6. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DEFICIENTE E A ANÁLISE CRÍTICA DO Plano “Pena Justa”
Embora o Plano “Pena Justa”, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), contenha propostas relevantes e enfrente discussões que precisam ser debatidas pelos operadores do direito (questão racial, dentre outras), há aspectos que demandam críticas sérias quanto à constitucionalidade, à coerência jurídica e aos riscos sociais de sua implementação.
6.1. Racismo Institucionalizado e Seletividade Racial.
Em primeiro lugar, mesmo que se tome como verdadeiros os impactos do racismo estrutural na seletividade penal, o plano ignora que o ordenamento jurídico brasileiro é fundamentado no direito penal do fato. Isso significa que o indivíduo responde pelo que faz, e não pelo que é. A cor da pele, orientação sexual, classe social ou qualquer outra característica pessoal não devem servir como critério para a persecução penal, tampouco como fundamento para exclusão de responsabilidade criminal.
A crítica não é à consideração da desigualdade racial em si, mas ao uso político e ideológico dessa realidade para fundamentar medidas que fragilizam o sistema penal e favorecem a impunidade, desvirtuando o papel garantidor da justiça. Naturalmente, o sistema tem que reprimir condutas de natureza abusiva, como a “escolha de quem punir”, com base na cor da pele e origem étnico-racial, com regras claras tanto, na fase de repressão, quanto na fase de persecução, punição e ressocialização.
6.2. Central de Regulação de Vagas
A criação da Central de Regulação de Vagas pelo CNJ representa o risco de uma indevida interferência administrativa na atividade jurisdicional. Ao condicionar a decretação da prisão preventiva à existência de vagas no sistema prisional — em analogia à lógica de regulação do SUS —, o CNJ cria, por via administrativa, uma nova exigência que não encontra respaldo no artigo 312 do Código de Processo Penal. Tal medida não apenas afronta a legalidade estrita que rege o direito penal e processual penal, como também compromete a independência funcional dos magistrados, que devem decidir de forma fundamentada, conforme os elementos do caso concreto. Trata-se, portanto, de iniciativa inconstitucional e perigosa.
Além disso, a analogia com o sistema de saúde é inadequada. Enquanto o paciente do SUS pode buscar o custeio do tratamento na rede privada por meio de ações judiciais, o preso provisório não possui alternativa similar: ele não pode “comprar” uma vaga no sistema carcerário. A consequência prática da medida do CNJ é que criminosos que preenchem os requisitos legais para a decretação da prisão preventiva permanecerão em liberdade, ameaçando a ordem pública e a segurança da sociedade, simplesmente porque o Estado falhou em criar vagas no sistema prisional. O resultado é a inversão das prioridades constitucionais: protege-se o infrator em detrimento da coletividade.
Conforme Guilherme Nucci15,
a prisão preventiva, quando seus requisitos estiverem nitidamente presentes, precisa ser decretada, sob pena de produzir o descrédito em relação ao Poder Judiciário. Afinal, da mesma forma que o indivíduo possui, na figura do magistrado, quem lhe pode assegurar a liberdade, em contraposição à força do Estado, é preciso considerar que a sociedade, como um todo, também crê na magistratura, respeitadas as regras do Estado Democrático de Direito, para fazer cessar, em breve tempo, agressões aos direitos humanos fundamentais.
A criação de uma central de regulação de vagas, de entrada no sistema prisional, em si, não é criticada. Pelo contrário. As centrais de custódia e juízes de execução, além de advogados, defensoria, familiares e o Ministério Público precisam saber para onde o preso provisório e o apenado serão encaminhados. A crítica passa pela orientação de que, por não existir vaga para encaminhamento do preso provisório, esse deverá ser colocado em liberdade, condicionada ao monitoramento ou prisão domiciliar, que não tem o efeito de evitar a nova prática de crimes ou a pacificação social. Da mesma forma, é indevida a antecipação da saída de preso definitivo, antes de cumprir sua pena ou antes de preencher os requisitos de progressão de regime ou livramento condicional apenas “para dar espaço a novo preso”. Tais atos tendem a colocar em risco o próprio crédito do Poder Judiciário junto à população, que poderá buscar “fazer justiça com as próprias mãos” (linchamentos, adoção de associações de moradores com características de vigilantes ou de milícias, busca dos tribunais do crime das facções para aplicar justiça nas comunidades etc.).
