Artigo Destaque dos editores

Totalitarismo sorrateiro.

(1) A prisão de motoristas que tenham consumido álcool. (2) A proibição a pessoas que respondem a processo judicial de se candidatarem nas eleições

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Quando assistimos ao retorno e à aceitação de práticas fascistas na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil, devemos estar atentos e nos mobilizar contra a penetração diária e sorrateira destas práticas. Quando menos esperarmos, o fascismo estará instalado. Na Europa, em junho de 2008, aprovaram-se normas de combate à imigração ilegal, segundo as quais uma pessoa, na condição de imigrante ilegal, pode ser presa durante 180 dias, se não cooperar. Nos Estados Unidos, a população carcerária atinge 2,7 milhões de pessoas e uma pessoa pode ser presa durante três meses para averiguação, sem direito a acusação formal e sem direito a um advogado. No Brasil, querem impedir que pessoas que respondem a processo judicial possam se candidatar nas eleições de 2008 e agora querem prender quem dirigir com qualquer quantidade de álcool, mesmo que tenha comido um bombom de licor. As pessoas obviamente se revoltam contra os efeitos perversos do álcool ou a corrupção na política; aproveitando-se dessa justificativa, o fascismo sorrateiro aprova suas leis que suprimem direitos. Se não prestarmos atenção, um dia desses estaremos sem nossos direitos, conquistados depois de muita luta e muito sangue nos últimos séculos.

Slavoj Zizek nos traz uma importante reflexão sobre esta questão. Visitando Freud e o livro dos sonhos, o pensador nos mostra que o processo de construção de maiorias políticas pode ter em diversos momentos históricos (inclusive na hegemonia neoliberal atual) um perturbador e sofisticado processo ideológico de distorção do real, com conseqüências poderosas.

Zizek nos mostra, por meio de um diálogo com Freud, que os sonhos são manifestações, muitas vezes, de medos e desejos presentes em uma estória que reflete experiências diárias, as quais muitas vezes não têm relação direta com o desejo e o medo que se esconde ali. Em outras palavras, nós construímos uma estória na qual estão presentes os nossos medos e desejos, que se escondem naquele desenrolar de fatos, criados muitas vezes em uma estória que se perde no seu desenvolvimento. Para encontrar estes desejos e medos, é necessário encontrá-los escondidos nas entrelinhas dessa estória.

Trazendo isto para a política, podemos exemplificar, como faz Zizek, com o nazismo: a sociedade alemã vivia o desemprego, a violência, o caos e a humilhação; o Partido Nacional Socialista Operário Alemão (que não era nem socialista nem operário) construiu uma estória na qual cabiam os medos e desejos daquela sociedade naquele momento. Como fazer milhões de pessoas seguirem suas idéias? Criando uma estória na qual os desejos e medos de milhões de alemães estivessem presentes. Essa estória teve então o condão de levar as pessoas, na busca da realização de seus desejos e da superação de seus medos, na direção dos interesses de quem criou a estória. Nessa estória, o estrangeiro, o judeu, é responsável pelo desemprego; o operário é tão alemão quanto o empresário; e o inimigo responsável pelo desemprego e insegurança são as potências estrangeiras. Mesmo sendo falsa a estória, a crença na estória construída mostra que a solução dos problemas que os afligem está na expulsão dos estrangeiros e especialmente os judeus. A estória, contada repetidas vezes, legitima ações que em nada podem efetivamente solucionar os seus medos e satisfazer os seus desejos, mas o importante é que a maioria acredite nisto. Enquanto milhões se mobilizam em torno dessa estória, aqueles que detêm o poder realizam seu desejos e se protegem dos seus medos.

Transferindo para a contemporaneidade brasileira, a construção da estória hoje hegemônica na imprensa conservadora, a de que podemos resolver o problema da insegurança nas grandes cidades com mais polícia, mais direito penal, com o encarceramento em massa, criando personagens que fogem da noção de humanidade (como o bandido, o monstro violento, o menor infrator e outras nomeações simplificadoras), toda uma política estatal é justificada e defendida pela maioria, que é incapaz de perceber que está agindo contra seus próprios interesses. Essa construção de estórias pode ajudar a explicar porque milhões de pessoas agem contra seus próprios interesses, repetidas vezes na história da humanidade: é uma minoria que constrói as estórias que absorvem desejos e medos de uma maioria, direcionando estes para outras finalidades que correspondem obviamente aos interesses desta minoria.

Este jogo de construções de "verdades" ideologizadas, distorcidas, faz com que a percepção do melhor seja comprometida pela vontade de poucos.

Como dito, o grupo que assume o poder do Estado (e não só o poder do Estado mas o poder econômico) cria uma estória para coordenar as ações da maioria. Invade este espaço pessoal de construção de sentidos, de coordenadas e impõe suas próprias coordenadas. Nas palavras de Zizek, quando este se pergunta por qual razão as idéias dominantes não são as idéias dos dominantes: "... cada universalidade hegemônica deve incorporar ao menos dois componentes particulares, o componente popular ‘autêntico’ e sua ‘distorção’ do fato das relações de dominação e exploração." (Pladoyer en faveur de l’intolerence, editions Climats, Castelnau le Lez, 2004, page 25).

Zizek observa que o fascismo manipula os autênticos desejos populares de busca de comunidade e de solidariedade social contra a competição feroz e a exploração, deformando a expressão deste desejo com a finalidade de legitimar a perpetuação das relações de dominação e de exploração social. Logo, a hegemonia ideológica não se constitui no caso em que um componente particular ocupa o vácuo de um universal vazio, mas sim, antes, a universalidade ideológica testemunha a luta entre ao menos dois componentes particulares: o popular, exprimindo os desejos secretos da maioria dominada, e o específico, exprimindo os interesses das forças de dominação.

Zizek menciona como exemplo o cinema, demonstrando como este pode despertar um desejo e ao mesmo tempo nos diz como desejar. É tudo que o poder dominante quer: não só dar um sentido, construir coordenadas a partir dos desejos existentes, mas também criar desejos e dizer como desejar. O que o nazismo fez foi oferecer uma estória, dar um sentido, que atendia aos interesses da classe dominante, aos desejos inconscientes das pessoas.

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Retomando Freud, Zizek explica que há uma distinção entre pensamentos "latentes" do sonho e o desejo inconsciente expresso em um sonho. É FUNDAMENTAL DIFERENCIAR A ESTÓRIA DO SONHO, O TEXTO EXPLÍCITO DESTE, DOS PENSAMENTOS LATENTES MANIFESTADOS NESSA ESTÓRIA.

De uma maneira semelhante, não há nada de fascista ou de reacionário no pensamento latente (do sonho) da ideologia fascista, no desejo de comunidade, na busca de segurança e na solidariedade social. O que explica o caráter propriamente fascista da ideologia é a maneira como este pensamento latente é transformado e elaborado pelo (trabalho do sonho) texto ideológico explícito que procura legitimar as relações sociais de dominação e exploração. O mesmo pode se aplicar ao populismo direitista de Sarkozy ou Berlusconi ou o neoliberalismo dos anos 90 até hoje, ou o ultra-conservadorismo de Bush etc.

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Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Totalitarismo sorrateiro.: (1) A prisão de motoristas que tenham consumido álcool. (2) A proibição a pessoas que respondem a processo judicial de se candidatarem nas eleições. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1828, 3 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11455. Acesso em: 22 dez. 2024.

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