3. SERVIDORES PÚBLICOS ESTATUTÁRIOS: INOVAÇÃO X RESISTÊNCIA
Antes da EC nº 45/2004, não havia sérias dúvidas acerca da delimitação jurisdicional no que tangia aos servidores estatutários. Como o antigo art. 114 referia-se a "trabalhadores e empregadores", era evidente que os servidores estatutários, que não têm relação de emprego com o Estado, estariam excluídos da competência da Justiça do Trabalho. Contrario sensu, os empregados públicos, isto é, aqueles trabalhadores subordinados às empresas públicas e às sociedades de economia mista, deveriam recorrer ao Tribunal Trabalhista.
Válido comentar que o Egrégio Supremo Tribunal Federal, por ocasião da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 492-1 [23], ao declarar a inconstitucionalidade do extinto art. 240, "e", da Lei nº 8.112/90 (que assegurava ao servidor público civil o "ajuizamento, individual e coletivamente, frente à Justiça do Trabalho, nos termos da Constituição Federal", das ações em face da Administração), utilizou, dentre outros argumentos, o de que o Estado, em relação ao servidor, não poderia ser considerado "empregador", como constava no art. 114 da CRFB, na acepção da palavra adotada pelo Direito pátrio.
De fato, correta a Corte Suprema naquela ocasião. A redação do antigo art. 114 realmente restringia a competência da Justiça do Trabalho aos conflitos oriundos da relação de emprego, e o servidor estatutário não é, de modo algum, empregado do Estado. Já se disse: a relação de emprego tem natureza contratual, e não se confunde com o vínculo jurídico-administrativo que liga o servidor estatutário ao Estado, embora em ambas as relações se vislumbre trabalho subordinado.
Com a EC nº 45/2004, o art. 114, I, conforme visto, atribuiu à Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar as "ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios".
Já foi dito acima que o serviço público é espécie de relação de trabalho. Assim, a mera leitura do novo dispositivo constitucional já seria suficiente para se vislumbrar a inovação da Emenda: a Justiça do Trabalho é agora competente para apreciar as ações entre os servidores públicos estatutários e a Administração Pública. Contudo, em se tratando do Judiciário Brasileiro, pouca coisa é tão simples assim.
Nem bem entrou em vigor a EC nº 45, em 31/12/2004, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (nº 3.395-6), questionando a constitucionalidade do art. 114, I. Alegou vício formal no processo legislativo, por ter sido suprimida no Senado Federal, sem retorno à Câmara dos Deputados, a ressalva que retirava da Justiça do Trabalho a competência para o processamento e julgamento das lides estatutárias [24].
O argumento do vício formal foi afastado pelo Ministro Nelson Jobim, que primeiro conheceu a ADI, sob o argumento de que "a não inclusão do enunciado acrescido pelo SF [Senado Federal] em nada altera a proposição jurídica contida na regra". Porém, foi concedida liminar, com efeito ex tunc, para suspender, ad referendum, toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do art. 114 da CF, na redação dada pela EC n. 45/2004, que inclua, na competência da Justiça do Trabalho, a "...apreciação... de causas que... sejam instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo".
No texto da mesma decisão, deixou o douto Ministro transparecer sua opinião sobre o mérito da causa, ao afirmar que não há que se entender que a Justiça do Trabalho, a partir do texto promulgado, possa analisar questões relativas aos servidores públicos. Segundo ele: "Essas demandas vinculadas a questões funcionais a eles pertinentes, regidos que são pela Lei 8112/90 e pelo Direito Administrativo, são diversas dos contratos de trabalho regidos pela CLT" [25].
Data maxima venia, equivoca-se, e muito, o emérito magistrado. Ou ainda se prende à antiga redação do art. 114, ou, o que é pior, confunde a natureza da relação com o regime jurídico adotado. Repita-se quantas vezes for necessário: a relação de emprego e a relação estatutária entre o servidor e o Estado pertencem ao mesmo gênero de relação jurídica – a relação de trabalho. Não há que se confundir esta natureza com o regime jurídico adotado (a CLT ou a Lei nº 8.112/90). O maior exemplo disso é a EC nº 19/98, que acabou com a obrigatoriedade do regime jurídico único para os servidores públicos. É claro que um servidor público, subordinado à Administração Pública Direta mas regido pela CLT, não perde o status de servidor público; o que muda é o regime, mas não a natureza da relação jurídica.
Permite-se a abertura de breve parêntese, a fim de se comentar que a decisão do Ministro Nelson Jobim demonstra um pensamento arcaico e preconceituoso, que sempre foi dirigido ao Direito e à Justiça do Trabalho; é o mesmo pensamento elitista que sempre considerou o Direito do Trabalho um "Direito menor", e a Justiça do Trabalho como uma "Justiça menor", em que o Juiz – que sacrilégio! – era visto todos os dias em contato direto com as partes, e que tinha sempre a "tarefa menor" de resolver os problemas entre o operário pobre e seu patrão-empresa. Mas, felizmente, este quadro tende a mudar.
É bem verdade que as questões relativas a competência judicial implicam, no fundo, em disputa por poder entre os órgãos jurisdicionais. De um lado, busca-se a preservação da competência original, e de outro busca-se a sua ampliação. Entretanto, nessas disputas, o derrotado sempre é o jurisdicionado, que fica à mercê de discussões infindáveis a respeito do órgão que deve apreciar a lide, enquanto o mérito da demanda é deixado em segundo plano [26].
Neste caso, a "vitória" da Justiça do Trabalho significará a vitória dos servidores (bom lembrar: espécie do gênero trabalhadores), eis que a Emenda devolveu as questões do trabalho a uma classe de magistrados historicamente comprometida com a Justiça social e a valorização da pessoa humana. Ironicamente, as demandas dos servidores públicos, trabalhadores subordinados aos maiores "patrões" (os entes estatais), sempre foram apreciadas por magistrados habituados a ver as partes como iguais [27], no padrão tradicional civilista.
Na realidade, a EC nº 45/2004 operou uma correção, um ajuste, pôs, finalmente, as coisas no lugar. Ora, os servidores são trabalhadores! Têm sindicatos, fazem greve, têm carga horária, têm de obedecer a superiores hierárquicos, têm de se preocupar com o meio ambiente de trabalho (condições higiênicas, doenças ocupacionais etc.), tiram férias... São subordinados; juridicamente vulneráveis! Não fazia sentido continuarem a ter suas demandas apreciadas por órgãos jurisdicionais que não têm a visão sócio-jurídica do magistrado trabalhista. E é lamentável ver um setor do próprio Judiciário resistindo a inovações sócio-juridicamente benéficas e adequadas, em nome de uma suposta e mesquinha "manutenção de poder".
Há luz no fim do túnel, porém. Em decisão que talvez venha a demonstrar certa renovação de pensamento dos Ministros, o STF decidiu ser competente a Justiça do Trabalho para o julgamento das ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos servidores estatutários, aplicando a estes trabalhadores a Súmula 736 [28]. Tal decisão, publicada em 19/11/2007, ocorreu no âmbito da Reclamação nº 3.303, em que o Estado do Piauí (reclamante) alegava que a decisão da 2ª Vara do Trabalho de Teresina, a qual o obrigou a observar as normas de saúde, higiene e segurança do trabalho no seu Instituto de Medicina Legal, contrariava a decisão liminar da ADI nº 3.395-6. Conforme noticiado no sítio do STF, no dia 19/11/2007, a Corte entendeu que a decisão da Vara Trabalhista em nada contrariava a decisão da ADI nº 3.395-6, apenas tendo a Ação Civil Pública reclamada "por objeto exigir o cumprimento pelo poder público piauiense de normas trabalhistas relativas à higiene, segurança e saúde dos trabalhadores".
Observe-se que o STF já trata os servidores como "trabalhadores". É um bom indício.
Independentemente de se adentrar na questão da inconstitucionalidade formal do art. 114, I, da CRFB, impende dizer que a referida ADI não deve prosperar, tendo em vista a evidente falta de pertinência temática da AJUFE no que concerne aos servidores estaduais e municipais. No entanto, não causará tanta surpresa se ocorrer o contrário, eis que do Tribunal Supremo pátrio, assediado e impregnado de constantes pressões políticas e sociais, pode-se esperar de tudo.
Mas, por enquanto, é importante respeitar a decisão liminar, sob pena de se arriscar a segurança jurídica dos julgados. Até decisão final da ADI nº 3.395-6, o Judiciário pátrio terá de se conformar com a temporária contrariedade ao art. 114, I, no que concerne aos servidores públicos estatutários.
4. AUTÔNOMOS: RELAÇÃO DE CONSUMO OU RELAÇÃO DE TRABALHO?
O gênero de trabalhadores chamados autônomos diferenciam-se dos empregados e dos servidores públicos pela ausência do elemento fático-jurídico da subordinação [29], entendida essa como a submissão voluntária do trabalhador ao poder diretivo do tomador dos serviços [30].
Por conseguinte, o trabalhador autônomo, ao contrário do subordinado (vide arts. 2º e 3º da CLT), até por uma questão de lógica, assume o risco do serviço prestado, eis que "conserva o poder de direção sobre a própria atividade, autodisciplinando-a segundo seus critérios pessoais e conveniências particulares" [31]. Mas isso é mera conseqüência jurídica inerente ao contrato, um efeito contratual, que não representa elemento constitutivo da relação, podendo até mesmo ser afastado por ajuste entre as partes [32].
Diverge também o trabalho autônomo no aspecto da pessoalidade; enquanto que no contrato de emprego e no serviço público a pessoalidade do trabalhador é elemento fundamental, ela somente será obrigatória no trabalho autônomo se houver no contrato cláusula de exclusividade.
Pois bem. Conforme visto acima, após o advento da EC 45/2004, o contrato de emprego, regido precipuamente pela CLT deixou de ser a matéria de apreciação central da Justiça do Trabalho, sendo esta competente também para a apreciação de todas as outras relações de trabalho, devido à amplitude do novo art. 114, I. E é pacífico na doutrina a inclusão, nesta seara, das relações entre os trabalhadores autônomos e os tomadores dos seus serviços.
Entretanto, a grande cizânia surge no que diz respeito à natureza dessa relação. No que concerne à relação entre um trabalhador autônomo e o tomador do seu serviço, haverá uma relação de trabalho ou uma relação de consumo?
A relevância dessa definição é fundamental para a delimitação da competência material do órgão jurisdicional. Seguindo a corrente da relação de consumo, a competência será da Justiça Comum; seguindo a corrente da relação de trabalho, a competência será, evidentemente, da Justiça do Trabalho.
Em verdade, a definição não é simples desta maneira; as relações jurídicas de trabalho e de consumo se mesclam no quadro social, criando grande complexidade. De fato, tanto o Direito do Trabalho quanto o Direito do Consumidor surgiram com objetivos similares: ambos nasceram para a proteção da parte mais vulnerável. O Direito do Trabalho adveio, na época da Revolução Industrial, para a proteção dos trabalhadores ante a sanha de produção desenfreada dos detentores do capital, o que provocava a exploração desumana da mão-de-obra; o Direito do Consumidor surgiu como resposta às crescentes técnicas predatórias do mercado de consumo, que desequilibrava sobremaneira a relação entre as partes, devido à superioridade técnica e econômica dos detentores do capital (aliás, os mesmos citados no caso do Direito do Trabalho).
Sendo assim, não deveria haver conflito entre tão nobres ramos do Direito.
Na verdade, em toda a relação de consumo baseada em prestação de serviços por trabalhador (pessoa física) autônomo há uma relação de trabalho. E existe, sim, relação de trabalho e não exclusivamente uma relação de consumo, porque o trabalho humano não é uma mercadoria [33]; e negar isso seria um terrível e infeliz retrocesso aos primórdios do capitalismo [34], aos tempos da escravidão, aos tempos da mercantilização do trabalho humano. Não que essas formas aviltantes de exploração do trabalho estejam extintas; infelizmente, são até comuns no Brasil os casos de trabalho forçado, e são mais comuns ainda os casos de merchandage, isto é, a intermediação de mão-de-obra, em que o trabalho humano deixa de ser uma relação jurídica interpessoal e passa à similitude com os contratos de compra e venda ou locação [35].
Decerto que não competirá à Justiça do Trabalho apreciar demanda em que o autor, no papel de consumidor, questiona o resultado do serviço realizado pelo fornecedor (isto é, o trabalhador autônomo na relação de trabalho), exceto de forma incidental. Por outro lado, quando há violação do processo produtivo (por exemplo, com a ausência de pagamento do profissional que realizou o serviço), caberá ao Tribunal Trabalhista socorrer o mesmo trabalhador autônomo (isto é, o fornecedor na relação de consumo). Dizendo em outras palavras, haverá competência da Justiça do Trabalho para dirimir todas as causas sobre relação de trabalho, incluindo as que tenham como pano de fundo uma relação de consumo; já uma lide versando propriamente sobre a relação de consumo, ou seja, entre o consumidor e o prestador de serviços (fornecedor/trabalhador autônomo), questionando justamente a última etapa da produção (consumo), e não o trabalho em si, não pertence à Justiça do Trabalho [36].
Assim, compete à Justiça do Trabalho apreciar e julgar as lides que envolvam relações de trabalho, mesmo que originadas de relações de consumo, observando-se os litígios que envolvam o trabalho humano como uma das etapas da produção, excluindo-se apenas as discussões que envolvam a última etapa, isto é, o resultado, o consumo propriamente dito [37].
Lembre-se novamente que isto não significa a utilização pelos Juízes do Trabalho somente dos diplomas legais ditos "trabalhistas" (CLT e correlatos). Observe-se que o diploma legal não define a natureza da relação, mas apenas o tratamento jurídico que deverá ser dado. Conseqüentemente, a competência não se define pela legislação utilizada. Há relação de trabalho (e conseqüente competência da Justiça do Trabalho) regulada pela legislação civil, isto é o Código Civil (arts. 593 a 609 – prestação de serviços; arts. 610 a 626 – empreitada; arts. 722 a 729 – corretagem etc.) e as leis específicas, como, verbi gratia, a Lei nº 4.886/65 (representação comercial).
O Juiz Laboral não favorecerá sempre o trabalhador; em verdade, sendo um conhecedor profundo das relações de trabalho, saberá, melhor que ninguém, sopesar as diversas peculiaridades do caso concreto, havendo maior possibilidade de chegar a uma decisão mais adequada e justa.