Resumo: A recente aprovação do Projeto de Lei nº 2.159/2021, que institui o novo marco legal do licenciamento ambiental, inaugura uma fase de profundas alterações nos mecanismos de controle ambiental no Brasil. O presente artigo examina os principais aspectos da nova legislação à luz dos princípios constitucionais da vedação ao retrocesso ambiental, do devido processo legal e da preservação da função socioambiental do Estado, propondo uma reflexão crítica sobre os potenciais efeitos jurídicos, institucionais e socioambientais da norma.
1. Introdução
O licenciamento ambiental figura como instrumento central da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981), traduzindo, na prática, o dever do Estado e da coletividade de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, nos termos do art. 225. da Constituição Federal. A aprovação, pelo Congresso Nacional, do PL nº 2.159/2021 representa a consolidação de um novo paradigma normativo, que busca conferir celeridade e segurança jurídica aos processos de licenciamento, ainda que sob críticas quanto à sua compatibilidade com garantias constitucionais.
2. Da configuração normativa do novo marco legal
A nova legislação propõe, entre outras inovações:
A criação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), baseada em autodeclarações do empreendedor, com dispensa de estudos prévios em determinados casos;
A instituição da Licença Ambiental Especial (LAE) para empreendimentos considerados estratégicos, com tramitação célere e simplificada;
A dispensa de licenciamento para atividades tidas como de baixo impacto ou em áreas já consolidadas;
A restrição da atuação de órgãos intervenientes, como Funai, ICMBio e Iphan, limitando sua participação a terras e bens efetivamente homologados ou tombados.
Tais dispositivos pretendem racionalizar o processo licenciatório, mitigando a sobreposição de competências e a morosidade que afeta projetos de infraestrutura, energia e agronegócio.
3. Aspectos constitucionais e controvérsias
3.1. Vedação ao retrocesso ambiental
O STF tem reiteradamente afirmado a proibição de retrocesso socioambiental (v.g. ADPF 708, RE 654.833), reconhecendo que normas infraconstitucionais não podem vulnerar o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. A substituição de critérios técnicos por autodeclarações e a eliminação de instâncias de controle administrativo configuram potenciais violações à integridade do art. 225. da CF.
3.2. Princípio da precaução e segurança jurídica
O novo marco flexibiliza a exigência de estudos de impacto ambiental e reduz a atuação de órgãos técnicos especializados, contrariando o princípio da precaução, basilar no Direito Ambiental moderno. Tal medida pode comprometer a segurança jurídica de empreendimentos submetidos a posteriori a sanções administrativas e judiciais em razão de danos ambientais não previstos no licenciamento simplificado.
3.3. Pacto federativo e competências ambientais
Ao centralizar competências e restringir a intervenção de entes federativos e autarquias técnicas, o novo texto afronta o princípio do federalismo cooperativo, previsto no art. 23. e 24 da CF, fragilizando o papel dos Estados e Municípios na gestão ambiental compartilhada.
4. Riscos de judicialização e impactos regulatórios
A complexidade da nova norma e sua frágil ancoragem em garantias constitucionais tende a gerar um aumento significativo de litígios, tanto no plano judicial (v.g. ações diretas de inconstitucionalidade, civis públicas) quanto no contencioso administrativo. Ademais, pode haver questionamento da conformidade do marco legal com tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como o Acordo de Paris e os compromissos ambientais do Mercosul e da União Europeia (EUDR).
5. Considerações finais
Embora o novo marco normativo do licenciamento ambiental busque enfrentar gargalos históricos da administração pública e promover ambiente de negócios mais atrativo, a fragilização dos controles preventivos, a exclusão de órgãos técnicos e a sobrevalorização de mecanismos autodeclaratórios sinalizam um possível retrocesso institucional com reflexos socioambientais severos.
A comunidade jurídica, científica e técnica deve permanecer vigilante quanto aos desdobramentos dessa reforma, propondo medidas mitigadoras, orientações técnicas e, se necessário, instrumentos de controle de constitucionalidade e convencionalidade.
Referências
Constituição Federal de 1988, art. 225.
Lei nº 6.938/1981 – Política Nacional do Meio Ambiente.
STF, ADPF 708, Rel. Min. Luís Roberto Barroso.
STF, RE 654.833, Rel. Min. Edson Fachin.
Projeto de Lei nº 2.159/2021 (Câmara dos Deputados).
Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas.
Diretrizes da União Europeia para Desmatamento Zero (EUDR).