Imputabilidade e direitos humanos: uma análise dos assassinatos de crianças nas comunidades indígenas do brasil

Exibindo página 2 de 2
04/07/2025 às 21:14
Leia nesta página:

6. DIREITO: PLURALISMO JURÍDICO E LIMITES DO RELATIVISMO CULTURAL

No campo jurídico, Boaventura de Sousa Santos é referência ao teorizar sobre o pluralismo jurídico, defendendo que diferentes ordens normativas podem coexistir, desde que respeitados direitos humanos universais.

  • O autor alerta para o risco do etnocentrismo jurídico, que seria a imposição de um sistema de valores sobre outro, sem respeito à alteridade.

  • Contudo, ressalta que o pluralismo não pode ser absoluto, encontrando limite nos direitos inalienáveis, como o direito à vida e à dignidade da criança.

  • A obra de José Afonso da Silva e Dalmo Dallari também contribui para delimitar os contornos constitucionais dos direitos culturais, enfatizando o dever estatal de proteção integral à infância.

6.1. Normas e Tratados Internacionais: Fundamento da Proteção à Criança

A base normativa do trabalho reside em instrumentos nacionais e internacionais:

  • Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989): determina que toda criança tem direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento, devendo ser protegida contra qualquer forma de violência, sem exceções culturais.

  • Constituição Federal de 1988 (artigo 231): reconhece os direitos dos povos indígenas à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, mas impõe o respeito à ordem constitucional e aos direitos humanos.

  • Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): estabelece a proteção integral e prioritária da criança e do adolescente, inclusive indígena, orientando políticas públicas e a atuação do Judiciário.

6.2. Integração Teórica e Síntese Argumentativa

A reunião desses referenciais permite analisar o fenômeno com profundidade e equilíbrio:

  • A antropologia e a sociologia fornecem as lentes para a compreensão do contexto cultural e social das práticas indígenas.

  • O direito aponta caminhos para a harmonização entre o respeito à diferença e a defesa dos direitos fundamentais, pautando a atuação do Estado em situações de conflito.

  • Os tratados internacionais e a legislação nacional servem como baliza para a construção de políticas públicas e decisões judiciais que não relativizem a proteção à vida e à dignidade das crianças.

Assim, o referencial teórico aqui exposto fundamenta uma abordagem que busca a mediação intercultural, a defesa dos direitos humanos e a promoção de justiça social, evitando tanto o etnocentrismo quanto o relativismo ilimitado.


7. METODOLOGIA

A pesquisa é básica, exploratória e descritiva, com abordagem qualitativa, valendo-se dos seguintes procedimentos:

  • Pesquisa bibliográfica: análise de obras referenciais da antropologia, direito indígena, direitos humanos, sociologia jurídica.

  • Pesquisa documental: estudo da Constituição, ECA, tratados internacionais, leis nacionais e jurisprudência.

  • Estudo de caso: análise de decisões judiciais e relatórios de órgãos como FUNAI e Ministério Público.

  • Análise de discurso: investigação crítica dos discursos de juristas, lideranças indígenas e organismos internacionais sobre o tema.


8. ANÁLISE E DISCUSSÃO

A imputabilidade dos assassinatos de crianças em comunidades indígenas exige compreensão do contexto cultural, dos determinantes históricos e das condições socioeconômicas envolvidas. Para algumas etnias, o nascimento de gêmeos ou de crianças com deficiência pode ser interpretado como mau presságio, desordem espiritual ou ameaça coletiva, justificando práticas extremas.

O Estado brasileiro, por sua vez, oscila entre posturas de tutela assimilacionista e respeito formal à autonomia cultural. O artigo 231 da Constituição garante respeito aos costumes e tradições indígenas, mas não autoriza práticas que atentem contra direitos indisponíveis, como o direito à vida. O Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), ao prever redução de pena por influência de usos e costumes, não exime o Estado do dever de proteção integral da criança, reafirmado no ECA e nos tratados internacionais.

A responsabilização penal do indígena nesse contexto é controversa: parte da doutrina entende ser possível a inexigibilidade de conduta diversa quando o agente está completamente imerso em contexto cultural tradicional; outros sustentam que, nos crimes contra vulneráveis, apenas a atenuação é admissível, nunca a exclusão total da responsabilidade.

Experiências de mediação intercultural, fortalecimento do protagonismo indígena, educação em direitos humanos e participação comunitária em políticas públicas têm mostrado resultados promissores na redução desses assassinatos. O desafio é promover ações integradas que respeitem a cultura, mas reafirmem, de modo intransigente, o direito fundamental à vida.

8.1. O SIGNIFICADO CULTURAL DAS PRÁTICAS

Em algumas culturas indígenas, o nascimento de gêmeos, crianças com deficiência física, ou com sinais considerados espirituais, pode ser interpretado como um rompimento da ordem cósmica, trazendo risco coletivo ou desestabilização espiritual da aldeia. Nessas situações, a prática extrema – ainda que minoritária e não generalizável a todas as etnias – pode ser vista, sob o olhar interno, como medida de proteção ou reparação do equilíbrio social.

E sse entendimento não elimina o caráter trágico da prática, mas obriga o intérprete do direito a uma abordagem que vá além do julgamento moral imediato, buscando o diálogo intercultural e o mapeamento dos determinantes históricos que estruturam tais crenças.

8.2. LIMITES CONSTITUCIONAIS E LEGAIS

A Constituição Federal, ao consagrar no artigo 231 a proteção à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições indígenas, reconhece a legitimidade da diferença e o direito à autodeterminação. Contudo, o próprio texto constitucional impõe balizas: direitos culturais não podem colidir com direitos fundamentais, especialmente o direito à vida (art. 5º, caput), princípio basilar do Estado Democrático de Direito.

O Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), em seus artigos 56 e 57, admite a redução de pena ou atenuação da responsabilização penal do indígena, caso comprovada a influência direta de usos e costumes. No entanto, não afasta o dever do Estado de zelar pela proteção integral da criança, reafirmado com veemência pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que determina absoluta prioridade à vida e ao desenvolvimento das crianças, inclusive indígenas.

8.3. DEBATE DOUTRINÁRIO E JURISPRUDENCIAL

A responsabilização penal do indígena diante do infanticídio ritualístico permanece um dos pontos mais controvertidos da doutrina e da jurisprudência brasileira.

  • Uma corrente entende ser aplicável o princípio da inexigibilidade de conduta diversa, reconhecendo que, quando o agente está imerso em contexto tradicional, sua capacidade de autodeterminação segundo o direito estatal pode estar significativamente limitada. Tal posição encontra amparo no artigo 26, parágrafo único, do Código Penal e se fundamenta em pareceres antropológicos.

  • Outra vertente, entretanto, sustenta que em crimes contra vulneráveis – especialmente crianças –, não se admite a exclusão total da responsabilidade, mas apenas atenuação, pois o direito à vida é indisponível e superior a qualquer relativização cultural.

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por exemplo, em diversos julgados, tem ponderado entre a realização de perícias antropológicas e o respeito ao núcleo essencial dos direitos humanos, buscando soluções intermediárias, como a aplicação de penas alternativas, programas educativos ou acompanhamento institucional do indígena envolvido.

8.4. CAMINHOS PARA A SUPERAÇÃO: MEDIAÇÃO INTERCULTURAL E POLÍTICAS PÚBLICAS

A experiência tem demonstrado que a mera repressão penal é insuficiente para enfrentar o problema. A imposição de valores externos, sem diálogo, tende a acirrar tensões e afastar as comunidades indígenas do acesso a políticas públicas. Por outro lado, a omissão estatal diante de práticas lesivas à infância é igualmente inadmissível.

Experiências exitosas de mediação intercultural têm resultado em avanços, sobretudo quando lideranças indígenas são envolvidas na construção das soluções. Programas de educação em direitos humanos, formação de agentes indígenas de saúde, campanhas de sensibilização adaptadas à realidade local e participação comunitária na formulação de políticas públicas têm potencializado a redução das práticas de infanticídio.

O fortalecimento do protagonismo indígena – respeitando as autonomias e identidades, mas promovendo a reflexão interna sobre direitos das crianças – tem se mostrado estratégia eficaz. A atuação articulada de Ministério Público, FUNAI, organizações indígenas e entidades da sociedade civil é fundamental para criar pontes de diálogo e transformar contextos, sem recorrer ao etnocentrismo ou à omissão.

8.5. DESAFIO ATUAL: CONCILIAR DIVERSIDADE E DIREITOS FUNDAMENTAIS

O maior desafio reside em promover políticas e respostas jurídicas integradas, que reconheçam o valor da diversidade, mas reafirmem o direito intransigente à vida e à dignidade da criança. O reconhecimento do pluralismo jurídico não pode ser absoluto, devendo sempre encontrar limites nos direitos humanos universais. O compromisso estatal é de promover a inclusão, a educação, o diálogo intercultural e, quando necessário, a responsabilização – de forma proporcional, educativa e mediada pelo respeito ao contexto cultural.


9. CONCLUSÃO

O tema da imputabilidade dos assassinatos de crianças nas comunidades indígenas brasileiras — sobretudo de recém-nascidos com deficiência ou gêmeos — demanda uma abordagem que transcenda o simples embate entre universalismo e relativismo cultural. A literatura jurídica, antropológica e dos direitos humanos demonstra que, longe de ser uma prática homogênea, o assassinato de crianças nessas condições é resultado de múltiplos fatores: cosmologias tradicionais, pressões demográficas, contextos históricos de isolamento, ausência de políticas públicas adequadas e marginalização dos povos originários frente ao Estado nacional.

Estudos antropológicos, como os de Viveiros de Castro e Lévi-Strauss, apontam que a lógica dessas práticas reside em sistemas simbólicos específicos, nos quais o nascimento de gêmeos ou crianças com deficiência pode ser visto como perturbação da ordem social ou como manifestação de forças espirituais negativas. No entanto, a mobilização de lideranças indígenas jovens, o contato com sistemas de saúde intercultural e o diálogo com agentes de direitos humanos vêm, nos últimos anos, provocando transformações internas nas próprias aldeias. Exemplo disso é o aumento de iniciativas comunitárias para acolhimento de crianças “marcadas”, a valorização de agentes de saúde indígenas e a criação de redes de apoio mediadas por ONGs e pelo próprio Ministério Público Federal.

Do ponto de vista normativo, o Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) e constitucionalizou a proteção integral e prioritária à infância. O artigo 231 da Constituição Federal e o Estatuto do Índio garantem respeito à diferença, mas impõem limites claros quando se trata de direitos indisponíveis. Decisões recentes do Supremo Tribunal Federal e recomendações do Conselho Nacional do Ministério Público reforçam que a proteção da vida da criança é princípio inderrogável, sendo dever do Estado agir preventivamente, inclusive com a formulação de políticas públicas e programas de educação voltados tanto para indígenas quanto para agentes do Estado que atuam nessas áreas sensíveis.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

É fundamental destacar o debate contemporâneo sobre o chamado “pluralismo jurídico de segunda geração”, defendido por Boaventura de Sousa Santos, que aponta para a necessidade de soluções negociadas, construídas em diálogo intercultural, em vez de mera imposição estatal. Essa visão, contudo, exige que o Estado assuma um papel de mediador ativo, garantindo que a autonomia das comunidades indígenas seja respeitada, mas que a vida e a dignidade das crianças estejam no centro das políticas públicas e da atuação judicial.

Experiências internacionais — como as do Canadá, Austrália e Nova Zelândia — mostram que a redução de práticas tradicionais violentas só é efetiva quando se investe em educação intercultural, inclusão social, fortalecimento do protagonismo indígena e criação de alternativas comunitárias de acolhimento. No Brasil, projetos como o “Vidas Paralelas”, em Rondônia, e ações conjuntas entre FUNAI, Ministério Público e secretarias estaduais de saúde têm mostrado resultados positivos na diminuição dos assassinatos de crianças indígenas, especialmente quando contam com lideranças indígenas atuando diretamente na mediação de conflitos culturais.

Em síntese, o enfrentamento desse tema exige mais do que repressão penal: demanda políticas públicas integradas, diálogo constante, formação continuada de agentes de saúde, educação e justiça, financiamento de estruturas de acolhimento, e, sobretudo, respeito à participação das próprias comunidades indígenas na definição das soluções. Cabe ao Estado brasileiro garantir o acesso à informação, à saúde e à proteção social, sem perder de vista a centralidade dos direitos humanos, tornando possível que todas as crianças — indígenas ou não — tenham assegurado o direito de nascer, viver e se desenvolver com dignidade.

Portanto, a pesquisa demonstra que apenas a articulação entre tradição e modernidade, autonomia cultural e direitos universais, pode construir respostas legítimas e eficazes para a imputabilidade dos assassinatos de crianças nas aldeias indígenas brasileiras. O futuro desse debate passa pelo fortalecimento do pluralismo jurídico, da escuta intercultural e do compromisso inegociável com a vida e a dignidade humana.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal de 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90.

BRASIL. Estatuto do Índio, Lei 6.001/73.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural.

MEAD, Margaret. O Povo de Alor.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989.

FUNAI. Relatórios e diretrizes oficiais.

Jurisprudência dos Tribunais Superiores brasileiros.


Abstract: This article investigates the imputability of the murders of children in Brazilian indigenous communities, focusing especially on cases involving newborns with disabilities or twins. Through a bibliographical and documentary review, it analyzes the cultural, historical, and legal factors that permeate the practice and the challenges of reconciling cultural rights with the comprehensive protection of children's human rights. The anthropological bases of these practices, the role of the State, legislative gaps, and possible paths for public policies that are sensitive to cultural diversity but uncompromising in the protection of life are discussed. The study emphasizes the need for intercultural dialogue, education on human rights, and structured actions that promote the dignity and protection of indigenous children.

Key words : indigenous communities; child murder; imputability; human rights; public policy

Sobre o autor
Thalyson Belmar Mendonça

Estudante, Universidade Luterana de Manaus – ULBRA, Manaus (AM), 10º período

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Orientadora: Caroline Araújo, Universidade Luterana de Manaus – ULBRA, Manaus.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos