RESUMO
O presente trabalho visa fazer algumas considerações pertinentes às principais modificações e inovações na competência material da Justiça do Trabalho, produzidas pelo advento da Emenda Constitucional nº 45, de 31 de dezembro de 2004. O trabalho aborda o conceito de relação de trabalho, trazido à baila por conta da nova redação do artigo 114, inciso I, da Constituição da República, bem como suas implicações, sobretudo no que concerne à ampliação da competência da Justiça Laboral. Aborda, ainda, a nova interpretação a se fazer quanto aos dissídios coletivos e às causas sobre representação sindical.
Palavras-chave: Justiça. Trabalho. Competência.
SUMÁRIO :1. Introdução; 2. Relação de trabalho: a polêmica do conceito; 2.1. Os incisos I e IX do art. 114: contradição ou complementação?; 3. Servidores públicos estatutários: inovação X resistência; 4. Autônomos: relação de consumo ou relação de trabalho?; 5. Causas sindicais: um novo enfoque?; 5.1. Uma filigrana gramatical; 5.2. Adequação necessária; 6. Dissídios coletivos: manutenção ou diminuição de poder?; 6.1. Breve conceito e classificação; 6.2. "De comum acordo": o fim do poder normativo?; 6.3. Extinção do dissídio coletivo de natureza jurídica?; 7. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende analisar os principais aspectos das modificações ocorridas na competência material da Justiça do Trabalho em decorrência do advento da Emenda Constitucional nº 45/2004.
A Emenda Constitucional nº 45/2004, que trouxe à lume a aclamada "Reforma Judiciária", realizou, dentre tantas modificações no Poder Judiciário, uma significativa ampliação do rol de competências materiais da Justiça do Trabalho, a exemplo da inclusão da expressão "relação de trabalho" em substituição a "trabalhadores e empregadores".
Diante dessas mudanças, os profissionais do Direito, em seu atuar autônomo, nos órgãos particulares ou nas entidades estatais, bem como os jurisdicionados em geral, deparam-se com dilemas e dúvidas ainda não completamente sanadas devido à novidade do art. 114 da Lei Maior, tornando evidente que, para atender aos anseios da sociedade e da comunidade jurídica, importa saber a que seara judiciária deve-se submeter determinada demanda. Antes, porém, também necessário saber, agora mais do nunca, se tal demanda é trabalhista ou não.
Assim, a correta delimitação da competência material dos Órgãos do Poder Judiciário Trabalhista satisfaz os objetivos do indispensável e fundamental princípio da segurança jurídica, na medida em que dissipadas as dúvidas (ou, ao menos, levantadas sugestões para atingir esse objetivo) sobre qual seria o mais adequado ramo do Judiciário para apreciar as demandas indicadas no rol do novel art. 114 da CRFB.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento do trabalho baseou-se em pesquisa bibliográfica, alicerçando-se nos manuais de doutrina jurídica, em livros específicos sobre o assunto, em diversos artigos publicados em revistas especializadas e na jurisprudência.
Ao longo deste trabalho, abordar-se-á: o conceito de relação de trabalho, que tem gerado tantas e tão grandes divergências; a dúvida acerca da competência dos Tribunais Trabalhistas para apreciar as demandas entre servidores públicos estatutários e os entes da Administração Pública Direta; a enorme e aparentemente interminável controvérsia entre relação de consumo e relação de trabalho; finalmente, os reflexos da EC 45/2004 sobre as causas sindicais e os dissídios coletivos.
2. RELAÇÃO DE TRABALHO: A POLÊMICA DO CONCEITO
A Emenda Constitucional nº 45/2004 incluiu o art. 114, I e IX, na Lex Mater, para fazer com que a Justiça do Trabalho fosse competente para processar e julgar as "ações oriundas da relação de trabalho" (inciso I), bem como "outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho" (inciso IX). Tal inovação veio substituir a anterior expressão "trabalhadores e empregadores".
Essa modificação é, sem dúvida, a mais importante de todas, no que tange à competência da Justiça do Trabalho, pois o conceito de "relação de trabalho" é o elemento que norteará e delimitará praticamente todos os casos de atuação do Judiciário Trabalhista. Por tal razão, é imprescindível, antes de se começar a falar da competência propriamente dita, estabelecer um conceito – uma definição – do que vem a ser relação de trabalho, de modo a se adotar como referência absoluta a ser seguida. Entretanto, essa tarefa é mais árdua do que se pode supor a priori, conforme se verá.
Passa-se, então, a analisar os conceitos de maneira desmembrada, para, após, trazer algumas das definições dadas pela doutrina, e, ao final, trazer o conceito adotado.
