Capa da publicação Seção 301: Trump acusa Brasil de corrupção comercial
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Corrupção sistêmica como barreira não tarifária: a Seção 301 dos EUA e seus impactos no Brasil

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21/07/2025 às 12:38

Resumo:


  • O artigo analisa o uso da Seção 301 da Lei de Comércio dos EUA como instrumento de coerção econômica e diplomática sobre o Brasil, abordando a alegação de corrupção sistêmica e suas implicações multifacetadas.

  • Destaca-se a expansão das barreiras não tarifárias para questões como pirataria, desmatamento ilegal e comércio digital, evidenciando os desafios enfrentados pelo Brasil e a necessidade de respostas estratégicas.

  • O texto revela contradições na política externa dos EUA, especialmente no contexto da aplicação do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), apontando um duplo padrão na abordagem anticorrupção e na diplomacia coercitiva.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

8. Efeitos para o Ambiente Empresarial e o Cenário de Sanções: Insegurança e Retaliação Econômica

A retórica punitivista e a ameaça de sanções por parte dos EUA criam um ambiente de profunda insegurança e incerteza regulatória que afeta diretamente o setor produtivo brasileiro. A possibilidade de restrições arbitrárias nas exportações, o aumento de custos logísticos e, crucialmente, os prejuízos reputacionais baseados em critérios opacos e potencialmente politizados, representam um fardo pesado para empresas nacionais, especialmente as pequenas e médias, que podem não ter a capacidade de absorver tais choques.

Caso a investigação da Seção 301 resulte em uma conclusão desfavorável ao Brasil, o Representante Comercial dos EUA (USTR) possui um leque amplo de sanções retaliatórias que podem ser impostas unilateralmente, sem a necessidade de aprovação da Organização Mundial do Comércio (OMC), sublinhando o caráter extraterritorial e coercitivo da norma. As sanções mais comuns e impactantes incluem:

  1. Imposição de Tarifas Adicionais (Sobretaxas): Esta é a forma mais direta de retaliação. O USTR pode aplicar tarifas ad valorem (um percentual sobre o valor do produto) ou específicas (um valor fixo por unidade) sobre determinadas importações brasileiras. Historicamente, os EUA já impuseram sobretaxas de 100% sobre certos produtos brasileiros (como em 1988, na disputa farmacêutica), tornando sua comercialização virtualmente proibitiva no mercado americano. Essas tarifas elevam drasticamente o custo dos produtos brasileiros, minando sua competitividade e capacidade de acesso ao consumidor norte-americano.

  2. Restrições Quantitativas ou Cotas de Importação: Embora menos comum, o USTR pode limitar o volume de certos produtos brasileiros que podem entrar no mercado dos EUA, restringindo o fluxo comercial independentemente do preço.

  3. Suspensão ou Retirada de Concessões e Benefícios Comerciais: Os EUA podem revogar status comerciais preferenciais concedidos ao Brasil sob acordos bilaterais ou programas como o Sistema Geral de Preferências (SGP), que oferece tratamento tarifário reduzido ou isento a produtos de países em desenvolvimento. A perda desses benefícios pode tornar as exportações brasileiras menos competitivas frente a outros fornecedores.

  4. Limites ou Proibições à Compra de Produtos Brasileiros por Entidades Americanas: Em casos mais severos, o governo dos EUA pode instruir suas agências ou entidades a restringir a aquisição de bens e serviços de origem brasileira.

  5. Restrições a Serviços: As sanções podem se estender a setores de serviços, como o digital ou financeiro, impondo barreiras à atuação de empresas brasileiras no mercado americano ou vice-versa, como já sinalizado em algumas discussões sobre comércio digital e serviços de pagamento eletrônico.

Essas medidas têm um impacto econômico devastador. Além da perda direta de mercados, elas geram um efeito cascata que inclui: desestímulo ao investimento estrangeiro, uma vez que a imprevisibilidade regulatória aumenta o risco percebido; prejuízo à reputação das empresas brasileiras no cenário internacional, mesmo daquelas com compliance robusto; e desorganização das cadeias de suprimentos que dependem de insumos ou exportações para o mercado americano.

A imagem do Brasil como uma "nação corrupta" ou "inimiga do meio ambiente", embora distorcida, pode ser amplificada por tais sanções, reforçando uma narrativa prejudicial que mina a competitividade global e a capacidade do país de atrair capital e parcerias estratégicas. A assimetria de poder entre as economias, nesse contexto, transforma a sanção em uma poderosa ferramenta de coerção política e econômica, cujos custos recaem sobre o setor produtivo e, em última instância, sobre a sociedade brasileira.

