Resumo: O presente artigo analisa as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) nas ações ADPF 186 e ADI 4650, que consolidaram a legitimidade jurídica das ações afirmativas no Brasil. Com base em uma abordagem teórico-filosófica, investiga-se a linha argumentativa adotada por cada ministro, relacionando-a a correntes como o liberalismo igualitário de John Rawls, o reconhecimento de Nancy Fraser, a hermenêutica de Ronald Dworkin e os princípios democráticos de Jürgen Habermas. Incluem-se comentários sobre os principais votos dos ministros de nossa suprema corte e conclui-se que o STF, ao afirmar a constitucionalidade das cotas raciais e partidárias, reafirma um compromisso com a igualdade material, a dignidade da pessoa humana e a inclusão de grupos historicamente marginalizados.
Palavras-chave: Ações afirmativas. STF. Igualdade. Filosofia do Direito. Direitos Fundamentais.
Introdução
As ações afirmativas representam uma das principais respostas do Estado Democrático de Direito às desigualdades estruturais e históricas que marcam a sociedade brasileira. A discussão sobre sua legitimidade jurídica e filosófica culminou em duas decisões paradigmáticas do Supremo Tribunal Federal: a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186/2012 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 465002020.
Ambas as decisões não apenas fixaram jurisprudência em torno da constitucionalidade das cotas raciais e partidárias, mas também expressaram fundamentos teóricos consistentes com as teorias contemporâneas da justiça, da democracia e da dignidade humana. Este artigo pretende analisar os votos dos ministros, identificando em cada um deles os referenciais filosóficos implícitos ou explícitos, a partir de uma epistemologia jurídica crítica e de um compromisso ontológico com o ser social.
1. A ADPF 186 e o reconhecimento das cotas raciais na educação superior
A ADPF 186, relatada pelo ministro Ricardo Lewandowski, foi ajuizada contra o sistema de cotas raciais adotado pela Universidade de Brasília. A decisão unânime do STF pela constitucionalidade da medida representou um marco na consolidação da igualdade material como princípio estruturante da ordem constitucional.
Lewandowski fundamentou seu voto no princípio da dignidade da pessoa humana, na promoção do bem de todos e na necessidade de superar as desigualdades históricas e estruturais. Para ele, as ações afirmativas são medidas transitórias e proporcionais, voltadas à construção de uma sociedade efetivamente igualitária. Essa construção está assentada em uma ontologia do “dever ser” constitucional, que vincula o direito ao ideal de justiça. Utilizou dados empíricos, a posteriori, para sustentar sua argumentação jurídica, em diálogo com a jurisprudência estrangeira.
O ministro Ayres Britto afirmou que a Constituição é substantivamente antirracista e que a promoção da igualdade exige atuação estatal ativa. Seu voto é marcado por expressões retóricas potentes como "a República é um projeto de inclusão" e "a Constituição é um documento contra a indiferença". Para ele, a igualdade não é apenas uma categoria formal a priori, mas um valor a ser realizado concretamente na existência dos sujeitos.
A ministra Cármen Lúcia enfatizou o papel da universidade pública na transformação social, ressaltando que a desigualdade racial no Brasil não pode ser enfrentada com indiferença estatal. A ministra articulou a ideia de que o ser histórico da sociedade brasileira - profundamente marcado por desigualdades raciais - exige a atuação institucional comprometida com a virtus pública, ou seja, com a responsabilidade ética no exercício da autoridade.
O ministro Gilmar Mendes abordou a questão sob uma ótica pragmática e institucional. Considerou válida a adoção das cotas pela Universidade de Brasília, com fundamento na autonomia universitária e na razoabilidade das medidas. Entre o ser da exclusão e o “dever ser” da Constituição, Mendes advoga por uma solução prudente e revisável, em diálogo com os limites da heteronomia judicial.
2. A ADI 4650 e a promoção da igualdade na representação partidária
A ADI 4650, relatada pela ministra Rosa Weber, discutiu a reserva de recursos do Fundo Partidário e do tempo de propaganda eleitoral para candidaturas negras. A Corte reconheceu a legitimidade da medida como forma de assegurar maior equidade na representação política.