6.3. Política de Desencarceramento
Ao adotar uma política de desencarceramento sem a devida análise de impacto social, o CNJ incorre em uma atuação que reflete o chamado “princípio da proteção deficiente” — vedado pela Constituição. O Estado tem o dever de garantir os direitos fundamentais de todos os cidadãos, o que inclui, entre outros, a segurança, a vida e a propriedade. Promover o desencarceramento em massa sem oferecer garantias de segurança à população é transferir para a sociedade os ônus da ineficiência estatal, agravando a sensação de impunidade e incentivando a prática de novos crimes.
Conforme Carolina Maria Gurgel Senra16,
o princípio da proibição da proteção insuficiente, nesse contexto, está intrinsecamente ligado ao conceito de mínimo existencial e à dignidade da pessoa humana, como resultante do dever do Estado de garantir condições materiais indispensáveis para uma vida digna a todos os cidadãos.
O princípio da máxima efetividade aplicável em relação a todos os demais direitos fundamentais, dentro do que seja fática e juridicamente possível, permite que pretensões que vão além do mínimo existencial sejam submetidas ao Judiciário, sujeitas à ponderação de interesses a ser feita em cada caso, entre o direito fundamental em questão e os princípios concorrentes.
O preso provisório e o apenado precisam ter o máximo de direitos garantido pelo Estado, mas sem a inversão de valores. Ou seja, sob a justificativa de que o Estado deixou de criar condições adequadas para a execução penal, a sociedade como um todo não pode ser punida com o ônus de ter em seu meio criminosos profissionais, já que seus direitos (vida, segurança, liberdade, propriedade e intimidade) estarão em risco.
6.4. Ausência de Considerações Fáticas do Impacto das ORCRIMs.
Outro ponto crítico é a ausência, no plano, de qualquer enfrentamento real à atuação das facções criminosas e milícias. Ignorar esse fator é fechar os olhos para uma das mais graves ameaças ao sistema prisional e à segurança pública. Organizações criminosas têm expandido seu domínio tanto dentro quanto fora dos presídios, aproveitando-se justamente da omissão e fragilidade do Estado. O silêncio do PLANO ou considerações genéricas compromete a eficácia do plano e demonstra certo distanciamento da realidade concreta do sistema penal brasileiro.
Não se pode falar em ressocialização e proteção ao apenado ou egresso sem encarar a atuação das facções e milícias dentro e fora do sistema prisional. As estatísticas e noticiários indicam a situação de guerra permanente, por território e influência junto à sociedade. O Estado precisa garantir ao egresso apoio e condições para sair da esfera de poder dessas entidades, sob pena de ser as demais ações aplicadas a esses ser inócua.
6.5. Viés Ideológico e Produção de Notas Técnicas com Envio ao Poder Legislativo
Ao adotar uma política nitidamente antipunitivista e recomendar a produção de notas técnicas e atuação junto ao legislativo para criação de leis de natureza abolicionista penal, o CNJ extrapola seu papel institucional. O órgão até pode — e deve — produzir estudos técnicos sobre o sistema de justiça criminal, mas esses estudos precisam ser plurais, considerando a diversidade de opiniões na academia, na magistratura e na sociedade. Ao seguir uma única linha ideológica, o CNJ compromete sua legitimidade institucional e desrespeita o debate democrático.
6.6. Reduzida Participação do Ministério Público e Risco de Acesso de Associações e Entidades Privadas Vinculadas a ORCRIMs no Ciclo Penal
Uma outra questão que causa estranheza no plano “pena justa” é o quase esquecimento da participação do Ministério Público nesse processo. Ao realizar uma simples pesquisa dentro do texto de quase cem páginas, verifica-se que o MP é mencionado em apenas quatro vezes, e todas elas dentro de um só capítulo denominado “diálogos com o sistema de justiça”, na página 25 do referido plano. Tal escassez de atribuições do MP nesse plano causa preocupação, visto que é o MP o titular da ação penal pública, além de ser o órgão que fiscaliza a execução da pena imposta, atuando desde a fase investigatória com o controle externo da polícia até após o trânsito em julgado das sentenças condenatórias, o que reforçar a ideia de ser um plano desenvolvido sob um claro viés abolicionista. Fica ainda mais evidente essa conclusão, quando se observa a menção a entidades da sociedade civil e congêneres por mais de cem vezes, não obstante tais entidades não fazerem parte do ciclo penal, conforme próprio conceito elaborado pelo CNJ (pág. 25).