8.1. Possibilidade de Resolução Negociada e a Mitigação das Sanções

Uma vez aberto o processo sob a Seção 301, a imposição de sanções não é um desfecho inevitável. A possibilidade de "retrocesso" – ou, mais precisamente, de uma resolução negociada sem a efetivação das medidas punitivas – existe e representa um caminho estratégico para o país investigado. Esse desfecho, no entanto, geralmente depende de negociações intensas e da demonstração de concessões ou ações concretas por parte do país sob investigação.

Os principais cenários para evitar a imposição de sanções incluem:

  • Resolução Negociada e Acordos: Durante a fase de investigação e consultas (que pode se estender por meses), o Brasil pode engajar-se em negociações diretas com o USTR. Isso pode levar a compromissos de implementação de medidas específicas para atender às preocupações dos EUA, seja no aprimoramento do enforcement de leis anticorrupção, no combate mais efetivo à pirataria, na alteração de políticas de comércio digital e tarifas, ou na demonstração de progressos significativos no controle do desmatamento. Um acordo que satisfaça as demandas do USTR pode encerrar a investigação.

  • Retirada da Investigação: Se as ações e compromissos apresentados pelo Brasil forem considerados suficientes e convincentes, o USTR tem a prerrogativa de encerrar a investigação sem a imposição formal de sanções.

  • Pressão Interna nos EUA e Interesses Geopolíticos: O lobby de empresas americanas que seriam prejudicadas por sanções retaliatórias, ou mudanças em prioridades geopolíticas mais amplas dos EUA, podem, ocasionalmente, influenciar a decisão do USTR de aliviar a pressão ou buscar uma solução menos conflitiva.

Para que haja um desfecho favorável, é crucial que o Brasil adote uma estratégia multifacetada, combinando diplomacia ativa com apresentação de argumentação técnica robusta e demonstração de ações concretas de aprimoramento em suas políticas. Isso reforça a ideia de que a Seção 301, embora coercitiva, é também uma ferramenta de pressão que visa a induzir mudanças e negociações, não sendo uma sentença final.


9. Contradições da Política Externa Norte-Americana: FCPA, Enforcement e o Duplo Padrão

A alegação dos EUA de que o Brasil tolera "corrupção sistêmica" assume uma dimensão ainda mais irônica quando se examina a evolução do enforcement do próprio Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), a principal lei anticorrupção norte-americana com alcance extraterritorial. O ano de 2023, por exemplo, registrou um dos maiores montantes arrecadados em multas pelo Departamento de Justiça (DoJ) e pela SEC, aproximadamente US$ 520 milhões, conforme relatório da Greenberg Traurig (2024).

No entanto, o mesmo período viu uma queda significativa no número de ações iniciadas, totalizando apenas 21, um número consideravelmente abaixo da média da última década, segundo dados do Stanford FCPA Clearinghouse (2023).

Essa aparente contradição entre o volume de multas e a redução do número de casos reflete uma recalibragem estratégica de enforcement por parte do DoJ. As diretrizes recentes, como as detalhadas na Corporate Enforcement Policy do Department of Justice (DoJ), têm priorizado a autodenúncia voluntária e a eficácia de programas de compliance, incentivando acordos colaborativos e a cooperação empresarial em detrimento de litígios prolongados e custosos.

Esse movimento não significa um enfraquecimento da legislação, mas sim uma modulação que busca maior eficiência e, de certa forma, reduz o risco penal para empresas que cooperam, oferecendo-lhes caminhos menos onerosos para a resolução de irregularidades.

Essa nuance não apenas quebra a retórica moralista que posiciona os EUA como um exemplo inconteste de integridade e rigor no combate à corrupção. A Seção 301, ao ser utilizada para punir supostas falhas brasileiras em uma escala "sistêmica", incorpora um flagrante duplo padrão: o mesmo país que demonstra uma flexibilização estratégica em sua própria política de enforcement anticorrupção, priorizando a colaboração em vez da penalização máxima, pressiona por medidas excessivamente punitivas e unilaterais contra terceiros, sem demonstrar a mesma disposição para a construção de soluções cooperativas. Essa assimetria revela a face geopolítica e os interesses subjacentes à suposta cruzada anticorrupção.

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10. Considerações Finais: Entre Soberania Nacional e a Diplomacia Coercitiva

O uso da Seção 301 como um instrumento de política econômico-comercial reforça a urgência da defesa da soberania normativa dos países em desenvolvimento frente a instrumentos de coerção unilateral.

