Resumo: A rápida evolução da inteligência artificial tem gerado um impacto significativo em diversas áreas, incluindo o campo jurídico. No contexto do processo civil, a introdução de ferramentas baseadas em IA apresenta questionamentos importantes sobre eficiência, equidade e autonomia decisória. Este artigo examina os diversos impactos do uso de inteligência artificial no campo processual, destacando suas implicações para os agentes do processo, bem como para o sistema judiciário como um todo. Primeiramente, aborda-se a aplicação da IA na análise prévia de casos, destacando como algoritmos podem auxiliar na previsão de resultados judiciais e na identificação de padrões jurisprudenciais. Em seguida, são discutidas as vantagens e desafios da utilização de sistemas de IA para automatização de tarefas rotineiras, como a revisão de documentos e a análise de evidências. Não obstante, são abordadas discussões éticas e de transparência relacionada a realização de atos processuais diante da crescente integração da inteligência artificial considerando possíveis cenários de transformação do sistema judicial e a necessidade de políticas regulatórias que garantam a equidade e a justiça no uso dessas tecnologias.
Palavras-chave: Direito Processual. Inteligência Artificial. Transparência. Ética. Decisões.
Sumário: Introdução. 1. Breve Histórico e Evolução da Inteligência Artificial no Contexto Jurídico. 2. Desafios Éticos e os Limites da Inteligência Artificial Nas Decisões Judiciais. 3. A Importância da Transparência Algorítmica e da Regulação Tecnológica no Processo Civil. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Atualmente, no mundo jurídico, a ascensão da inteligência artificial (IA) tem redefinido as fronteiras do possível. O impacto dessa tecnologia é inegável em variadas áreas, e o processo civil não é exceção. À medida que o ambiente jurídico se torna propício para o avanço de algoritmos, surgem novos cenários, perspectivas, desafios e oportunidades para todos os envolvidos no sistema de justiça.
Historicamente, o processo civil tem sido caracterizado por uma série de procedimentos e práticas que, embora fundamentais para a administração da justiça, muitas vezes são morosas e complexas, comprometendo inclusive a função social do processo. No entanto, a introdução de tecnologias baseadas em IA oferece a promessa de transformar fundamentalmente essa realidade, proporcionando eficiência, acessibilidade e até mesmo uma maior imparcialidade ao processo.
No entanto, o advento da IA no processo civil, assim como em qualquer área do cotidiano, não está isento de desafios e preocupações. Questões éticas, como viés algorítmico e privacidade de dados, surgem à medida que confiamos cada vez mais em sistemas automatizados para tomar decisões com implicações jurídicas significativas, principalmente considerando a existência de demandas que tramitam em segredo de justiça. Além disso, a adaptação dos profissionais do direito a esse novo cenário tecnológico levanta questões sobre a necessidade de educação continuada e desenvolvimento de novas habilidades.
Diante do exposto, exploraremos os impactos do uso de inteligência artificial no processo civil, com intuito de fornecer uma visão abrangente dos prós e contras advindos da revolução tecnológica. Desta forma, espera-se contribuir para um debate informado e enriquecedor sobre o futuro do sistema judicial em uma era digitalizada.
1. BREVE HISTÓRICO E EVOLUÇÃO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO CONTEXTO JURÍDICO
A Inteligência Artificial surgiu como campo de estudo em meados do século XX, a partir de reflexões como as de Alan Turing, que em 1950 questionava: "As máquinas podem pensar?". Com a proposta do Teste de Turing, abriu-se espaço para o desenvolvimento de sistemas que buscavam simular capacidades cognitivas humanas, como reconhecimento de padrões, raciocínio lógico e tomada de decisões.
Ao longo das décadas, os avanços computacionais permitiram o surgimento de diferentes vertentes da IA, como o aprendizado de máquina (machine learning), as redes neurais artificiais e, mais recentemente, a IA generativa, que já é capaz de produzir textos, imagens e vídeos de forma autônoma.
