Capa da publicação Leis injustas: devemos obedecê-las?
Capa: Sora
Artigo Destaque dos editores

Leis injustas: devemos obedecê-las?

Resumo:


  • A sociedade é construída sobre o respeito às leis, mas nem sempre esse respeito se traduz em justiça ou retidão.

  • Leis injustas encontraram resistência ao longo da história, seja por meio de ideias iluministas, resistência pacífica ou desobediência civil.

  • Obedecer às leis é importante, desde que sejam justas e promovam a solidariedade; do contrário, obedecê-las serve apenas como refúgio para os covardes.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Devemos sempre obedecer às leis, mesmo quando injustas? O artigo reflete sobre desobediência civil, filosofia, justiça e limites da obediência.

Resumo: A sociedade como a conhecemos foi erigida com bases nas leis, ou melhor dizendo, com base no respeito que cada cidadão tem por elas. Desde muito jovens somos educados a observar os ditames e convenções sociais como forma de estarmos mentalmente preparados a respeitar e cumprir as leis, quando, enfim, na vida adulta, tivermos de conduzir nossos atos de acordo com elas, sob pena de nos tornarmos maus cidadãos e até de sermos penalizados. Neste modesto trabalho, contudo, tentaremos demonstrar que nem sempre o respeito às leis se traduz em justiça ou retidão, mas, por vezes, afasta – nos desses conceitos à medida que nos sujeitamos ao que dispõe as leis.

Palavras-chave: Filosofia; Justiça; Leis; Literatura; Obediência.


INTRODUÇÃO

Condicionamento social. Esta é a chave que leva à obediência. Inicialmente, desde tenra idade, somos condicionados a obedecer normas de convívio social, sejam elas escritas ou meras convenções. Um exemplo simples são as filas. Nas escolas, especialmente, é bastante comum que os pequeninos sejam ensinados, desde muito cedo, a respeitar, religiosamente, a ordem de chegada nas filas, em nada importando para o que elas sirvam.

Devido a esse condicionamento, aos poucos e inconscientemente, burlar uma fila, apesar de não ser nenhum crime no sentido formal da palavra, traduz – se, para todos nós – ou para a maioria de nós – num comportamento contrário ao senso de urbanidade e de bons modos e, apesar de não ser, como dito, um criminoso, quando alguém age dessa forma, imediatamente o rotulamos – ainda que silenciosamente – como alguém que não tem respeito pelos demais ou como alguém mal educado e até de caráter duvidoso, sem ao menos considerar que aquela pessoa possa ter algum motivo justo para burlar a dita convenção social.

É mais ou menos assim que toda uma sociedade é ensinada a obedecer as leis, não importando quais sejam. Passamos interpretar como sendo justo tudo aquilo que é norma – escrita ou não. Mas claro que isso não é de todo ruim. Aliás, temos de reconhecer que o que esperamos de qualquer pessoa é que ela respeite as leis e os costume sobre as quais a sociedade foi construída.

O problema, portanto, não está na obediência às leis nem no acatamento das convenções sociais, mas sim na maneira como somos educados a identificá-las e, automaticamente, aderir aos comportamentos ditados por elas sem reflexão ou questionamento acerca dos motivos de serem como são e, sobretudo, sem levarmos em conta as consequências decorrentes de nossas ações baseadas nessa obediência.

Para alcançarmos o objetivo buscado neste trabalho, teremos de nos valer da história, que nos servirá de guia. Lançaremos mão também da boa literatura, que nos ajudará a ilustrar certos comportamentos. Longe de ser menos importante, obviamente, pediremos o auxílio da filosofia, que muito ajudará a clarear o quadro sobre o assunto aqui abordado.


MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM DEVE

Iniciemos este capítulo com uma frase que, com uma ou outra variação, a maioria de nós já escutou em algum momento da vida. Ela alude ,obviamente, ao comportamento social de dominação do mais forte sobre o mais fraco. Afinal de contas, a lei do mais forte consistia a regra entre os homens em sociedade, antes do advento do que conhecemos por Contrato Social.

Idealizado pelo filósofo inglês Thomas Hobbes (1588 – 1679), anos mais tarde foi aperfeiçoado pelo suíço e também filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), cujos ideais iluministas serviram de argamassa e muito contribuíram para fomentar a Revolução Francesa, inaugurando a idade contemporânea:

Portanto, se a natureza fez todos os homens iguais essa igualdade deve ser reconhecida; e se a natureza fez os homens desiguais, como os homens, dado que se consideram iguais, só em termos igualitários aceitam entrar em condições de paz, essa igualdade deve ser admitida. Por conseguinte, como nona lei de natureza, proponho esta: Que cada homem reconheça os outros como seus iguais por natureza (HOBBES, pág. 55, 2004).

E como dito:

Portanto, se afastarmos do pacto social o que não constitui a sua essência, acharemos que ele se reduz aos seguintes termos: Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo (ROUSSEAU, pág. 25, 2002).

Pois bem, os fragmentos acima foram extraídos, respectivamente, das obras Leviatã, de Thomas Hobbes, publicado em 1651, e Do Contrato Social, de Jean–Jacques Rousseau, publicado em 1762. Deles inferimos que ambos os filósofos, cada qual em seu tempo e país, munidos de muita inteligência e de grande senso civilizatório, deram a todos nós uma alternativa ao uso da força física e da vingança privada para a solução de contendas pessoais por meio de um pacto ou contrato social firmado, de maneira tácita e irrevogável, entre todos, que transferem certas prerrogativas, antes individuais, ao Estado, que, por meio de suas leis e instituições, obriga a todos ao cumprimento dos pactos e das leis.

Mas aqui surge uma questão crucial: se todos, indistintamente, devem obediência às leis por força do pacto ou contrato social, caso tais leis se afigurem, de algum modo, injustas ou contrárias aos valores da sociedade ou de uma fração dela, como proceder? Como cumprir leis que, embora aprovadas e constantes de códigos, firam a consciência ou reduza o homem a coisa menor, retirando–lhe, por vezes, a dignidade? Hobbes se preocupou com isso ao escrever Leviatã e tentou prever, por assim dizer, alguns aspectos da vida dos cidadãos que não poderiam ser tolhidos pelas leis ou pactos, senão vejamos:

Assim como é necessário a todos os homens que buscam a paz renunciar a certos direitos de natureza, quer dizer, perder a liberdade de fazer tudo o que lhes apraz, assim também é necessário para a vida do homem que alguns desses direitos sejam conservados, como o de governar o próprio corpo, desfrutar o ar, a água, o movimento, os caminhos para ir de um lugar a outro, e todas as outras coisas sem as quais não se pode viver, ou não se pode viver bem (HOBBES, pág. 55, 2004).

Disso depreendemos que as leis não podem – ou não deveriam poder – privar os cidadãos de certos direitos, entendidos pelo filósofo como fundamentais para a existência digna do homem. Claro que a medida que a civilização avançou na imparável marcha da história, o rol de direitos mencionados por Hobbes foi ampliado, – ao menos em teoria – sendo um exemplo dessa afirmação, os direitos individuais que compõem o artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Mas o capricho dos governos é tal que, não raras vezes, as próprias leis se tornam indigestas ao ponto de causar sentimento de repulsa nos governados, que são reduzidos a engrenagens de um Estado meramente utilitarista e arbitrário, até o ponto em que a oposição à tais leis se afigure necessária.


SOMOS A SUA CONSCIÊNCIA PESADA

Quando ouvimos falar em resistência ou oposição à leis injustas ou a regimes ditatoriais, imediatamente somos levados a supor que se trata de luta armada e de derramamento de sangue. Essa imagem que temos em mente não deixa de ser correta, uma vez que a história que estudamos nos bancos escolares retrata revoluções cruentas, como a Francesa, ou mesmo a que se opôs ao Regime Militar, que vigorou no Brasil de 1964 a 1985. Todavia, existem outras formas de resistência contra regimes tirânicos e leis abusivas que são menos óbvias e mais sutis, mas nem por isso são menos arriscadas.