A análise de James Durling (2020) sobre a Seção 301 e a litigância na OMC corrobora a tese de que essa ferramenta unilateral representa um desafio direto à arquitetura do comércio multilateral. As alegações de corrupção sistêmica, falhas em propriedade intelectual, desmatamento ilegal, problemas em comércio digital e serviços de pagamento, tarifas preferenciais e acesso ao mercado de etanol, quando desprovidas de critérios técnicos objetivos e permeadas por uma clara seletividade geopolítica, não são apenas acusações infundadas; elas se transformam em barreiras não tarifárias disfarçadas, com efeitos profundamente nocivos ao comércio justo, à segurança jurídica global e aos princípios fundamentais do direito internacional. A legitimidade de tal instrumento é questionável quando sua aplicação parece mais motivada por interesses estratégicos do que por uma busca genuína pela integridade global.

Diante dessa complexa ofensiva, o Brasil deve responder com firmeza institucional, amparando-se na solidez de seu arcabouço legal e na atuação de suas instituições de controle.

Contudo, a resposta não pode ser meramente reativa; ela exige uma estratégia diplomática proativa e uma narrativa própria, que destaque os avanços inegáveis do país em compliance, controle ambiental, combate à pirataria, e contextualize as nuances de sua legislação (como as alterações na Lei de Improbidade Administrativa e a busca por maior segurança jurídica), bem como suas políticas de comércio digital e acesso a mercado.

É fundamental que o Brasil demonstre ao mundo o amadurecimento de suas políticas e o compromisso contínuo com a governança. A sociedade civil e o empresariado brasileiro, por sua vez, precisam estar cientes de que há mais em jogo do que aparenta a superfície da retórica anticorrupção e das demais acusações: trata-se de um desafio direto à autonomia nacional e à busca por um sistema de comércio internacional mais equitativo e menos suscetível a manipulações unilaterais.


Referências

BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 2 ago. 2013.

BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Altera a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre atos de improbidade administrativa. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 26 out. 2021.

DEPARTMENT OF JUSTICE (DOJ). Corporate Enforcement Policy. Disponível em: https://www.justice.gov/criminal/criminal-fraud/corporate-enforcement-policy. Acesso em 20. jul. 2025

DURLING, James. Section 301 and WTO Litigation: A Comparative Analysis. Journal of International Economic Law, v. 23, n. 4, p. 779-800, 2020.

FCPA CLEARINGHOUSE – Stanford Law School. FCPA Actions by Year. Disponível em: https://fcpa.stanford.edu/statistics.html. Acesso em: 19 jul. 2025.

GREENBERG TRAURIG. FCPA Enforcement in 2023: Key Statistics. 2024. Disponível em: https://www.gtlaw.com/en/insights/2024/01/fcpa-enforcement-statistics-2023. Acesso em: 19 jul. 2025.

MAPBIOMAS. Relatório Anual de Desmatamento no Brasil 2023. Disponível em: https://mapbiomas.org. Acesso em: 20 jul. 2025.

SUPPLY CHAIN DIVE. USTR launches investigation of Brazil over corruption, deforestation, and IP violations. Jul. 2025. Disponível em: https://www.supplychaindive.com. Acesso em: 20 jul. 2025.

UNITED STATES TRADE REPRESENTATIVE (USTR). Initiation of Section 301 Investigation: Brazil's Acts, Policies, and Practices Related to Digital Trade and Electronic Payment Services; Unfair Preferential Tariffs; Anti-Corruption Enforcement; Intellectual Property Protection; Ethanol Market Access; and Illegal Deforestation; Hearing; and Request for Public Comments. Federal Register, v. 90, n. 138, p. 34069-34081, 18 jul. 2025. Disponível em: https://www.adobe.com/acrobat/about-adobe-pdf.html. Acesso em: 20 jul. 2025.


Abstract: This article deepens the analysis of Section 301 of the United States Trade Act as an instrument of economic and diplomatic coercion against Brazil, focusing on the controversial allegation of systemic corruption. Adopting an interdisciplinary and critical perspective, it examines the blatant contradictions in U.S. foreign policy, the multifaceted impacts on the Brazilian business sector, and the effectiveness of Law No. 12,846/2013 (Anti-Corruption Law), as well as the nuances of recent changes to the Administrative Improbity Law. Furthermore, the text discusses how elements such as corruption, piracy, illegal deforestation, digital trade issues, preferential tariffs, and ethanol market access are strategically mobilized as new-generation non-tariff barriers, often leveraged for geopolitical purposes that extend beyond mere trade protection, challenging the multilateral trading order.

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Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LAGROTTA, Luiz Carlos Nacif. Corrupção sistêmica como barreira não tarifária: a Seção 301 dos EUA e seus impactos no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8055, 21 jul. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114947. Acesso em: 5 dez. 2025.

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