Uma outra preocupação, decorrente primeira constatação é que tais entidades da sociedade civil, tais como ONGs e associações, em algumas oportunidades já constatadas, estão a serviço de interesses de criminosos ou, no mínimo, são cooptadas para trabalhar para o crime organizado. Vide o ocorrido com a organização de nome Nova Ordem, que na verdade era utilizada para defender vários interesses escusos do PCC, sob o verniz da legalidade de defender direitos das pessoas encarceradas17.
Outra infiltração no sistema se deu em caso bastante divulgado na mídia. Nesse caso a “Associação Instituto Liberdade do Amazonas” era presidida por uma mulher acusada de tráfico de drogas e esposa de um dos maiores traficantes do Estado do Amazonas18. A associação de defesa de direitos de pessoas presas, na verdade, tinha ou tem vinculação com a facção criminosa de que a presidente faz parte. Tais casos demonstram a fragilidade do projeto “pena justa” que têm como provável ponto de inflexão no que diz respeito ao cumprimento de penas, justamente, entidades que escamoteiam a sua verdadeira finalidade que é a defesa do crime.
Ora, a infiltração desses grupos, inclusive, representando maioria dos entes envolvidos, na tomada de decisões acerca da política de execução de penas no Brasil, ao nosso ver, fragiliza muito mais a defesa dos interesses pertinentes a defesa da sociedade, solapando de dentro para fora todo o sistema de proteção de segurança pública constitucionalmente previsto.
6.7. Outros Aspectos
Além das críticas pontuais acima, há outros aspectos relacionados ao plano que necessitam de cuidado.
Um, refere-se à diretriz de que os órgãos de execução não respeitam os precedentes das cortes superiores. A exigência de vinculação a precedentes ignora a realidade da instabilidade jurisprudencial no Brasil, especialmente em áreas sensíveis como os requisitos para a "fundada suspeita" que autoriza abordagens policiais. A jurisprudência dos tribunais superiores não raro oscila, refletindo mudanças na composição das cortes e na compreensão de temas complexos, dificultando o “respeito aos precedentes”, como é a diretriz do Plano “Pena Justa”.
Outro, refere-se à falácia de que o monitoramento eletrônico de presos em liberdade (como medida cautelar ou no regime aberto) garante efetivamente a proteção ao cidadão. Tal alegação carece de sustentação na realidade operacional do Estado brasileiro e na natureza de certos crimes, principalmente em relação a crimes cometidos sem mobilidade (estelionato, tráfico de drogas, homicídio na condição de autor mediato etc.). O Estado brasileiro demonstra incapacidade crônica em gerenciar sua população carcerária dentro dos presídios, onde o controle deveria ser máximo. Como poderia, então, monitorar eficazmente milhares de indivíduos em liberdade, muitas vezes em regiões periféricas ou com infraestrutura precária? Dados do próprio Departamento de Monitoramento Eletrônico (DEM) apontam para limitações técnicas graves (falhas de sinal, equipamentos defeituosos) e sobrecarga operacional, com um agente podendo ser responsável por centenas de monitorados.
7. CONCLUSÃO
Algumas considerações são necessárias, a título de conclusão:
O plano “Pena Justa”, do Conselho Nacional de Justiça, não obstante pregar um propósito inovador e mais humanizado no que diz respeito à execução das penas privativas de liberdade no Brasil, não enfrenta questões básicas, tais como os altos índices de criminalidade violenta e que, portanto, não permite em sã consciência medidas simplesmente “desencarceradoras”; não discute praticamente nada acerca do fenômeno criminológico das “facções criminosas”, resumindo-se neste ponto a dizer que encarceramento fermentaria mais ainda essa criminalidade; além do que se olvida da existência, hodiernamente, de vários mecanismos de despenalização, já existentes na legislação brasileira e que, portanto, já demonstra por si só a escolha de política criminal adotada de só encarcerar pessoas que praticam crimes graves e violentos.
O plano “Pena Justa” transparece um claro viés “abolicionista”, pois prega em síntese o desencarceramento em massa, sem oferecer as respostas necessárias à contenção da violência e da criminalidade organizada, como se ‘em um passe de mágica’, soltando-se criminosos a sociedade estaria mais segura.
O plano “Pena Justa” praticamente expurga de sua participação o Ministério Público, órgão este conferido de atribuições constitucionais de fiscal da lei, por outro lado, privilegia demasiadamente a participação de entidades civis que não fazem parte do tal “ciclo penal”, o que demonstra uma grande fragilidade no tal plano, pois tais entidades consideradas civis, em não poucas vezes, na verdade estão à serviço do crime organizado, como já foi detectado por várias vezes no Brasil.
O plano “Pena Justa”, não obstante falar que o “ciclo penal” é composto das ações decorrentes do intervalo consistente do crime, portanto da sua investigação inicial, até o sentenciamento e execução das penas, não contempla a participação das policiais, o mesmo sendo estes órgãos integrantes do tal “ciclo penal”, o que demonstra, mais uma vez, uma visão monocular que apetece o senso claramente abolicionista, olvidando-se que não se faz segurança pública sem a participação da polícia, que precisa ser treinada, fiscalizada e punida em casos de abusos.
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O plano “Pena Justa” não discute em absolutamente nada acerca da necessidade de criação de novas vagas no sistema prisional, o que seria matematicamente lógico ante o exponencial crescimento da criminalidade nos últimos anos. O Supremo Tribunal Federal poderia ter avançado na discussão do ADPF, exigindo a criação de novas vagas no sistema prisional, aptas a impedir a superlotação de algumas unidades e sistemas, prevendo, inclusive, bloqueio de recursos do Estado para tanto, já que, em regra, a construção de presídios não é prioridade estatal. Orientar a construção de novos presídios é medida de garantia penal binocular, ou seja, garante o direito aos presos provisórios e apenados em ter seus direitos mínimos garantidos, e também protege a sociedade, ao ter excluído, mesmo que temporariamente, de seu convívio pessoas que atentam contra a ordem pública e direitos individuais e coletivos. Conforme a crítica já constante no texto, o plano tem viés abolicionista, deixando de considerar esse ponto, salvo indiretamente.
Acerca da proposição do eixo do enfrentamento ao denominado “racismo estrutural”, o plano “Pena Justa” de mencionar que a maioria das vítimas do crime no Brasil são de grupos étnico-raciais pretos e pardos e que, ao adotarmos o direito penal do fato, este deverá ser norteado por fatos e não por etnias. Por mais que seja razoável e até necessário a discussão acerca do racismo institucional, não pode o Estado criar artefatos de benevolência criminal com base em critérios como a cor e/ou a etnia.
O plano “Pena Justa” critica a inaplicação dos entendimentos das cortes superiores pelos juízes de 1° grau, olvidando-se que a própria jurisprudência destas cortes é extremamente volátil, o que não assegura nenhuma segurança jurídica em criar uma suposta ‘cultura judicial’ de atendimento aos precedentes de cortes superiores.
O plano “Pena Justa” ainda esquece os direitos fundamentais e humanos à segurança, dos quais todos os cidadãos são formalmente detentores, portando assim cada ser humano, inclusive e em especial àqueles que não cometem crimes, o direito a ter seus bens jurídicos mais importantes protegidos pelo Estado, sob pena de se primar por uma proteção estatal ineficiente.
O viés ideológico abolicionista do plano “Pena Justa” ainda pode ser visualizado na criação das tais “central de regulação de vagas”, de forma que se arquitetou o mesmo, sob o influxo de possibilidades de solturas ilegais e indiscriminadas, inclusive, ferindo a garantia da independência jurisdicional.
Em suma, embora o Plano “Pena Justa” contenha acertos pontuais em seu diagnóstico, sua formulação e propostas apresentam vícios jurídicos, violações de garantias constitucionais, omissões preocupantes e orientações ideológicas unilaterais que merecem revisão profunda. O enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas prisões não pode ocorrer à custa da segurança da sociedade nem à custa da fragilização do próprio sistema de justiça.