O vocábulo "relação" significa referência, ligação, vinculação [01]. Assim, relação é, sempre, algo que envolve pelo menos dois seres, dois entes, enfim, em todas as ocasiões, referir-se-á a, minimamente, uma dualidade de situações. Em se tratando de relação jurídica – pois jurídica é a natureza da relação que se pretende analisar –, o conceito restringe-se, a fim de abranger apenas as entidades dotadas de personalidade jurídica própria, isto é, as pessoas físicas (ou naturais) e jurídicas.
Como a relação de trabalho, que se procura conceituar, trata-se de uma espécie de relação jurídica, cumpre expor que são elementos de qualquer relação jurídica: um sujeito ativo, que é o titular ou beneficiário principal da relação; um sujeito passivo, isto é, o devedor da prestação principal; o vínculo de atributividade, ligando um sujeito ao outro; e o objeto, que é a razão de ser do vínculo constituído [02]. Lembrando-se que, geralmente, a relação de trabalho é sinalagmática, devendo cada parte uma obrigação para com a outra, fato que torna ambas as partes sujeitos ativos e passivos da relação.
Por sua vez, a expressão "trabalho" quer significar a aplicação das forças e faculdades humanas para alcançar um determinado fim, ou ainda, uma atividade coordenada, de caráter físico e/ou intelectual, necessária à realização de qualquer tarefa, serviço ou empreendimento [03].
Desde já se verifica que é um conceito bem mais complexo, com maiores implicações jurídicas. A observação a se fazer é que trabalho sempre se refere a esforço humano. Só as pessoas físicas podem trabalhar, porque só os seres humanos são capazes de exercer uma atividade coordenada, de caráter físico e, principalmente, intelectual, com uma finalidade. Refere-se a dispêndio de energia pelo ser humano, e não por seres irracionais ou pessoa jurídica [04]. As pessoas jurídicas, sendo ficções criadas pelo Direito, "agem" presentadas por pessoas naturais, sendo equivocado dizer que elas trabalham, no sentido aqui proposto.
Pois bem, o único consenso que os doutrinadores justrabalhistas parecem admitir é que relação de trabalho é um termo genérico, que abrange várias formas de prestação de labor humano. Destarte, quase [05] todos aceitam que a EC 45/2004 ampliou o rol dos contratos cujos conflitos passaram a ser submetidos à competência da Justiça do Trabalho [06], ao adotar tal expressão.
O saudoso Desembargador José Maria de Mello Porto, do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, definiu relação de trabalho como o vínculo jurídico estabelecido, tácita ou expressamente, entre um trabalhador, necessariamente pessoa física, e um tomador, pessoa física ou jurídica, que se obriga a uma contraprestação pecuniária visando a remunerar os serviços prestados, autonomamente ou de forma subordinada, por aquele [07].
Em seu magistério, o catedrático italiano Francesco Santoro-Passarelli ensina que a relação de trabalho seria um complexo no qual poderes e deveres de várias naturezas gravitam em torno das duas obrigações recíprocas que dão à relação uma estrutura essencialmente obrigacional: a obrigação que tem por objeto a prestação do trabalho, consistente tipicamente em um fazer, e a obrigação que tem por objeto a prestação da remuneração, consistente em um dar [08].
Já o douto Ministro Arnaldo Süssekind diz que relação de trabalho corresponde ao vínculo jurídico estipulado, expressa ou tacitamente, entre um trabalhador e uma pessoa física ou jurídica, que o remunera pelo serviço prestado [09].
Os conceitos supra, não obstante a eminência de seus autores, não coincidem com o conceito a que se pretende chegar, pois, ao condicionar a relação de trabalho a uma contraprestação pecuniária, excluem o trabalho voluntário (Lei nº 9.608/98) e até mesmo o estágio não remunerado (Lei nº 6.494/77, art. 4º - "o estagiário poderá receber bolsa ou outra forma de contraprestação a ser acordada..."), o que não se deseja. Como bem diz Roberto Davis, a relação de trabalho pode ou não ser gratuita, sendo que a gratuidade pode decorrer diversos fatores, como parentesco, religiosidade, beneficência ou do caráter nobilitante do serviço prestado [10].
Maurício Godinho Delgado argumenta que relação de trabalho abrangeria todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada numa obrigação de fazer consubstanciada em labor humano, referindo-se a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível [11].
Objeta-se, porém, respeitosamente, do egrégio doutrinador, quando ele reduz a relação de trabalho a uma relação contratual. Nem toda relação de trabalho é emanada de um contrato, de uma pactuação de vontades, com direitos e obrigações recíprocas, embora, como já dito, a maior parte das relações de trabalho assim seja. Algumas vezes a legislação que trata do trabalho estende-se a pessoas que não estão ligadas por um contrato [12]. Tome-se, como exemplo, a relação do servidor público com o Estado (que será analisada com maior profundidade mais adiante neste trabalho). É uma relação de trabalho, porém não advém de um contrato; o servidor não mantém vínculo contratual com o Estado, mas tão somente se submete ao Estatuto, constituindo-se um vínculo de natureza administrativa. Contudo, repita-se, continua sendo uma relação de trabalho [13].
Délio Maranhão professava que somente existiria relação de trabalho se estivesse presente o serviço subordinado [14].
Subordinação implica na dependência jurídica do trabalhador ao tomador do serviço. De fato, a subordinação está na base da principal espécie de relação de trabalho: a relação de emprego, onde o empregado submete-se ao jus variandi (poder diretivo) do empregador. E também está presente na relação entre o servidor público e o Estado, de maneira evidente. Porém, o conceito de relação de trabalho não pode se condicionar à subordinação de uma parte para com a outra, pois, muitas vezes, o tomador do serviço nem tem conhecimento técnico do trabalho a ser realizado (como ocorre na maioria dos casos de trabalho autônomo), sendo inviável a idéia de o tomador exercer poder sobre o trabalhador.
Observe-se: a nova norma constitucional, no concernente à "relação de trabalho" não distingue entre o trabalho subordinado, autônomo, parassubordinado, contínuo, eventual, remunerado ou gracioso, de modo que não caberia ao intérprete introduzir limitações, excluindo qualquer um desses modos de laborar [15].
Ora, mas então se todos esses conceitos de relação de trabalho são considerados inadequados, qual seria a definição desejada? Cotejando todos os ensinamentos acima expostos, e retirando deles o que há de melhor, temos que:
A relação de trabalho é a relação jurídica, tácita ou expressa, em que um trabalhador (necessariamente pessoa física) cede sua energia laborativa física e/ou intelectual a um tomador (pessoa física ou jurídica), independentemente de contraprestação, de maneira subordinada ou autônoma.
Tal é, assim, a definição que servirá de norte para o presente trabalho, sendo que, sempre que se referir a relação de trabalho, o leitor deverá se remeter a ela.
Deste conceito conclui-se que relação de trabalho é um gênero do qual são espécies diversas outras relações (ou sub-relações), contratuais ou não, mas sempre jurídicas. Dentre as espécies de relação de trabalho, tem-se: serviço público, trabalho autônomo (prestação de serviços, empreitada, representação comercial), trabalho avulso, trabalho eventual, trabalho voluntário, estágio etc., e a mais clássica e comumente objeto dos manuais doutrinários trabalhistas: a relação de emprego, que encontra suas regras na Consolidação das Leis do Trabalho, precipuamente. Assim, infere-se que toda relação de emprego é uma relação de trabalho, mas nem toda relação de trabalho é uma relação de emprego.
Na esteira deste pensamento, vale dizer que contrato de trabalho (uma necessária decorrência de uma relação de trabalho) é gênero, que compreende contrato de emprego. Assim, a rigor, contrato de trabalho poderia envolver qualquer trabalho, como o avulso, o eventual, o voluntário, a prestação de serviços etc. Contrato de emprego diz respeito à relação de emprego, ou seja, a relação entre empregado e empregador, a não a outro tipo de trabalhador. Todavia, o costume de tratar como sinônimas as expressões "contrato de trabalho" e "contrato de emprego" já se consagrou (com imensa contribuição, ironicamente, da própria Consolidação das Leis do Trabalho, vide arts. 442 e segs.), muito embora possa ser criticada sob o enfoque estritamente técnico-jurídico [16].
Enfim, uma coisa é fato: com a Emenda, ao invés da relação de trabalho ser apenas excepcionalmente da competência da Justiça do Trabalho, junta-se à relação de emprego para compor a matéria básica (mas não a única, como se verá) sobre a qual atuará a jurisdição laboral. Assim fazendo, o constituinte derivado reduziu o fosso que havia entre trabalhadores em geral e empregados [17].
2.1. Os incisos I e IX do art. 114: contradição ou complementação?
Como já dito, a EC 45/2004 instituiu o inciso I no art. 114 da Carta Magna, no sentido de dar à Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar as "ações oriundas da relação de trabalho". Em princípio, a cizânia somente se cingiria sobre a amplitude e alcance da expressão "relação de trabalho", e, ao se atingir um consenso sobre o conceito desta, a discussão ficaria exaurida. No entanto, o constituinte derivado, por razões a serem analisadas, fez mais: incluiu o inciso IX no art. 114, no sentido de atribuir aos Tribunais Trabalhistas a competência para processar e julgar "outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei".
