possa parecer, esses fatores ajudam a compreender as recorrentes investidas para reduzir ou até mesmo extinguir a estabilidade do servidor público, frequentemente associadas, de maneira simplista, ao descaso e à negligência na prestação do serviço público. Em contrapartida, pouco se debate sobre a escassez de recursos humanos e as precárias condições de trabalho enfrentadas pela maioria dos servidores, bem como sobre a necessidade de fortalecer os mecanismos internos de controle voltados à prevenção e repressão de condutas ilícitas decorrentes da inobservância de deveres e proibições funcionais, com especial ênfase na criação de Comissões Processantes independentes e imparciais.

Outro aspecto de suma importância, frequentemente ignorado nos debates qualificados sobre a manutenção da estabilidade, é a exigência constitucional de aprimoramento das avaliações periódicas de desempenho.18 Por meio de critérios objetivos, essas avaliações periódicas devem orientar decisões sobre a permanência, afastamento ou até mesmo a exclusão dos servidores, alinhando-se ao modelo meritocrático instituído nos Estados Unidos pela Lei do Serviço Civil Federal de Pendleton, em 1883, e atendendo à exigência constitucional de eficiência na Administração Pública.

Nessa perspectiva, chama atenção pesquisa realizada pelo Datafolha, divulgada em novembro de 2024, que revelou que 80% dos brasileiros apoiam a possibilidade de demissão de servidores públicos por mau desempenho. No entanto, conforme destacado pela CNN, 56% dos entrevistados concordam, total ou parcialmente, que a estabilidade funcional é essencial para o exercício eficiente das funções públicas. Além disso, 90% manifestam apoio à realização de avaliações periódicas de desempenho.19

É nesse contexto que a estabilidade do servidor público enfrenta diversos desafios, alguns explícitos, como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, enquanto outros atuam de forma mais sutil ou indireta.

Nos próximos tópicos, com uma abordagem predominantemente empírica, serão examinadas algumas dessas iniciativas de maneira objetiva, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto.

4. Estabilidade - Extinção e/ou Restrição – Iniciativas Normativas

4.1. Proposta de Emenda Constitucional 32/2020

A Emenda Constitucional, apresentada pelo Poder Executivo em 2020, visava modificar as normas que regem os servidores e empregados públicos, além de redefinir a estrutura da Administração Pública nos âmbitos federal, estadual, distrital e municipal.

Com forte respaldo de parte da imprensa, a proposta foi apresentada como o ponto de partida de uma ampla reforma administrativa, projetada para ter efeitos duradouros.

Como já se antecipava, a reforma, embora trouxesse tanto avanços quanto retrocessos, propunha uma significativa restrição à estabilidade dos servidores públicos, limitando-a às chamadas carreiras típicas de Estado. Contudo, a definição dessas carreiras foi deixada para uma futura lei complementar, o que naturalmente gerou apreensão e incentivou uma intensa disputa institucional pelo reconhecimento desse precioso status.

Conforme noticiado pela Agência Câmara de Notícias, parte dos parlamentares sustentava que apenas deveriam ser consideradas “carreiras típicas de Estado” aquelas que não possuem equivalente na iniciativa privada. Tal entendimento gerou significativa apreensão, especialmente entre os professores da rede pública, que passaram a temer a possível perda da estabilidade em decorrência da reforma administrativa.20

No primeiro semestre de 2021, a PEC foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e, em setembro do mesmo ano, também obteve parecer favorável de uma comissão especial designada para analisá-la.

No entanto, diante da forte mobilização de entidades de classe, a proposta segue sem previsão para ser apreciada pelo plenário da Câmara.

4.2. Projeto de Lei Complementar 550/2018

No âmbito legislativo, é possível identificar propostas que buscam restringir ou extinguir a estabilidade do servidor público. Um exemplo é o Projeto de Lei Complementar nº 550/2018, que propunha a alteração do art. 41, § 1º, III, da Constituição Federal, para prever a perda da estabilidade em razão de insuficiência de desempenho e baixa produtividade.

Essa proposta remete a um tema de grande relevância: as imprescindíveis avaliações de desempenho. Todavia, caso não sejam definidas com base em critérios objetivos e transparentes, tais avaliações podem se transformar em um meio indireto de fragilização da estabilidade, comprometendo a segurança jurídica dos servidores e abrindo margem para incontáveis arbitrariedades.

Além das restrições formais impostas por meio de alterações legislativas, há fatores mais sutis e até mesmo indiretos que também contribuem para o progressivo esvaziamento e desvalorização da estabilidade, seja por meio de interpretações administrativas, pressões institucionais ou mudanças na jurisprudência dos Tribunais.

4.3. Violações indiretas

De fato, paralelamente às investidas legais que buscam alterar a estabilidade dos servidores, há um conjunto de práticas – algumas altamente dissimuladas - que, sob o véu da legalidade aparente, comprometem a efetiva observância do devido processo legal.

4.3.1. Forma dissimulada - Simulacro de Devido Processo Legal

Em consonância com expressa determinação constitucional (art. 41, § 1º), a perda da estabilidade somente poderá ocorrer nos casos de (i) sentença judicial transitada em julgado, (ii) processo administrativo disciplinar, assegurada a ampla defesa e em razão de (iii) avaliação periódica de desempenho, também garantida a ampla defesa.

Além disso, o artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição, assegura o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa aos litigantes em processos judiciais ou administrativos.

No entanto, esse mecanismo, embora formalmente respeite as garantias constitucionais, na prática tem sido frequentemente desvirtuado e utilizado como meio de fragilização da estabilidade do servidor público. De fato, a violação dissimulada da estabilidade do servidor público ocorre, com maior frequência, por meio do chamado “simulacro de devido processo legal”. Nesse contexto, a aparência de legalidade encobre práticas que comprometem a imparcialidade e a garantia do contraditório pleno e efetivo,21 manifestando-se, sobretudo, por meio de:

  • (i) Parcialidade, refletida em julgamentos enviesados, conduzidos por autoridades previamente inclinadas à penalização do servidor, e;

  • (ii) Ausência de uma efetiva dialética processual, caracterizada pela limitação do contraditório, pela desconsideração dos argumentos da defesa ou pela condução do processo de maneira a dificultar o exercício pleno dos direitos do servidor.

É incontestável o poder-dever da Administração Pública de apurar condutas de seus agentes que possam configurar a inobservância de deveres e proibições legalmente estabelecidos. No entanto, tais apurações devem ser conduzidas em estrita conformidade com os ditames legais

De fato, o devido processo legal, na condição de garantia constitucional estruturante do regime jurídico sancionador, não se esgota na mera observância formal das etapas procedimentais, exigindo, para sua efetividade, a condução do procedimento administrativo disciplinar com absoluta imparcialidade e incondicional respeito à ampla defesa e ao contraditório pleno e efetivo.

Todavia, em determinados procedimentos disciplinares, verifica-se uma completa distorção desse princípio, reduzindo-o a um simulacro, um rito desprovido de um conteúdo garantístico, no qual os atos processuais são cumpridos apenas para conferir aparência de legalidade a decisões já predeterminadas.

É intrigante observar como algumas Comissões Processantes que se prestam a esse desserviço recorrem sistematicamente à doutrina, não para orientar suas decisões à luz dos princípios que se acham contidos na cláusula do devido processo legal, mas para construir uma fachada de legalidade. Amparadas em excertos doutrinários cuidadosamente selecionados, proclamam aos quatro ventos que (i) notificaram regularmente a parte interessada acerca dos atos processuais; (ii) franquearam o acesso às provas constantes dos autos; (iii) asseguraram o direito de acompanhar a inquirição de testemunhas; e (iv) garantiram a oportunidade de apresentar defesa escrita.

Entretanto, sob esse discurso de rigor procedimental, nada mais fazem senão arquitetar uma narrativa que – repita-se - aparenta observância dos requisitos formais. A preocupação central não é garantir a busca da verdade real, mas sim conferir ao processo uma roupagem jurídica capaz de resistir a um eventual controle judicial. Cria-se, assim, um simulacro de devido processo legal, no qual os requisitos formais são meticulosamente preenchidos, mas o seu conteúdo garantista é deliberadamente esvaziado. O contraditório e a ampla defesa tornam-se meras figuras retóricas, pois a decisão condenatória já se encontra traçada antes mesmo do início do processo. A instrução processual não constitui um meio para a descoberta da verdade, mas um rito coreografado, destinado a conferir credibilidade a um juízo de culpabilidade. A legalidade, nesse contexto, não passa de um verniz, um invólucro processual que encobre a arbitrariedade sob o pretexto de um formalismo estéril. Sensível ao recorrente problema, José Armando da Costa há longa data adverte:22

“Ouvir o acusado e proceder de maneira indiferente diante de suas razões é a mesma coisa que lhe negar tal oportunidade... a audição do funcionário imputado deve ser bem mais que uma simplória estática peça formal de declarações.”

4.3.2. Simulacro de Devido Processo Legal - Parcialidade

A imparcialidade é, possivelmente, a garantia mais difícil de ser efetivamente assegurada nos diversos procedimentos disciplinares, apesar de as legislações, em regra, preverem hipóteses de impedimento e suspeição que, em tese, deveriam assegurar um julgamento justo e resguardar o princípio da impessoalidade.23

De fato, ninguém duvida que a imparcialidade constitua elemento inafastável de qualquer processo administrativo disciplinar, pois é dela que emana a credibilidade e a legitimidade e a efetividade do devido processo legal. No entanto, na práxis administrativa, não raras vezes, verifica-se a constituição de comissões processantes selecionadas criteriosamente, não para assegurar a regularidade procedimental, mas para conferir mera aparência de legalidade a decisões previamente delineadas.

A doutrina especializada adverte para os riscos desse modelo inquisitorial dissimulado, que transforma o procedimento disciplinar em mera formalidade homologatória, subvertendo sua natureza garantista e corroendo os alicerces do Estado de Direito. Nesse sentido, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, na obra Processo Administrativo, sensíveis ao recorrente problema, afirmam que seria “total e absurdamente inútil se inexistisse para os litigantes a garantia da imparcialidade na tomada de decisão.”24 Reconhecem os doutrinadores, contudo, que há situações que comprometem efetivamente a imparcialidade do julgamento, mas que não chegam a configurar impedimento ou suspeição.25

Dessa forma, a demonstração inequívoca do vício que compromete o procedimento torna-se extremamente difícil, abrindo espaço para um sem-número de arbitrariedades.

Isso não significa, obviamente, que não existam comissões processantes disciplinares independentes, imparciais e comprometidas com a busca da verdade real. Um exemplo notório são as comissões processantes presididas por Procuradores concursados e estáveis na carreira,26 como ocorre no Município de São Paulo, onde a condução de procedimentos disciplinares e de avaliação para confirmação no estágio probatório é realizada pelo Departamento de Procedimentos Disciplinares (PROCED);27 experiência exitosa que deveria nortear todos os entes federativos.

Em direção contrária, o Estado de São Paulo recentemente extinguiu a Procuradoria de Procedimentos Disciplinares - PPD,28 órgão historicamente reconhecido por sua atuação pautada na independência e imparcialidade.

É oportuno destacar — com a devida vênia para uma breve digressão — que, no caso específico da extinção da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares (PPD) da PGE/SP, embora não haja uma relação direta com a estabilidade, a medida foi implementada por meio de uma técnica legislativa pouco ortodoxa .

Tal aspecto merece não só breve registro, como profunda reflexão, sobretudo porque evidencia a fragilidade de determinados institutos, mesmo quando há muito consolidados no texto constitucional.

Explica-se. A competência da Procuradoria-Geral do Estado (PGE) para atuar nos procedimentos disciplinares possuía amparo constitucional, o que demandaria a tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição Estadual para sua modificação. Diante dos desafios inerentes a esse processo legislativo,29 o Poder Executivo adotou estratégia alternativa e altamente censurável, inserindo a extinção da PPD nas disposições transitórias de uma emenda cujo objeto principal era a flexibilização da aplicação de 5% dos recursos estaduais da Educação para custeio de ações na área da Saúde — um tema completamente distinto daquele analisado e aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP).30

Com devido respeito, tal expediente legislativo merece severa crítica, pois, além de não possuir relação direta com o cerne da proposta em discussão, desviou o foco dos parlamentares para a realocação de recursos públicos, dissimulando a inserção de um tema de natureza estruturalmente distinta.

Desse modo, como já foi adiantado, embora a manobra em si não revele qualquer investida direta sobre a garantia da estabilidade dos servidores públicos,31 o modelo adotado pelo Poder Executivo paulista fragiliza a previsibilidade e a transparência legislativa, princípios essenciais à segurança jurídica que também sustentam, de modo mais amplo, a proteção das garantias funcionais dos servidores públicos.

Com profundo pesar, fecha-se parêntese.

Essa experiência revela uma lição fundamental: a inserção de determinada matéria no texto constitucional não lhe confere imutabilidade, tampouco o resguarda de alterações que, muitas vezes, são promovidas de forma pouco transparente, comprometendo a previsibilidade e a segurança jurídica.

4.3.3 Simulacro de Devido Processo Legal - Contraditório e Dialética

A dialética, concebida como método argumentativo estruturado na contraposição de ideias para alcançar uma verdade mais aprofundada, desempenha – ou ao menos deveria desempenhar – um papel essencial no exercício do contraditório, especialmente nos processos punitivos.

No âmbito do processo administrativo disciplinar, contudo, a efetiva observância da dialética nem sempre se concretiza, revelando uma profunda dissociação entre forma e substância - um descompasso que remete diretamente à problemática da motivação dos atos discricionários. A esse respeito, Celso Antônio Bandeira de Mello, ao tratar inicialmente do ato vinculado, destaca, ao passar para a análise dos atos discricionários, a imprescindibilidade de uma motivação detalhada, nos seguintes termos:32

Naqueleloutros, todavia, em que existe discricionariedade administrativa ou em que a prática do ato vinculado depende de aturada apreciação e sopesamento dos fatos e das regras jurídicas em causa, é imprescindível motivação detalhada. É o que sucede, por exemplo, na tomada de decisões em procedimentos nos quais exista uma situação contenciosa como no chamado processo administrativo disciplinar.” (g.n.)

Essa motivação detalhada se torna ainda mais relevante nos chamados tipos abertos.33

Uma resposta adequada a essas omissões pode residir em uma atenção mais rigorosa à motivação das decisões.34 Com efeito, a observância do sistema da Persuasão Racional ou do Livre Convencimento Motivado impõe-se como requisito essencial para aferir a legitimidade do juízo decisório, garantindo a liberdade do julgador, mas exigindo, em contrapartida, que, após a análise de todos os pontos controvertidos, as escolhas adotadas estejam devidamente motivadas.

4.3.4 Simulacro de devido processo legal – ocultação das provas existentes

Nos procedimentos em que o interrogatório do servidor é realizado após a fase instrutória,35 assegura-se, em estrita consonância com o princípio da ampla defesa, o pleno conhecimento prévio da imputação e de todas as provas colhidas ao longo do processo.

Todavia, essa garantia pode ficar comprometida em procedimentos nos quais o interrogatório do servidor ocorre antes da fase de instrução,36 especialmente quando não lhe é assegurado prévio acesso não apenas à imputação, mas também à descrição detalhada dos fatos e a todas as provas já reunidas. Essa prática configura uma violação ao devido processo legal, restringindo o pleno exercício da ampla defesa e do contraditório.

Há registros, inclusive, de Comissões Processantes que somente após a realização do interrogatório e a apresentação da defesa preliminar — incluindo a indicação das testemunhas pela defesa — arrolam suas próprias testemunhas.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Messias José Lourenço

Procurador do Estado de São Paulo - Aposentado. Mestre em Processo Penal - USP. Ex-professor da Academia de Polícia Militar do Barro Branco - SP. Advogado. Sócio do Escritório: Lourenço & Batista Advocacia e Consultoria Especializadas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOURENÇO, Messias José. A quem interessa o fim da estabilidade do servidor público?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8017, 13 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114404. Acesso em: 5 dez. 2025.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos