Capa da publicação Pena Justa: matriz de risco e vedação à proteção deficiente
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Plano Pena Justa, do Conselho Nacional de Justiça.

Análise das matrizes de risco e o princípio da vedação à proteção deficiente estatal

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4. POLÍTICAS DE NÃO REPETIÇÃO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO SISTEMA PRISIONAL

O Plano “Pena Justa” dividiu sua atuação em eixos. Os três primeiros, basicamente, tratam da situação prisional em si, com diretrizes citadas acima. O quarto eixo apresenta ações e metas voltadas à não repetição da situação identificada pelo Supremo Tribunal Federal, no ADPF. Esse conjunto de propostas busca transformar estruturalmente o sistema penal, atacando seus principais problemas por meio de medidas concretas.

O eixo pode ser resumido nos seguintes tópicos, com nossas considerações preliminares em cada uma delas.

4.1. Enfrentamento ao Racismo no Ciclo Penal

O problema da baixa institucionalização do enfrentamento ao racismo nas diferentes fases do ciclo penal exige a normatização de políticas específicas. Parte-se do princípio de que é necessário reconhecer o racismo tanto na Justiça Criminal quanto nos serviços penais. O reconhecimento do racismo institucional como fato estruturante é, segundo o plano, essencial para transformar espaços historicamente marcados por práticas punitivas e violentas de base racial.

As discussões práticas mais relevantes de como se dará a execução das metas será a participação de comitês e câmaras e questões práticas são pontos a serem discutidos no futuro.

4.2. Políticas Penais, Orçamento e Informação

A fragilidade estrutural das políticas penais é agravada pela falta de planejamento, transparência e produção qualificada de dados. Para enfrentar esse problema, o Plano propõe a criação de mecanismos de planejamento e controle social, como a normatização de instrumentos que garantam a participação popular no planejamento orçamentário e executivo da SENAPPEN.

O fomento à produção e publicização de dados padronizados inclui desde a proteção de dados pessoais até o uso estratégico e ético da inteligência artificial. É fundamental que os sistemas nacionais passem a considerar recortes étnico-raciais, de gênero e outros marcadores sociais, além de garantir a transparência por meio da divulgação de indicadores.

No campo financeiro, recomenda-se a modernização do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), com previsão obrigatória de recursos para políticas não privativas de liberdade, atenção à pessoa egressa e combate às violações de direitos. Também se propõe ampliar as fontes de financiamento por meio de Fundos Municipais, Fundos Rotativos e redirecionamento de recursos provenientes de medidas despenalizadoras.

Acerca das políticas públicas, o plano incentiva a atuação no processo legislativo, com a elaboração de notas técnicas rigorosas, sustentadas por dados e análises críticas. Essas notas devem servir de base para debates e proposições que priorizem uma lógica antipunitivista e garantidora de direitos.

4.3. Precedentes e Normativas Judiciais

O plano defende que há desrespeito às decisões dos Tribunais Superiores e às normativas do Conselho Nacional de Justiça, representando um grave entrave à efetivação de direitos no sistema penal. Para fortalecer a cultura de respeito institucional, seria necessário difundir o conhecimento sobre essas normativas e implementar mecanismos eficazes de monitoramento do seu cumprimento.

Especificamente quanto a esse ponto, indica a necessidade de aprimorar os indicadores de produtividade judicial, regular a saída antecipada e discutir critérios sobre prisões baseadas em fundada suspeita são medidas que visam garantir maior aderência aos princípios constitucionais e às decisões superiores, além de reforçar o sistema progressivo de cumprimento de pena.

4.4. Reparação Pública e Memória

A insuficiência de medidas de reparação pública no Brasil em relação às violações cometidas no contexto prisional exigiria uma resposta estatal clara e contundente. Uma das propostas centrais é a criação de centros de memória, museus, memoriais e campanhas públicas que promovam a reflexão crítica sobre a história da punição e o sistema carcerário no país. Essa iniciativa contribuiria para a construção de uma cultura de reparação e prevenção de novas violações.