Um emblemático – e dramático – exemplo do tipo de resistência a que nos referimos alude ao título que inaugura este capítulo. Extraído do lema do grupo estudantil Rosa Branca, que opunha aos abusos e desmandos do regime Nazista na Alemanha, bem representa o tipo de resistência mais temida por regimes ditatoriais, que são, em última análise, mantidos por leis injustas ao redor do mundo. Estamos nos referindo a contrapropaganda:

A Rosa Branca foi um grupo de resistência não violenta que surgiu em Munique, na Alemanha de Hitler, entre os anos de 1942 e 1943. Seus membros eram os estudantes da Universidade de Munique Hans e Sophie Scholl, Alexander Schmorell, Christoph Probst, Willi Graf e o professor universitário Kurt Huber. Eles distribuíram panfletos como forma de disseminar a resistência ao Nacional-Socialismo e todos foram executados pela Gestapo por crime de alta traição (VISCONTI, pág. 10, 2017).

Confirmando o que dissemos, a resistência armada de ideias pode ser tão arriscada para os que a fazem quanto a luta bélica contra regimes totalitários mantidos por leis tortas e injustas. Na verdade, a luta travada no campo das ideias pode ser ainda mais arriscada, uma vez que é mais corrosiva aos regimes desse tipo do que os atentados cruentos, já vez que solapa o que eles têm de mais caro, ou seja, o apoio da sociedade, que é angariado por meio da ideologia que, por seu turno, é construída, em grande parte, pela propaganda.

Neste sentido, a resistência armada acaba sendo apresentada à sociedade como terrorismo a ser combatido e justifica o recrudescimento de leis e da censura, ao passo que a contrapropaganda, – como faziam os membros do Rosa Branca – por não recorrer à violência, não poder ser tachada de terrorismo, além de desconstruir as mentiras sobre as quais os regimes totalitários se apoiam para atingir e permanecer no poder.

A literatura também nos brinda com autênticos manifestos que insurgem contra ideologias oficialmente e legalmente ensinadas como verdades absolutas. Claro que não estamos falando de qualquer literatura, mas de uma saída da pena de um dos maiores filósofos que já existiu e que mirou – com muito sarcasmos e inteligência – um movimento ou corrente filosófica que, em certa medida, contribuía para a conservação das posições sociais tais como eram constituídas à época. Para melhor compreendermos, vamos à obra:

Havia na Westfália, no castelo do senhor barão de thunder-ten-tronckh, um jovem a quem a natureza tinha dado os mais suaves costumes. Sua fisionomia anunciava a sua alma. Tinha o juízo bastante reto, com a mente mais simples; era, creio, por essa razão que o chamavam de Cândido.

E continua:

Pangloss ensinava a metafísico-teológico-cosmolonigologia. Ele provava admiravelmente que não há efeito sem causa, e que, no melhor dos mundos possíveis, o castelo do senhor barão era o mais belo dos castelos e a senhora, a melhor das baronesas possíveis. “Está demonstrado”, dizia ele, “que as coisas não podem ser de outro jeito: pois tudo sendo feito para um fim, tudo é necessariamente para o melhor fim (VOLTAIRE, pág. 5./6, 2012).

Os fragmentos acima foram extraídos da obra intitulada Cândido, ou o Otimismo, de ninguém que o filósofo francês Voltaire (1694 – 1778). Publicado pela primeira vez no distante ano de 1759, trata-se de uma crítica ao Otimismo. Mas talvez caiba aqui uma explicação sobre o termo, pois não estamos falando do conceito de otimismo que temos hoje em dia e que se traduz numa postura positiva diante da vida, mas sim de uma corrente filosófica que pregava, em linhas gerais e apertada síntese, que estamos vivendo no melhor dos mundos possíveis. Tal concepção tinha por base o pensamento religioso que defendia a ideia de que se Deus – bíblico, onipresente, onisciente e misericordioso – concebeu o mundo e tudo que nele existe, não havia como as coisas serem melhores do que eram. Assim sendo, mesmo que as condições de vida fossem muito ruins, se as leis fossem injustas e se o rei fosse um tirano, ainda que tudo isso fosse algo incompreensível, Deus, certamente, tinha algum propósito naquilo tudo, de modo que eram as melhores condições possíveis.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Isso, obviamente, atendia aos interesses da nobreza e do clero, pois enquanto os súditos – povo – acreditassem que as coisas tinham sido feitas ou permitidas por deus, – mesmo que fossem muito ruins – não poderiam ser diferentes ou melhores. Bastante conveniente, não é mesmo? Afinal, quem – para o pensamento da época – poderia fazer as coisas de maneira melhor do que o próprio Deus?

Cabe aqui, quiçá, uma explicação, a fim de que não pareça que este modesto trabalho seja uma espécie de crítica dirigida à religião – qualquer que seja ela. Nem de longe é disso que se trata. Todavia, como Voltaire nos mostra através de sua obra aqui abordada, sempre houve os que abusaram da boa-fé dos povos e usaram a religião como mecanismo de dominação em espúrios projetos pessoais de poder.

De volta à obra, Voltaire criou alguns personagens fictícios para ilustrar sua crítica satírica, sendo Cândido o protagonista do conto. Um jovem criado num castelo e rodeado de maravilhas que o conduzem a ver o mundo de uma maneira artificialmente boa. Seu tutor é o personagem Pangloss, que é incumbido pelo barão de educar o jovem de acordo com o pensamento Otimista, que já explicamos.

Ocorre que, a certa altura, Cândido se vê expulso pelo próprio barão, perdendo assim a segurança do castelo – ou paraíso terrestre, como escreve Voltaire – em que fora criado e mimado por todos à sua volta, sendo imediatamente lançado no mundo real, onde os alicerces de suas crenças no pensamento Otimista começam a ruir diante das mazelas e flagelos aos quais é exposto. Esse verdadeiro teste de fé faz com que o jovem Cândido, ao longo da obra, questione o Otimismo que lhe fora ensinado com ardente certeza e fervor no conforto e fartura do castelo por seu tutor Pangloss.


DESOBEDECER É PRECISO

Mas quando se trata de criticar leis injustas e de rejeitar um governo cujas políticas sejam contrárias aos valores mais elevados cultivados por uma sociedade, – ou por fração dela – talvez o nome de maior relevância e influência, ao menos no ocidente, não seja o de Voltaire, apesar do mérito indiscutível de suas obras literárias e, especialmente, filosóficas, senão vejamos:

Muito entusiasmado aceito o lema "O melhor governo é o que menos governa". Ficaria contente se ele fosse aplicado pronta e ordinariamente. Entendido ao pé da letra, esse lema significa o seguinte, no que também creio: "O melhor governo é o que não governa absolutamente nada” (THOREAU, pág. 13, 2005).

E complementa:

Em minha opinião devemos ser primeiramente homens, e só posteriormente súditos. Cultivar o respeito às leis não é desejável no mesmo plano do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo. Com toda razão, costuma-se dizer que uma corporação não tem consciência. Uma corporação de homens conscienciosos, todavia, é uma corporação consciente. A lei jamais tornou os homens sequer um pouco mais justos. O respeito reverente pela lei tem levado até mesmo os bem –intencionados a agir quotidianamente como mensageiros da injustiça (THOREAU, pág. 15, 2005).

Os fragmentos acima foram extraídos da obra intitulada A Desobediência Civil, do pesquisador, historiador e filósofo estadunidense Henry David Thoreau (1817 – 1862).

Do nome do livro já é possível inferir o teor, mas que de maneira nenhuma deve ser negligenciado pelo leitor, uma vez que é uma daquelas obras arrebatadoras e repletas de fatos históricos que nos conduzem a repensar certos conceitos que nos são inculcados por rasos e tendenciosos escritos – ou pior, já que estamos na era digital.

Em linhas gerais, Thoreau se opõe – sem armas – ao governo americano e às leis por ele criadas à época. Sua resistência se dá, de forma resumida, pelo não financiamento de um Estado – Governo com o qual não concorda. Ou seja, negando – se a pagar os impostos que possibilitavam ao governo manter um exército permanente para, no caso da obra, invadir e espoliar seu vizinho, o México. Mas claro que isso não ficou de graça, tendo levado Thoreau à prisão, onde pensou:

Já faz seis anos que não pago o imposto per capita. Certa vez, fui encarcerado por causa disso, e passei uma noite preso. Por não ter outra ocupação, fui observando as paredes de pedra sólida com dois ou três pés de espessura, a porta de madeira e ferro com um pé de espessura e as grades de ferro que dificultam a entrada da luz, e não pude deixar de perceber a idiotice de uma instituição que me tratava como se eu fosse somente carne, sangue e ossos a serem trancafiados. (THOREAU, pág. 29. / 30, 2005).

E prossegue:

Não pude deixar de sorrir perante os cuidados com que fecharam a porta e imaginaram trancar as minhas reflexões – que os acompanhavam porta afora sem delongas ou dificuldade. De fato, o perigo estava contido nessas reflexões. Já que eu estava fora de seu alcance, resolveram punir meu corpo (THOREAU, pág. 30, 2005).

Thoreau estava coberto de razão ao afirmar que seus algozes até podiam aprisionar seu corpo, mas nada podiam contra suas ideias. Prova disso foi a forte influência que sua obra teve, tanto nos Estados Unidos, quanto em outros países. O advogado, estadista, líder espiritual e ativista indiano Mahatma Gandhi (1869 – 1948), inspirou-se no conceito de desobediência civil cunhado pelo filósofo para resistir pacificamente aos britânicos, tendo contribuído sobremaneira para a conquista da independência de seu país em 1947.

Fazendo eco a Thoreau, no que diz respeito ao ímpeto humano de rejeitar com veemência quaisquer normas que nos remova as características que nos tornam o que somos, - homens antes de súditos - ou seja, criaturas imperfeitas que não se deixam transformar por meio de cálculos frios que nos dizem o que e como devemos proceder, recorramos a um expoente da literatura universal:

Todavia, os senhores estão perfeitamente convencidos de que, por bem ou por mal, ele vai se acostumar, quando todos e quaisquer costumes antigos e nocivos tiverem ficado para trás e quando o bom senso e a ciência tiverem reeducado o ser humano por completo e tiverem encaminhado a natureza humana rumo à normalidade (DOSTOIÉVSKI, pág. 49,1864).

E complementa:

E agora farei uma pergunta aos senhores: o que se pode esperar de um ser humano, se ele é uma criatura dotada de qualidades tão estranhas? Pois bem, despejem sobre ele todas as venturas que há no mundo, afoguem o ser humano de cabeça na felicidade, de modo que só as borbulhas apareçam na superfície da felicidade, como acontece na água; forneçam a ele tamanha satisfação econômica que já não lhe reste mais nada a fazer senão dormir, comer pão de mel e cuidar da continuidade da história universal e então, mesmo nesse caso, os senhores vão ver como o tal do ser humano, por pura ingratidão, de pura chacota, vai fazer suas porcarias (DOSTOIÉVSKI, pág. 58,1864).

Os fragmentos acima foram extraídos da obra Memórias do Subsolo, do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821 - 1881). Publicado pela primeira vez no distante ano de 1864, constitui, entre outras coisas, uma crítica ao Utilitarismo, corrente filosófica pungente na Europa ocidental em meados do século XIX, de onde a elite russa importava ideias no intuito de se modernizar. Esse comportamento de seus compatriotas não era apreciado por Dostoiévski, que não via nenhum valor em copiar hábitos dos países vizinhos, sobretudo, devido ao fato de que tais países viam a Rússia como uma nação atrasada e um tanto bárbara. Mas o fato mesmo é que Dostoiévski não acreditava no conceito Utilitarista que, em apertada síntese, propunha que o homem poderia, por meio das ciências e educação adequadas, atingir seu apogeu e abandonar certos hábitos nocivos ou tidos como pouco civilizados. Da obra inferimos que, na visão de Dostoiévski, o homem jamais abrirá mão de certos comportamentos e passará por cima de toda e qualquer norma ou lei que o prive deles, ainda que lhe causem dores e revezes, apenas para firmar o seu direito de ser humano.


CONCLUSÃO

Tendo chegado às considerações finais do que foi abordado neste singelo trabalho, esperamos ter alcançado o objetivo inicialmente proposto, ou seja, o de esclarecer que, de fato, leis ou convenções sociais não devem se tornar, automaticamente, dignas de serem cumpridas e acatadas apenas por constarem de algum código ou por constituírem costumes. É preciso que sejam, antes de tudo, revestidas de justiça.

Esperamos ainda ter sido possível demonstrar que a criação e a aplicação de leis injustas, no curso da história humana, encontrou resistência, – nem sempre armada – sem a qual o mal teria se apoderado da civilização. Afinal, não é nenhum exagero ou absurdo imaginarmos que sem as ideias iluministas, como as cunhadas por Rousseau e Voltaire, ainda estaríamos aprisionados a regimes absolutistas apoiados por clérigos e por uma casta de nobres abusadores dos povos.

Do mesmo modo, sem a coragem e a resistência de jovens, como os do grupo Rosa Branca, que lavaram com o próprio sangue a alma do povo alemão, quiçá, o nazismo tivesse, se não vencido, ao menos perdurado por mais tempo, impondo ainda mais sofrimento ao mundo e consumindo mais vidas antes de ser derrotado.

Por derradeiro, frisa–se que este trabalho não é, de maneira alguma, um convite à desobediência das leis e das normas de convívio em sociedade que, sem sombra de dúvidas, merecem fiel observância e total respeito, todavia, desde que sejam revestidas de justiça e galvanizadas da solidariedade que nos torna humanos e iguais perante o Estado. Do contrário, caso as leis e as convenções sociais sirvam ao atendimento de vis interesses ou a projetos privados de poder, obedecê–las servirá apenas como um último refúgio para os covardes.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 jul. 2025;

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo, Editora Penguin Companhia, Tradução de Rubens Figueiredo, 2021, ISBN: 978 - 85 - 8285 247 - 7;

HOBBES, Thomas. Leviatã. Ed. Nova Cultural, Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2004. Disponível em: https://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_thomas_hobbes_leviatan.pdf. Acesso em: 17 jul. 2025;

ROUSSEAU, Jean – Jacques. Do Contrato Social, Editora Ridendo Castigat Mores, Tradução de Rolando Roque da Silva, 2002. Disponível em: https://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_rousseau_contrato_social.pdf. Acesso em: 17 jul. 2025;

THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil e Outros Escritos, Editora Martin Claret, Tradução de Alex Marins, 2005, ISBN: 85-7232-490-9;

VISCONTI, Maria. Não nos calaremos, somos a sua consciência pesada; a Rosa Branca não os deixará em paz: a Rosa Branca e sua resistência ao nazismo (1942-1943), 2017. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-AUTHBV. Acesso em: 18 jul. 2025;

VOLTAIRE. Cândido, ou o Otimismo, Editora Companhia das Letras, Tradução de Mário Laranjeira, 2012, ISBN: 978-85-63560-58-2.


Unjust laws: should we obey them?

Abstract: Society as we know it was built upon laws—or, more precisely, upon the respect that each citizen has for them. From a very young age, we are taught to observe social norms and conventions as a way to become mentally prepared to respect and obey the law when, in adulthood, we must conduct our actions in accordance with it, under the risk of becoming bad citizens or even being punished. In this modest paper, however, we will attempt to demonstrate that respect for the law does not always translate into justice or righteousness; at times, it may even lead us away from those concepts, as we submit ourselves to what the law dictates.

Key words : Philosophy; Justice; Laws; Literature; Obedience.

Assuntos relacionados
Sobre os autores
Roanderson Rodrigues Coró

http://lattes.cnpq.br/6846173311525008 https://orcid.org/0009-0008-4976-6265

Lucas Rafael Cicone Coró

Cursando Letras - Português e Inglês- 8º Semestre - Unesp Faculdade de Ciências e Letras - Assis (Março de 2022 - Dezembro de 2025); Francês básico - Unesp Faculdade de Ciências e Letras - Assis (2022); Estágio - PIBID UNESP - Elaboração de aula de Língua Portuguesa para turma intermediária, preparação e aplicação de atividades escritas, responsável por relatórios de análise (Outubro de 2022 - maio de 2024).

Abraão Cleiton Campos Bezerra

Bacharel em Direito pela Universidade Paulista (UNIP); Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Legale Educacional S/A; Pós-Graduado em Direito Digital e Fazendário pela Legale Educacional S/A; Primeiro Sargento da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORÓ, Roanderson Rodrigues ; CORÓ, Lucas Rafael Cicone et al. Leis injustas: devemos obedecê-las?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8054, 20 jul. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114927. Acesso em: 5 dez. 2025.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos