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O dever de proteção do Estado (Schutzpflicht).

O lado esquecido dos direitos fundamentais ou qual a semelhança entre os crimes de furto privilegiado e o tráfico de entorpecentes?

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15/07/2008 às 00:00

Resumo:


  • O legislador brasileiro, ao definir os crimes e suas punições, enfrenta um dilema filosófico e jurídico sobre quais condutas merecem proteção penal, sendo influenciado por concepções de vida e tradições de pensamento diversas.

  • A Constituição brasileira estabelece a necessidade de criminalizar certas condutas, como o tráfico ilícito de entorpecentes, e proíbe a concessão de graça ou anistia para tais crimes, impondo um dever ao legislador ordinário e questionamentos sobre a amplitude desse dever.

  • Surge a discussão sobre a possibilidade de o legislador ordinário reduzir a resposta penal para condutas de tráfico de drogas, confrontando-se com o princípio da proibição de proteção insuficiente e a obrigação constitucional de criminalizar com rigor esses crimes.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. De como o parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343 viola o princípio da proibição de proteção insuficiente e a existência de precedentes da aplicação da tese da Untermassverbot em terrae brasilis.

Já não é novidade, no Brasil, a incidência do princípio da proibição de proteção insuficiente. Foi aplicada, v.g., no caso do Recurso Extraordinário n º 418.376, [11] em especial quando do voto do Ministro Gilmar Mendes, considerando inconstitucional, por violar a Untermassverbot, o art. 107, VII do Código Penal, que trazia o favor legal de extinção da punibilidade, nos crimes contra os costumes (definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial do Código Penal), pelo casamento do agente com a vítima. Ficou nítido no voto do Min. Gilmar uma espécie de ruptura paradigmática, no sentido de que o legislador ordinário não possui blindagem e liberdade absoluta para conceder favores legais a criminosos. No caso do RE n º 418.376, tratava-se de dispositivo penal que, ao conceder o favor legal de extinção da punibilidade do crime de estupro nos casos de casamento da vítima com terceiro ou com o próprio autor, nitidamente protegeu de forma insuficiente o bem jurídico "dignidade da pessoa humana".

Também o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vem aplicando, reiteradas vezes, o aludido princípio (veja-se, exemplificativamente, o MS 893.436-3/9-00 – SP). Mais recentemente, no rumoroso caso do julgamento das células-tronco embrionárias, a tese foi aplicada, na integra, quando da apreciação da ADIn 3510, pelo Min. Gilmar Mendes, Presidente da Corte Suprema:

O presente caso oferece uma oportunidade para que o Tribunal avance nesse sentido. O vazio jurídico a ser produzido por uma decisão simples de inconstitucionalidade/nulidade dos dispositivos normativos impugnados torna necessária uma solução diferenciada, uma decisão que exerça uma "função reparadora" ou, como esclarece Blanco de Morais, "de restauração corretiva da ordem jurídica afetada pela decisão de inconstitucionalidade".

Seguindo a linha de raciocínio até aqui delineada, deve-se conferir ao art. 5º uma interpretação em conformidade com o princípio da responsabilidade, tendo como parâmetro de aferição o princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot).

Conforme analisado, a lei viola o princípio da proporcionalidade como proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot) ao deixar de instituir um órgão central para análise, aprovação e autorização das pesquisas e terapia com células-tronco originadas de embrião humano.

O art. 5º da Lei n º 11.105/2005 deve ser interpretado no sentido de que a permissão da pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias, obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, deve ser condicionada à prévia aprovação e autorização por Comitê (Órgão) Central de Ética e Pesquisa, vinculado ao Ministério da Saúde.

Entendo, portanto, que essa interpretação com conteúdo aditivo pode atender ao princípio da proporcionalidade e, dessa forma, ao princípio da responsabilidade.

4.1. Da especificidade do dispositivo

Portanto, em sendo perfeitamente cabível a transposição do princípio do direito alemão para terrae brasilis, deve-se examinar a adequação do dispositivo da Lei 11.343/06 que proíbe o tráfico de entorpecentes. Assim, tem-se que o artigo 33 define o crime e a pena (05 a 15 anos), revogando a lei anterior (Lei n º 6.368/76), que estabelecia a pena mínima de 03 anos. Veja-se o ocorrido: o legislador, depois de aumentar a pena mínima, curiosamente promoveu, no parágrafo quarto do mesmo artigo, um retrocesso, a ponto de alçar a nova pena mínima de 05 anos a um patamar inferior a 02 anos (na realidade, a pena pode descer ao patamar de 1 ano e 8 meses), bem abaixo da antiga pena mínima (03 anos). Com efeito:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;

II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;

III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.

(...)

§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Antes de tudo, é evidente que não discutirei a hipótese de "tráfico bagatelar" ou outras coisas do gênero. Não parece que essa discussão deva tomar lugar aqui, uma vez que "tráfico insignificante" é atípico e, neste caso, estar-se-ia trabalhando com a contradição secundária do problema de um crime considerado hediondo pela Constituição.

O que deve ser aqui considerado diz respeito à determinação legislativa que veio a aplacar/mitigar a repressão penal do crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Não é desarrazoado afirmar que a punição insuficiente para um crime de extrema gravidade e reprovabilidade equivale à impunidade. Ou, em outras palavras, equivale a não aplicação do comando constitucional de criminalizar. Na verdade, o legislador banaliza a punição do tráfico, nesse particular, ao tempo em que a Constituição aponta explicitamente para o outro lado, isto é, para uma atuação eficaz do Estado na repressão do tráfico de entorpecentes.

Dito de outro modo, a Constituição Federal da República do Brasil estabelece diretrizes de política criminal a serem, necessariamente, seguidas quando da edição de leis penais no exercício da atividade legiferante. Com base em tal premissa, o legislador não é dotado de absoluta liberdade na eleição das condutas que serão alvo de incriminação e nem, tampouco, na escolha dos bens jurídicos que serão objeto de proteção penal. Em decorrência, também não pode o Poder Legislativo deliberar sobre a descriminalização de normas protetivas de bens jurídicos com manifesta dignidade constitucional.

Por isso, o legislador ordinário, ao conceder o favor legal de "desconto" da pena com o teto de 2/3, extrapolou sua "competência", a ponto de se poder dizer que tal atitude equivale à desproteção do bem jurídico ofendido pela conduta de quem pratica o crime de tráfico ilícito de entorpecentes. A determinação constitucional é expressa, não sendo possível – a partir do que vem consagrado no artigo 5º, XLIII – interpretar o contrário do que está disposto no texto constitucional. Trata-se de uma questão de fácil resolução hermenêutica. A força normativa da Constituição não pode ser esvaziada por qualquer lei ordinária. Por isso, há que se levar a sério o texto constitucional.

Veja-se que não há similitude no Código Penal. Crimes graves como o roubo nem de longe permitem diminuição de pena no teto de 2/3. Na verdade, o teto de 2/3 de desconto da pena transforma o crime de tráfico ilícito de entorpecentes em crime equiparável ao furto qualificado, para citar apenas este. A propósito, cumpre lembrar que o ordenamento jurídico considera como de menor potencial ofensivo crimes cujas penas máximas não ultrapassam 02 anos de reclusão. [12]

Acrescento, ainda – a partir da análise de todo o Código Penal – que são raríssimas, em nosso sistema, as causas de diminuição de pena que alcançam o patamar de 2/3. Com efeito, têm-se, na parte geral, as minorantes genéricas da tentativa e do arrependimento posterior, que alcançam esse quantum de desconto desde que – e aqui se enfatize – na primeira, o iter criminis recém tenha iniciado e, na segunda, restrita a crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa, haja reparação do dano ou restituição da coisa, por ato voluntário do agente, até o recebimento da denúncia. E só.

Já na parte especial do Código, verifico que quando alguém comete um crime de homicídio impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção – veja-se que (a) não basta a paixão e que (b) a reação deve ser imediata à injusta provocação da vítima – a pena pode ser reduzida em, no máximo, 1/3. Ainda, à maior parcela dos crimes, mesmo aqueles que não ostentam grande gravidade, não é conferida qualquer benesse específica de diminuição de pena. Observo, além disso, que a primariedade – uma vez aliada à não-comprovação de envolvimento em organização criminosa – deixa de ser, no crime de tráfico ilícito de entorpecentes, uma causa que inviabiliza a "agravação" da pena para se tornar uma causa especial de sua diminuição, circunstância que subverte a parte geral do Código Penal.

No fundo, trata-se de uma questão que beira à teratologia, quando se constata que o legislador ordinário foi buscar na figura do furto privilegiado – artigo 155, § 2º, do Código Penal – a inspiração (sic) para diminuir a pena do crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Sim, porque esse – o furto privilegiado – é o único crime que recebe tratamento análogo ao recebido pelo tráfico de entorpecentes, verbis:

Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

(...)

§ 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.

Ou seja, o legislador, ao desvalorar a ação, na falta de outro elemento, socorreu-se do mesmo critério utilizado para abrandar a punição nos crimes de furto cujo objeto material é de pequeno valor econômico. Mutatis mutandis, os parâmetros para a avaliação do desvalor da ação nessas duas modalidades delitivas – o crime hediondo de tráfico de drogas e o singelo crime de furto – por mais espécie que isto possa causar, são "idênticos".

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E mais: ao se considerar a alteração legislativa e, logo, a benesse instituída no § 4º da Lei 11.343 como válidas, ter-se-á como legítima a atuação do legislador – em futuras alterações legislativas – na mitigação da proteção conferida a um crime equiparado, por força constitucional, a crime hediondo.

Veja-se, assim, a situação teratológica – e me permito utilizar novamente essa adjetivação, porque merecida – que se delineia em terrae brasilis: a Constituição exige tratamento mais rigoroso a determinados crimes e o legislador atenua, sem qualquer autorização/justificação/ressalva constitucional, a proteção conferida a tais crimes. Ora, isso é ler a Constituição de acordo com a lei ordinária! Pior do que isso, sem qualquer prognose. E não precisamos aqui recordar, por tudo o que já avançamos em termos de teoria constitucional e de controle de constitucionalidade, o caso Marbury v. Madison para saber que uma lei ordinária não pode "alterar" a Constituição!

4.2. De como a atenuação da pena no patamar de 2/3 viola os princípios da igualdade e da integridade do direito e de como o dispositivo repristina o direito penal do autor.

Além de infringir o princípio da proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot) e, por conseqüência, o dever de proteção (Schutzplicht) ínsito aos ditames do Estado nesta quadra da história, o dispositivo sob comento viola o princípio da coerência, da integridade e da igualdade.

Uma das exigências do direito no Estado Democrático é a manutenção de sua integridade e de sua coerência. Veja-se que a integridade é duplamente composta, conforme Dworkin [13]: um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto o possível, seja vista como coerente nesse sentido. A exigência da integridade (princípio), no dizer de Dworkin, condena, veementemente, as leis conciliatórias e as violações menos clamorosas desse ideal como uma violação da natureza associativa de sua profunda organização. A integridade é uma forma de virtude política, exigindo que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equanimidade na correta proporção, diante do que, por vezes, a coerência com as decisões anteriores será sacrificada em nome de tais princípios (circunstância que assume especial relevância nos sistemas jurídicos como o do Brasil, em que os princípios constitucionais transformam em obrigação jurídica um ideal moral da sociedade).

O caráter nitidamente "conciliatório" do aludido parágrafo 4º afronta a integridade e a igualdade no tratamento dado pelo legislador no combate à criminalidade. No dizer de Dworkin, uma lei é considerada "conciliatória" quando mostra incoerência de princípio, podendo ser justificada – se é que pode – somente com base em uma distribuição eqüitativa do poder político entre as diferentes facções morais. Por isso ele diz que "certamente quase todos nós ficaríamos consternados diante de um direito conciliatório" que tratasse crimes similares de forma diferenciada, em bases arbitrárias. O que a integridade condena é a incoerência de princípio entre os atos do Estado personificado. [14] Veja-se que, nos Estados Unidos, o ideal de integridade é levado ao patamar de princípio constitucional, pois se considera que a cláusula de igual proteção da Décima Quarta Emenda veda conciliações internas sobre questões de princípios importantes. Essa cláusula é utilizada pela US Supreme Court para declarar inconstitucionais leis que conferem tratamento diferenciado a diferentes grupos ou pessoas (por exemplo, em termos de direitos fundamentais). [15]

Nessa linha, é possível certificar que o aludido parágrafo 4º – que estabelece tratamento absolutamente diferenciado a acusados primários e em patamar absolutamente desproporcional (incoerente, pois) – fere o princípio da igualdade. Afinal, não há explicação coerente ou razoável que justifique, ao mesmo tempo, o aumento da pena mínima de 03 para 05 anos e, na mesma lei, a diminuição do patamar de 2/3 para os réus primários, sem que, para tanto, haja precedentes na legislação brasileira e sem que tenha havido qualquer preocupação com os efeitos colaterais de tal decisão (v.g., a aplicação analógica do favor legal a todos os demais crimes hediondos e, por extrema obviedade, aos crimes que não são hediondos).

Ou seja, a característica "conciliatória" do referido dispositivo fere de morte o princípio da igualdade nas suas duas frentes: a um, na instituição de indevidas diferenciações; a dois, a sua conseqüência, decorrente da aplicação analógica dessas indevidas diferenciações. Visto sob qualquer desses escopos, a lei não resiste à integridade legislativa e jurisdicional.

Veja-se que a partir dos princípios da coerência e da integridade, [16] tendo-se por pressupostos os assentados fatos de que o legislador, até a revogação da Lei 6.368/76, não concebia o desconto da pena e de que a pena mínima era de 03 anos de reclusão, torna-se absolutamente paradoxal, contraditório, incoerente e contrário a qualquer possibilidade de integridade aprovar uma nova lei que aumenta a pena mínima e, ao mesmo tempo, possibilita uma diminuição, por condição pessoal do réu, de até 2/3 da pena, recolocando, assim, a pena mínima em patamar inferior ao que existia anteriormente. Ora, se o legislador resolve aumentar a pena mínima, é porque deve ter motivos (prognose) para tal. Se ele aumenta em mais da metade a pena mínima, não tem sentido, ao mesmo tempo, diminuir a pena em percentual maior que próprio aumento. Simples, pois!

E, na medida em que não há qualquer prognose do legislador, tem-se que se deve partir dos motivos implícitos que o levaram a aumentar a pena mínima para 05 anos, isto é, a penalização era diminuta e a pena mínima não atendia minimamente o desvalor da ação de traficar ilicitamente (observe-se, conforme já mencionado, que estatísticas e relatórios comprovam o aumento do consumo de drogas e do tráfico ilícito de entorpecentes no país). Pois exatamente a partir dessa motivação é que a diminuição – repita-se, totalmente excepcional, porque assistemática (bastando examinar o restante do Código Penal e da legislação) – é inconstitucional.

Pretendendo ser mais claro: a quebra do princípio da integridade provoca também retrocesso social no combate ao crime de tráfico de entorpecente. Ou seja, uma vez eleita pelo próprio legislador constituinte a via da criminalização (sem direito sequer a graça e anistia) do crime de tráfico de drogas e já estando em vigor legislação que atendia ao comando constitucional, parece razoável afirmar que a nova lei desatendeu aos propósitos constituintes. A menos que o mesmo legislador houvesse comprovado que o favor legal, com fortes evidências, proporcionaria uma diminuição da ocorrência do crime tão fortemente combatido pelo legislador constituinte.

Observe-se, ainda, que a análise não esgota seus efeitos na apreciação singularizada dos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes. A se aceitar como legítima e válida – e, portanto, imune ao controle de constitucionalidade – a atuação do Poder Legislativo quando da previsão de diminuição da pena do crime de tráfico de drogas de acordo com a condição pessoal do agente (como ocorre no caso em pauta), teremos que anuir com uma eventual descriminalização ou diminuição da proteção – a critério do legislador infraconstitucional – de crimes como a tortura e o roubo qualificado pelo resultado morte. Enfim, às maiorias parlamentares de ocasião competirá determinar a necessidade de repressão aos crimes hediondos e equiparados. E isso não pode, de forma alguma, ser aceito em um Estado Constitucional.

A agravar a situação, a Lei 11.343/06 trouxe como critérios de diminuição de pena circunstâncias concernentes a um ultrapassado direito penal do autor, não mais aceito em um Estado que se declare Democrático de Direito. A propósito, a doutrina do direito penal do autor, adotada com prevalência pela Escola de Kiel, surgida durante a vertente nacional-socialista da Alemanha e utilizada para legitimar a repressão durante o período nazista é, agora, também de forma equivocada, invocada para a concessão de benefícios. Veja-se, pois, a dimensão do paradoxo! Assim como não é dado ao Führer a preponderância sobre o próprio direito, não se pode proporcionar, em um Estado Constitucional e Democrático de Direito, ao legislador poderes de contrariar a base normativa do Estado, ou seja, a sua Constituição. Aqui, francamente violado o princípio da igualdade: o indivíduo que trafica e que for primário tem tratamento absolutamente diferenciado daquele que não ostenta essa peculiaridade.

Para comprovar a assertiva anterior: seria possível conferir ao genocida ou ao latrocida primário, sem antecedentes criminais e sem envolvimento comprovado em organização criminosa, o favor legal de diminuição de 2/3 da pena? A resposta, que parece simples, conduz à solução da questão proposta: a Constituição não permite ao legislador tal liberdade de conformação. Tampouco o sistema penal – que deve necessariamente ser entendido como um sistema – aceitaria tal descritério na proteção dos bens jurídicos.

Ainda – na mesma linha, considerando-se o princípio da igualdade, a pergunta que deve necessariamente ser feita é: por que não aplicar o favor legal aos demais crimes hediondos? E, melhor ainda, por que não aplicar esse favor legal para aqueles condenados por crimes não hediondos? Lembremos da discussão da extensão da Lei da Tortura para os crimes hediondos no que tange à progressão de regime...! Absolutamente estranha essa preocupação "mitigadora" e "conciliatória" do legislador para com o tráfico de entorpecentes.

No limite, em face do dever de criminalização e do fato de que esta não pode estar dissociada da pena de prisão stricto sensu, não é possível compatibilizar as circunstâncias de se tratar de crime hediondo e, ao mesmo tempo, de crime apenado com pena abstrata mínima que autorizaria tanto a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos quanto à fixação da pena em regime inicial aberto [17]. Claro que a determinação das penas abstratas é tarefa para o legislador, mas o estabelecimento de pena mínima que autorizaria o cumprimento da pena, desde logo, em liberdade é um despropósito.

Com efeito, não se pode conceber que a um crime cuja previsão de punição decorre, dada a relevância e a natureza do bem jurídico protegido, da própria Constituição Federal, possa ser determinada uma pena que, no sistema – não fosse a pontual vedação estabelecida pelos artigos 2º da Lei 8072/90 e 44 da Lei 11.343/06 –, implicaria a substituição, de plano, por penas restritivas de direitos ou o cumprimento da pena em regime prisional aberto, o qual, se fundamenta em autodisciplina e em senso de responsabilidade do condenado. Para tanto, basta a constatação de que é permitido que o apenado trabalhe fora do estabelecimento prisional, sem qualquer vigilância, permanecendo recolhido apenas durante o período noturno e nos dias de folga: trata-se, pois, de regime prisional destinado à reinserção do indivíduo na sociedade. Ou seja, a benesse legislativa transforma o crime equiparado a hediondo em um delito equiparado a crimes de menor gravidade em que em que se autoriza o cumprimento da pena, desde o início, em liberdade; equipara, analisando por outro enfoque, o tráfico de entorpecentes com crimes que autorizam a reinserção direta do apenado em liberdade. E isso é absolutamente incompatível com a determinação constitucional e com os tratados internacionais firmados para o controle e repressão do crime de tráfico de entorpecentes.

Observo – e aqui insisto – que o condenado pelo crime de tráfico beneficiado pelo favor legal instituído no § 4º do artigo 33 da Lei 11.343/06, apenas não ficará em liberdade em função de vedações que excepcionam a regra geral. Eis aí – na própria edição de regras excepcionais – o reconhecimento da situação deturpada e desproporcional que se criou no ordenamento.

Mais do que isso, o patamar mínimo estabelecido na Lei 11.343/06 – fosse a sanção aplicada no mínimo legal – autorizaria, nos termos do artigo 77 do Código Penal, a Suspensão Condicional da Pena. E é absolutamente incongruente "equiparar" as penas de crimes que permitem a substituição da pena e o regime aberto desde logo (v.g., dano, furto, estelionato, apropriação indébita, calúnia, injúria, difamação, etc.) com um crime do quilate do tráfico.

4.3. O falso dilema representado pela alegação de que a anulação de leis penais favoráveis ao réu, via controle de constitucionalidade (difuso e/ou concentrado), viola o princípio da legalidade

Ainda é dominante – no âmbito do direito penal brasileiro – a tese de que qualquer lei que venha a trazer benefícios ao acusado está imune ao controle de constitucionalidade, porque isto equivaleria à violação do princípio da legalidade. Trata-se de uma visão equivocada, uma vez que o princípio da reserva legal, antes de ser um dispositivo legal-penal, é um princípio constitucional. O legislador ordinário deve obedecê-lo cada vez que elabora uma lei. Caso contrário, existiria uma zona isenta de controle jurisdicional da constitucionalidade. E, assim, seria considerada lícita até mesmo a descriminalização do crime de estupro.

O controle de constitucionalidade das leis é uma conquista civilizatória. E, obviamente, não poderia haver leis imunes a sindicabilidade. Fosse verdadeira a tese de que a anulação de uma lei que estabelece favores legais ao acusado fere o princípio da legalidade e estaria criado um "enclave penal" no interior do direito constitucional. A questão não é nova. Por todos, cito o caso do aborto na Alemanha, já mencionado retro, e o julgamento dos soldados da antiga Alemanha Oriental, conhecido como o "caso Mauerschützen", em que, após a reunificação, um grupo de soldados da antiga RDA foi condenado por homicídio, por atirarem em fugitivos que tentavam ultrapassar o muro de Berlim. O Tribunal Constitucional alemão (Bundesverfassugnsgericht), examinando o recurso, negou-lhe provimento, (BGHSt 39, 1); também negou provimento ao recurso dos altos funcionários da RDA, condenados pelas mortes de fugitivos por minas terrestres (BGHSt 39, 168, entre outros). O Tribunal Constitucional considerou que as condenações dos acusados pelas instâncias ordinárias não violaram o art. 103, 2, da Lei Fundamental alemã, que trata do nullum crime, nulla poena, sine lege.

Não se pode olvidar o recente caso da anulação, por inconstitucionalidade e por malferimento dos tratados internacionais e da Constituição, da lei da "obediencia devida", que concedeu anistia aos militares argentinos. A referida lei foi declarada inconstitucional, com votos dos Ministros Ricardo Lorenzetti, Juan Maqueda, Eugênio Zaffaroni [18] e Helena Highton de Nolasco, pela Suprema Corte Argentina, fundamentalmente por violar tratados internacionais, firmados pela República Argentina, de proteção aos direitos fundamentais e de combate à tortura e a outros crimes graves. A Corte Argentina decidiu que os delitos que lesam a humanidade, por sua gravidade, não podem ser objetos de indulto, uma vez que não só afrontam a Constituição, como, também, toda a comunidade internacional. Em suma, acabou por reconhecer o dever de proteção, não só por parte do Estado, mas, também, por parte de toda a comunidade internacional [19].

4.4. A importância dos tratados internacionais firmados pelo Brasil

A par da importância dos próprios tratados internacionais utilizados como parâmetro para a declaração de inconstitucionalidade de leis como a da "obediencia devida", na Argentina, já anteriormente assinalada, importa também registrar o reforço hermenêutico de tais documentos (acordos, tratados, convenções, etc.) para a aferição da invalidade do citado parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/06. Nesse sentido, embora no Brasil essa questão ainda esteja controvertida [20] (principalmente no que tange aos tratados e convenções internacionais ratificados anteriormente à Emenda Constitucional 45/04), isto é, se os tratados internacionais servem, de per si, para a declaração da inconstitucionalidade de legislação ordinária que com eles se confronte, não se pode negar a força do direito internacional para encontrar respostas e soluções para casos análogos que exsurgem no direito interno. Sua força hermenêutica é inegável.

Relembre-se, na especificidade "combate ao crime de tráfico de entorpecentes", a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, concluída e assinada em Viena, internalizada, no Brasil, sob a forma do Decreto n° 154, em 1991, que estabelece – tendo por preocupação a magnitude e a crescente tendência da produção, da demanda e do tráfico ilícitos de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, que representam uma grave ameaça à saúde e ao bem-estar dos seres humanos e que têm efeitos nefastos sobre as bases econômicas, culturais e políticas da sociedade, e, ainda, a crescente expansão do tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópricas nos diversos grupos sociais e, em particular, pela exploração de crianças em muitas partes do mundo, tanto na qualidade de consumidores como na condição de instrumentos utilizados na produção, na distribuição e no comércio ilícitos de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, o que constitui um perigo de gravidade incalculável, reconhecendo que os vínculos que existem entre o tráfico ilícito e outras atividades criminosas organizadas, a ele relacionadas, que minam as economias lícitas e ameaçam a estabilidade, a segurança e a soberania dos Estados e também que o tráfico ilícito é uma atividade criminosa internacional, cuja supressão exige atenção urgente e a mais alta prioridadeem seu artigo 3º, itens 1, 2 e 4, que os países/partes que ratificarem o tratado devem adotar as medidas necessárias para caracterizar como delitos penais em seu direito interno quando cometidos internacionalmente uma série de condutas caracterizadoras de tráfico ilícito de entorpecentes e que deverão dispor de sanções proporcionais à gravidade dos delitos.

No mesmo sentido refiram-se, ainda, as convenções de Genebra para a Repressão do Tráfico Ilícito das Drogas Nocivas, de 1936, e de Nova York, de 1961, bem como o acordo assinado, entre os países de Língua Portuguesa (1997) visando à Redução da Demanda, Prevenção do Uso Indevido e Combate à Produção e ao Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, firmado em Salvador. Existe, ainda, uma série de acordos firmados entre o Brasil e países como Espanha (1999), Romênia (1999), Peru (1999), Itália (1997), África do Sul (1996), México (1996), Estados Unidos (1995), Rússia (1994), para mencionar, exemplificativamente, apenas estes, todos com a finalidade de integração para prevenção, controle e combate do crime de tráfico ilícito de entorpecentes.

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Sobre o autor
Lenio Luiz Streck

Procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Doutor em Direito. Doutor em Direito pela UFSC. Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa. Professor da Unisinos. Professor da Universidade de Coimbra (Portugal). Autor de 20 livros e de 85 artigos. Conferencista nacional e internacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

STRECK, Lenio Luiz. O dever de proteção do Estado (Schutzpflicht).: O lado esquecido dos direitos fundamentais ou qual a semelhança entre os crimes de furto privilegiado e o tráfico de entorpecentes?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1840, 15 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11493. Acesso em: 23 dez. 2024.

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