A relatora invocou os princípios da igualdade substancial, da democracia representativa e da proibição de discriminação. Considerou que as cotas partidárias são instrumento necessário para corrigir a sub-representação histórica de negros nos espaços de poder. A ministra, ainda que em linguagem técnica, opera com uma epistemologia interseccional da justiça, em sintonia com o paradigma do reconhecimento de Nancy Fraser.
O ministro Edson Fachin reforçou o papel da jurisdição constitucional na afirmação da democracia participativa. Afirmou que "onde não há pluralismo, não há verdadeira democracia". Fundamentou seu voto em autores como Nancy Fraser e Boaventura de Sousa Santos, defendendo uma justiça epistêmica que combata o epistemicídio institucional das vozes negras e periféricas.
Alexandre de Moraes enfatizou a compatibilidade da medida com tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Para ele, o direito não é apenas técnica normativa, mas instrumento de transformação. Seu voto propõe uma leitura funcionalista, porém comprometida com a virtus democrática e com a projeção de um dever ser constitucional que promova a inclusão.
O ministro Luís Roberto Barroso destacou a importância de ações afirmativas para corrigir assimetrias históricas. Utilizou o conceito de justiça transitória e sustentou que essas medidas devem ser mantidas até que a desigualdade estrutural seja superada. Sua argumentação mobiliza uma ontologia do inacabado, na qual o direito é ferramenta de construção permanente da democracia.
3. Convergências e tensões nos fundamentos dos votos
Apesar das diferentes abordagens, os votos convergem em torno da necessidade de interpretação substancial da igualdade e da superação de um paradigma formalista. A hermenêutica constitucional foi mobilizada para legitimar a função contramajoritária do STF como guardião da inclusão e da diversidade. Nesse contexto, o direito não se esgota na norma, mas se realiza como práxis, tensionado entre o ser jurídico e o “dever ser” ético.
A tensão entre o liberalismo clássico e o igualitarismo redistributivo foi mediada por uma postura pragmática e humanista, comprometida com o combate às desigualdades. O STF reafirmou seu papel enquanto instância de proteção dos direitos das minorias, em sintonia com os valores democráticos e republicanos. A jurisprudência assumiu função pedagógica e simbólica, reforçando a centralidade do princípio da igualdade na ordem constitucional.
Considerações finais
As decisões analisadas constituem precedentes fundamentais na promoção da igualdade real no Brasil. Ao reconhecer a legitimidade constitucional das ações afirmativas, o STF afirmou não apenas uma posição jurídica, mas também ética, ontológica e epistemológica, comprometida com a construção de uma sociedade mais justa, plural e igualitária.
A leitura dos votos revela ainda um STF sensível à complexidade social brasileira, atento às demandas por justiça histórica e consciente de seu papel na concretização dos direitos fundamentais. O diálogo entre direito, política e filosofia revela que a jurisprudência constitucional é também expressão de escolhas axiológicas e compromisso com os valores fundamentais da República. É nesse horizonte de sentido que o direito deve se constituir como expressão da virtus republicana e da dignidade humana.
Referências
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FRASER, Nancy. Redistribuição ou reconhecimento? Uma proposta para repensar a justiça social. Petropolis: Vozes, 2006.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2007.
STF. ADPF 186. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Julgado em 26.04.2012.
STF. ADI 4650. Rel. Min. Rosa Weber. Julgado em 25.08.2020.
STRECK, Lênio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutico-filosófica da construção do Direito. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.
Abstract: This article analyzes the decisions of the Brazilian Supreme Federal Court (STF) in ADPF 186 and ADI 4650, which established the legal legitimacy of affirmative actions in Brazil. Based on a theoretical-philosophical approach, it examines the argumentative lines adopted by each Justice, relating them to theories such as Rawls' egalitarian liberalism, Fraser's recognition theory, Dworkin's interpretivism, and Habermas' deliberative democracy. The article includes vote excerpts and footnotes to clarify arguments. It concludes that the STF, by upholding the constitutionality of racial and partisan quotas, reaffirms a commitment to substantive equality, human dignity, and the inclusion of historically marginalized groups.
Keywords: Affirmative action. Brazilian Supreme Court. Equality. Legal philosophy. Fundamental rights.