De fato, este quadro enseja certa complexidade, em princípio. Ora, se o inciso I já atribui a competência para as ações oriundas da relação de trabalho (e aqui se presume todas as relações de trabalho, no limite do seu conceito exegético), qual a razão de, no inciso IX, se atribuir competência para outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho? Porque "outras", se a presunção é que "todas" estariam no inciso I? E, pior, "na forma da lei"!
Assim, a importância de se discutir o assunto é evidente, eis que uma interpretação errônea do inciso IX pode trazer graves reflexos à ampliação (tão ansiada) da competência material da Justiça do Trabalho, havendo, mesmo, a possibilidade de uma exegese restritiva do seu campo de atuação.
O cerne da análise é saber se há ou não contradição entre os incisos I e IX do art. 114 da Constituição de 1988.
Para Arnaldo Süssekind, há clara contradição entre os dois dispositivos, sendo que o inciso IX teria "chovido no molhado", isto é, seria uma regra inútil, porquanto, havendo ou não lei especial afirmando a competência do Tribunal Laboral para apreciar controvérsia sobre qualquer modalidade de relação de trabalho, essa competência já estaria inclusa no inciso I [18].
Por outro lado, poder-se-ia inferir que não há contradição entre os incisos I e IX; porém, o inciso IX geraria um efeito extremamente restritivo sobre o inciso I (conseqüentemente, abortando a efetiva ampliação da competência laboral), no sentido de que somente com o surgimento de leis específicas, a Justiça do Trabalho teria competência para apreciar ações envolvendo relações de trabalho [19].
A corrente intermediária também não vê contradição entre os dois dispositivos em discussão; entretanto, diferentemente da corrente acima, não haveria restrição, mas sim uma complementação entre os incisos I e IX. Enquanto o inciso I estabeleceria a competência geral e ampla, o inciso IX abriria ao legislador infraconstitucional a possibilidade de especificar ou, até mesmo, de ampliar o alcance da competência juslaboral, sem a necessidade de nova modificação constitucional [20].
Ponderando as hipóteses de interpretação, observa-se, claramente, maior razoabilidade e sustentação científica na corrente intermediária.
A primeira corrente não deveria prosperar, eis que, adotando-se o brocardo, a lei (lato sensu) não possui palavras inúteis; ora, não haveria razão alguma de se incluir um dispositivo constitucional inócuo, sem serventia. Houve uma reforma na Lei Maior, e o intérprete deve lidar com isso, sem ignorar, nem relegar ao ostracismo a novel redação constitucional.
Quanto à segunda corrente, mostra-se ela ainda mais frágil que a primeira. Ora, é uma questão de lógica: se não fosse para modificar a competência da Justiça do Trabalho, seria melhor não haver Emenda alguma. A EC 45/2004 teve límpida intenção de ampliar a competência juslaboral, basta a leitura dos outros incisos; uma interpretação restritiva bateria de frente com o espírito da norma, devendo tal ser descartada.
Realmente, sábios os romanos, ao proclamarem que in medio virtus. A corrente intermediária é a melhor, pois vai ao encontro de todo o movimento de reformulação da Justiça do Trabalho e, mesmo, da criação de um novo Direito do Trabalho.
As relações de trabalho tornam-se mais dinâmicas e diversificadas a cada ano, e seria absurdo que toda a Instituição do Direito do Trabalho se curvasse apenas sobre a tradicional e restrita relação de emprego e sobre esparsas e específicas relações de trabalho expressamente previstas em lei.
Não. O Direito do Trabalho (e, por conseqüência, a Justiça do Trabalho) deve acompanhar pari passu esse estado de coisas. Não se está pregando o abandono do tradicional Direito do Trabalho, mas sim que ele deve abarcar agora todas as formas de exploração de mão de obra, seja qual for sua rotulação [21].
O inciso IX do art. 114 seria, então, um dos instrumentos auxiliares dessa filosofia. Trataria de permitir a caracterização das formas de exploração do trabalho humano que estão a surgir a todo o momento. O objetivo do explorador da mão de obra não mudou, desde a Revolução Industrial: continua sendo o lucro. No entanto, modificaram-se as formas de exploração; o capital vestiu-se de nova roupagem, para manter suas formas de dominação [22]. Por isso, extremamente útil este dispositivo, que permitirá ao legislador bem intencionado a regulamentação das futuras inovações da exploração do trabalho humano.