No campo jurídico, o uso de IA começou de forma tímida, restrita à automação de tarefas repetitivas, como digitalização de documentos e indexação de processos. Contudo, com o crescimento da litigância de massa e da demanda por celeridade no Judiciário, novas ferramentas foram desenvolvidas para análise preditiva de decisões, jurimetria, revisão de contratos, e até triagem de recursos judiciais.
Nos Estados Unidos, sistemas como Watson (IBM) e Ross Intelligence ganharam notoriedade por auxiliar advogados em pesquisas jurídicas e previsão de julgamentos. No Brasil, destaca-se o uso de IA por órgãos públicos: a Advocacia-Geral da União, por exemplo, adotou o sistema Sapiens para padronização e produção automatizada de peças processuais; o Supremo Tribunal Federal, por sua vez, implementou o sistema Victor, que ajuda na triagem de recursos extraordinários com base na repercussão geral.
Além disso, diversos tribunais têm desenvolvido projetos próprios de inteligência artificial para reconhecimento de demandas repetitivas, triagem de processos e sugestão de propostas de voto em julgamentos colegiados.
É importante ressaltar, contudo, que essa evolução tecnológica traz consigo o desafio de compatibilizar inovação com as garantias constitucionais do processo civil, como o contraditório, a motivação das decisões e a igualdade das partes. Por isso, a compreensão da trajetória histórica da IA e sua incorporação progressiva no universo jurídico é fundamental para avaliar os seus reais impactos no sistema de justiça.
2. DESAFIOS ÉTICOS E OS LIMITES DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NAS DECISÕES JUDICIAIS
Embora os avanços tecnológicos tragam benefícios significativos ao sistema de justiça, é imprescindível considerar os riscos relacionados à delegação de funções decisórias a sistemas de IA. Como destacam Nunes e Marques (2018), os algoritmos, mesmo pretensamente neutros, carregam consigo os vieses de seus programadores e da base de dados utilizada para o aprendizado de máquina.
Essa realidade revela o perigo de decisões opacas, sem possibilidade de controle ou questionamento pelas partes, contrariando o devido processo constitucional e a exigência de motivação das decisões judiciais (CF, art. 93, IX; CPC, art. 489). A ausência de transparência, somada à opacidade dos modelos computacionais, compromete a legitimidade do sistema de justiça quando a IA é utilizada sem supervisão humana adequada.
Nunes e Marques explicam:
Atualmente, a tecnologia e a inteligência artificial deixaram de ser exclusividade das grandes indústrias para se tornarem produtos disponíveis à maior parte da população, às vezes até sem custos diretos de aquisição, como no caso das redes sociais– Facebook e Instagram–, e é cada vez maior o uso de ferramentas digitais de automatização para a execução de tarefas que até então necessitavam de um agente humano. (MARQUES; NUNES; 2018)
Um exemplo emblemático é o sistema COMPAS, utilizado nos Estados Unidos para avaliar riscos de reincidência de réus, cuja metodologia enviesada resultou em decisões discriminatórias contra populações negras e pobres. Esse cenário, se transportado para o Judiciário brasileiro, pode violar os princípios da isonomia, ampla defesa e contraditório, além de dificultar o controle da fundamentação da decisão (CF, art. 93, IX e CPC, art. 489).
Portanto, ainda que a IA possa ser uma aliada no apoio à atividade jurisdicional, especialmente na triagem de processos, na sugestão de precedentes e na análise de dados repetitivos, sua atuação deve restringir-se a funções auxiliares, e não substitutivas da figura do juiz humano.
Diante disso, impõe-se a necessidade de limitar o papel da IA às funções de apoio e consultoria, como triagem processual, análise de precedentes e organização de informações, sem substituir a figura do julgador humano.
3. A IMPORTÂNCIA DA TRANSPARÊNCIA ALGORÍTMICA E DA REGULAÇÃO TECNOLÓGICA NO PROCESSO CIVIL
O princípio da transparência algorítmica surge como requisito essencial à legitimidade do uso da IA no Direito. Ao se delegar funções sensíveis a sistemas automatizados, torna-se imprescindível que o iter lógico da decisão (isto é, o caminho percorrido pelo algoritmo até o resultado) possa ser auditado, questionado e compreendido pelas partes, juízes e sociedade.
Essa preocupação foi formalmente reconhecida pelo Parlamento Europeu, que, em resolução de 2017, preconizou que todas as decisões com impacto substancial na vida humana devem ser justificáveis e compreensíveis – inclusive quando tomadas com auxílio de máquinas. Nesse sentido, a criação de mecanismos como a “caixa preta algorítmica” tem sido defendida como forma de garantir auditabilidade e controle externo.
Explanam Osoba e Welser: “As decisões algorítimicas não são automaticamente equitativas apenas por serem produtos de processos complexos” (2017).
Dierle Nunes (2018) destaca que a falta de explicabilidade dos sistemas de IA compromete o conteúdo da cláusula do devido processo constitucional. Para o autor, é incompatível com os princípios democráticos delegar a máquinas a função de decidir questões jurídicas relevantes sem que haja clareza, fundamentação e possibilidade de revisão crítica das respostas geradas. Ele propõe a adoção da transparência algorítmica como exigência constitucional, o que inclui não apenas a explicação dos resultados, mas também a possibilidade de contestação pelos sujeitos processuais.
No Brasil, iniciativas como o sistema Victor (STF) e o Sapiens (AGU) demonstram o avanço do uso de IA em tarefas repetitivas e de apoio à decisão. Contudo, ainda não há uma legislação clara que regulamente o uso dessas ferramentas no Judiciário, tampouco critérios objetivos para a certificação, validação e responsabilização por eventuais falhas ou discriminações algorítmicas.
Ademais, é essencial que o desenvolvimento dessas ferramentas ocorra de forma interdisciplinar, reunindo juristas, engenheiros da computação, especialistas em ética e representantes da sociedade civil. O processo legislativo também deve se modernizar para acompanhar a velocidade das transformações tecnológicas, criando um marco legal para a inteligência artificial no Judiciário, inspirado nos princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia, da publicidade e da segurança jurídica.
A falta de regulação pode acarretar consequências graves, como decisões judiciais automatizadas enviesadas, discriminações ocultas, violações de direitos fundamentais e, principalmente, a erosão da confiança social no sistema de justiça. Por isso, é urgente que o debate sobre IA no processo civil avance, não apenas na perspectiva técnica, mas também filosófica, constitucional e política.
Portanto, é urgente que o Poder Legislativo, o CNJ e o meio acadêmico se debrucem sobre a regulação da IA no processo civil, construindo um marco normativo que equilibre inovação tecnológica com proteção dos direitos fundamentais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Inteligência Artificial representa um marco na transformação do processo civil contemporâneo. Sua capacidade de tratar grandes volumes de dados, identificar padrões e auxiliar na gestão processual oferece caminhos promissores para a superação de gargalos históricos como a morosidade e a sobrecarga do Judiciário.
Entretanto, não se pode ignorar que a IA, ao ser aplicada sem os devidos critérios éticos e jurídicos, pode perpetuar desigualdades, ampliar vieses e comprometer a imparcialidade do sistema. Assim, cabe ao operador do Direito entender que a IA deve ser usada como instrumento de apoio, jamais como substituta da razão crítica humana, da sensibilidade judicial e da responsabilidade democrática no exercício da jurisdição.
A evolução tecnológica deve caminhar lado a lado com a efetivação dos direitos processuais fundamentais, reforçando o compromisso com o acesso à justiça, com a equidade e com a construção de um sistema que, mesmo digitalizado, permaneça essencialmente humano.
REFERÊNCIAS
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