5. NATUREZA IDEOLÓGICA DO Plano “Pena Justa”: ENTRE garantismo PENAL E abolicionismo penal

Há uma clara opção do gestor do plano de conceitos ideológicos alinhados ao abolicionismo penal. O risco está em que, ao desestruturar o paradigma punitivo sem substituí-lo por garantias de proteção coletiva, possa-se comprometer a ordem pública e a segurança da sociedade.

Quando há uma discussão ideológica, como é o caso do Plano “Pena Justa”, é necessário entendermos os conceitos, para, no popular, “dar nomes aos bois”. Juristas ligados ao campo ideológico progressista costumam chamar a si mesmos de garantistas, tendendo a chamar quem não segue seus preceitos de punitivistas.

Punitivista seria, em suma, quem busca o controle social apenas com base na prisão. O conceito é tão limitado, que não traz maiores digressões, e raramente alguém se denomina punitivista, mesmo quando o é. A ideia se aplica àqueles que professam conceitos abolicionistas penais e evitam usar o termo.

Por isso faremos um breve contraponto entre abolicionismo penal e garantismo, desenvolvido em nossa obra, além da análise das políticas de desencarceramento, e do princípio que veda a proteção deficiente.

5.1. abolicionismo penal.

O abolicionismo penal, especialmente em sua vertente mais radical, propõe a destruição do sistema penal e da própria lógica punitiva. Parte da ideia de que se deveria abolir a ideia de castigo como forma aceitável de reagir ao delito, substituindo-o por um sistema de justiça que protegesse o estigmatizado e lhe oferecesse oportunidades de sentir e demonstrar remorso, proporcionando a reconciliação e a pacificação.

O abolicionista penal, surgido após a Segunda Guerra Mundial, passou a atuar tanto na teoria quanto na prática, com proposições concretas de reforma do sistema.

As principais razões que tornam problemático o controle social por meio da justiça penal pode ser assim sintetizado: 1) causa sofrimento desnecessário e distribuído de modo injusto e desigual na sociedade; 2) expropria o conflito dos sujeitos nele diretamente envolvidos sem produzir qualquer efeito positivo para eles e 3) tende a abusos e excessos, sendo sumamente difícil de ser mantido sob controle.

Os princípios do abolicionismo penal passam pelos seguintes aspectos:

  1. Sobre quem vai para a prisão. Alegam os abolicionistas que é a lei que cria o criminoso, ou seja, o fato punível é criação do próprio sistema. Assim, de acordo com o lugar e a época, um indivíduo pode ser passível ou não de ser encarcerado por uma mesma conduta. O sistema penal visivelmente cria e reforça as desigualdades sociais, encarcerando na quase totalidade dos casos, as camadas mais frágeis da população.

  2. Dimensão da pena. A afirmação de que o delinquente deve ser punido para que a vítima reencontre a paz não deve ser tida como verdadeira.

  3. Maniqueísmo penal. O sistema penal formal deve ser abolido porque, em razão da grande influência teológico-escolástica, é patentemente maniqueista (os agentes do sistema são “bons”, enquanto os desviados são “maus”); é, de outro lado, uma “máquina desconexa”, na medida em que suas instâncias (polícia, Ministério Público, Magistratura, agentes penitenciários etc.) atuam como compartimentos desconexos.

  4. Vingança no Direito Penal. O sistema penal não existe para ser a forma de vingança, e é isso o que ocorre, não sendo utilizado para seus reais propósitos como a ressocialização. O sistema penal, por fim, só conta com um tipo de reação, a punitiva, quando na verdade existem diversos outros modos de controle social (medidas sanitárias, educativas, de assistência material ou psicológica, reparatórias etc.). Logo, percebe-se o quanto ele foi concebido só para o mal, para a violência (vingança).

5.2. GARANTISMO PENAL

A teoria do garantismo penal, como um freio ideológico para a atuação indiscriminada do estado na liberdade do cidadão, devendo utilizar o seu poder punitivo como ultima ratio. Uma dessas limitações que sofre o poder punitivo estatal está na forma como o Direito é corporificado em nosso sistema normativo.

No Brasil o conceito de garantismo acabou sendo deturpado pelo já citado incremento da questão ideológica, o que contraria a própria essência da teoria (separar ideologia da aplicação da pena). É comum juristas se autoproclamarem garantistas, acusando todos os que pensam diferente de punitivistas. Quem usa tais conceitos sequer estudou a origem do termo, apropriando-se da teoria de forma indevida.

Há três formas de se interpretar o garantismo, conforme resumo da obra de Douglas Fischer:

  1. Garantismo binocular: analisado de forma bifronte, não nega ao réu os direitos à ampla defesa e ao contraditório, ou à presunção de inocência, mas preconiza que jamais se deve abolir a proteção do bem jurídico violado, pois o Estado não pode oferecer uma proteção deficiente à sociedade na defesa dos bens jurídicos relevantes. Visa resguardar os direitos fundamentais não apenas do réu ou do investigado, mas também os direitos fundamentais da vítima e os bens jurídicos mais relevantes para a sociedade. Zela pela correta e justa aplicação da pena e por sua execução na defesa e na reafirmação do bem jurídico relevante lesado pela conduta criminosa.

  2. Garantismo monocular: O garantismo monocular somente observa os direitos dos acusados, negando a eficácia do Direito Penal como forma de afirmação dos bens jurídicos valorados. É a negação disfarçada do Direito Penal como instrumento positivo de controle social e de justiça, entendendo que os demais ramos do direito e outras políticas públicas são suficientes para diminuir a criminalidade e solucionar os conflitos sociais. Preocupa-se apenas com os direitos fundamentais dos outros cidadãos, com os direitos da coletividade e com os deveres fundamentais.

  3. Garantismo hiperbólico monocular: evidencia-se desproporcionalmente (hiperbólico) e de forma isolada (monocular) a necessidade de proteção apenas dos direitos fundamentais individuais dos cidadãos investigados, processados ou condenados.

Portanto, aquele que se autodenomina garantista, deveria complementar sobre o tipo de garantista que é, em nome da boa-fé.

O garantismo nasceu não como uma resposta ao abolicionismo, já que ambas as teorias têm alguns preceitos em comum, especialmente o conceito de minimalismo, ou seja, da mínima intervenção do Estado no direito do cidadão. O garantismo fundamenta o princípio incorporado ao direito brasileiro da ultima ratio.

O principal teórico do garantismo é Ferrajoli, sob o qual Douglas Fischer desenvolveu as teses do garantismo binocular e monocular, citadas acima. Para o mestre italiano, o garantismo alia-se aos modelos minimalistas de Direito penal, isto é, modelos orientados à limitação da violência punitiva e à máxima contração do sistema penal. Contudo, diferencia-se de outras perspectivas minimalistas (como o abolicionismo penal) por partir da deslegitimação do sistema penal, concebida como uma crise conjuntural e não estrutural de legitimidade, para a sua relegitimação.

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O radicalismo da concepção abolicionista, na visão de Ferrajoli, citado por Tatiana Badaró, consubstancia-se nas seguintes propostas: 1) “improváveis projetos de microcosmos sociais baseados na solidariedade e na fraternidade”; 2) “vagos objetivos de ‘reapropriação social’ dos conflitos” por ofendidos e ofensores e 3) “métodos primitivos de composição patrimonial das ofensas que recordam as antigas formas de vingança de sangue”.

Segundo o autor, o modelo de autorregulação social espontânea, proposto pelas doutrinas abolicionistas, é pensado para uma sociedade perfeita e utópica e, portanto, carente de embasamento científico. Além disso, tal proposta é inspirada por um moralismo mitológico e nostálgico em relação a modelos arcaicos e tradicionais de “comunidades sem direito”, não apresentando nada de original que já não tenha sido projetado pela ideologia anarquista.

5.3. POLÍTICA DE DESENCARCERAMENTO

O abolicionismo penal e as deturpações do garantismo penal (garantismo hiperbólico monocular) pregam a política de desencarceramento em massa. Baseiam-se em conceitos político-ideológicos do anarquismo (vide críticas de Ferrajoli ao abolicionismo) ou materialismo histórico (o criminoso como vítima da sociedade).

As posições radicais precisam ser contrapostas a posições pragmáticas, embasadas não em teoria sem respaldo científico, mas em pesquisa isenta e amparada em uma gama de informações devidamente consideradas.

De todo modo, as teorias minimalistas são adotadas pelo sistema criminal brasileiro, da ultima ratio do direito penal. O nosso sistema, apesar de excessivo em tipificar condutas criminais, criando uma gama quase infinita de crimes, faz o contraponto, que é afastar praticamente todos os agentes criminosos da possibilidade de virem a ser mandados ao cárcere. Ou seja, já temos uma política de desencarceramento aplicada, mesmo que sem adotar os conceitos de abolicionismo penal radical.

As alegações podem ser comprovadas com a citação das Leis nº 11.403 de 2011 (que permitem que o Delegado de Polícia conceda fiança em crimes com pena máxima de quatro anos, o que já afasta do cárcere a maior parte dos crimes praticados), 9.099 de 1995 (que criou o instituto da transação penal e da suspensão condicional do processo) e do Pacote Anticrime, que instituiu o Acordo de Não Persecução Penal (acordo entre o investigado e o Ministério Público em crimes com pena mínima igual a quatro anos, com algumas restrições, como o caso de violência doméstica e familiar).

O conceito de garantismo penal busca exatamente a redução do impacto da atuação do Estado na vida do cidadão, salvo para garantir o máximo de efetividade de seus direitos. O cidadão tem direito à liberdade, à vida, à privacidade, à propriedade e à segurança. O poder público deve reprimir a ação de agentes (criminosos) que atacam tais direitos, de forma proporcional. Por exemplo, um criminoso que pratica um crime contra a honra, atingindo a privacidade de outrem, só será punido por interesse da vítima. Um criminoso que atinge a propriedade de outrem, como furto qualificado, já precisa sofrer algum tipo de punição estatal, implementada por penas diversas da prisão, através do Acordo de Não Persecução Penal. Já aquele que ataca a vida e a liberdade de outrem precisa sofrer uma intervenção mais forte do poder público, não havendo outra resposta mais efetiva do que a prisão.

O cárcere tem como função a resposta punitiva do Estado a crimes graves, com a finalidade pedagógica e, principalmente, a finalidade de impedir novos crimes.

5.4. ANÁLISE CRÍTICA E LINHA DE AÇÃO SUGERIDA

Conforme pode ser observado no ADPF, a ação foi embasada em conceitos de materialismo histórico, com a adoção da linha abolicionista, que foi deferida, praticamente, em todos os seus termos, pelo STF. A raiz originária do abolicionismo penal e do garantismo (em todas as modalidades) é a ideia da mínima intervenção do direito penal, reprimindo atos ilícitos em uma progressão repressiva (partindo de medidas administrativas e cíveis, chegando-se à repressão criminal sem imposição de cárcere até a punição pela prisão). Quanto a essas questões, nada a que se considerar, devendo-se manter a lógica.

Os abolicionistas penais pregam um mundo ideal, em que todas as mazelas e transgressões deixaram de existir. Uma legítima utopia, replicada pelo Plano “Pena Justa”.

O operador do direito deve ter um mínimo de visão conglobante da realidade em que vive, entendendo que qualquer decisão sem previsão de impacto social pode causar danos irreparáveis, aumentando a situação de intranquilidade.

Acerca da questão do debate encarceramento x desencarceramento, entendemos que os operadores devem se afastar o máximo possível de questões ideológicas, buscando enfrentar os problemas reais, com respostas reais.

Os pontos primordiais quando se trata de sistema prisional são segurança, atendimento e humanização, administração e modernização.

Os três pilares de um sistema penitenciário estável são: segurança (não permissão das fugas), controle (não permitir o transtorno e desordem) e a justiça (compromisso do sistema penitenciário com o tratamento humano do preso com foco na reabilitação à sociedade).

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Sobre os autores
José William Pereira Luz

Promotor de Justiça do Estado do Piauí. Coautor do livro "Facções criminosas: análise jurídica e estratégias de enfrentamento", Editora Forum.

Rômulo Paulo Cordão

Promotor de Justiça do Ministério Público do Piauí. Coautor do livro "Facções criminosas: análise jurídica e estratégias de enfrentamento", Editora Forum.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUZ, José William Pereira ; CORDÃO, Rômulo Paulo. Plano Pena Justa, do Conselho Nacional de Justiça.: Análise das matrizes de risco e o princípio da vedação à proteção deficiente estatal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8023, 19 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114534. Acesso em: 5 dez. 2025.

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