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Lei Magnitsky: origem, fundamentos e aplicação

31/07/2025 às 10:56

Resumo:


  • A Lei Magnitsky e seus equivalentes globais representam um marco na responsabilização internacional por violações de direitos humanos e corrupção.

  • Essas leis permitem impor sanções financeiras e restrições de mobilidade a indivíduos e entidades, desafiando noções tradicionais de soberania.

  • A origem da Lei Magnitsky está no caso do advogado russo Sergei Magnitsky e sua morte sob custódia, levando à aprovação de legislações nos EUA e em outros países.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Como a Lei Magnitsky viabiliza sanções extraterritoriais por corrupção e violações de direitos humanos? O artigo analisa fundamentos legais, impactos práticos e tensões de soberania.

Introdução

A Lei Magnitsky e seus equivalentes globais representam um ponto de inflexão nas práticas de responsabilização internacional por violações de direitos humanos e corrupção sistêmica. Ao permitir a imposição de sanções financeiras e restrições de mobilidade a indivíduos e entidades, independentemente de nacionalidade ou localização dos crimes, tais leis desafiam noções tradicionais de soberania, ao mesmo tempo em que buscam responder a lacunas persistentes na repressão à impunidade transnacional. Este artigo examina, à luz dos principais debates acadêmicos e jornalísticos internacionais, a origem da Lei Magnitsky, seus fundamentos jurídicos e a aplicação prática no cenário contemporâneo.


1. Origem da Lei Magnitsky

O ponto de partida da legislação Magnitsky repousa no caso do advogado russo Sergei Magnitsky. Em 2008, Magnitsky revelou um esquema de fraude de aproximadamente US$230 milhões envolvendo autoridades fiscais russas. Em resposta, foi detido por agentes estatais, submetido à tortura e morreu sob custódia em 2009, vítima da omissão e da repressão estatal. O caso ganhou repercussão internacional através da atuação do empresário Bill Browder, cliente de Magnitsky, que liderou uma campanha junto ao Congresso dos Estados Unidos por justiça e responsabilização dos envolvidos1 2.

A indignação gerada pelo caso levou à aprovação da “Russia and Moldova Jackson–Vanik Repeal and Sergei Magnitsky Rule of Law Accountability Act” em 2012 pelo Congresso norte-americano, uma legislação inicialmente voltada para sanções específicas contra autoridades russas ligadas à morte do advogado. Em 2016, o escopo foi ampliado para violações de direitos humanos e corrupção em escala global, resultando no “Global Magnitsky Human Rights Accountability Act”3 4 5.

Desde sua adoção nos EUA, diversos outros países, entre eles Canadá, Reino Unido, União Europeia e Austrália, implementaram legislações semelhantes, criando uma “rede Magnitsky” internacional com crescente impacto diplomático e regulatório5 6.


2. Fundamentos Jurídicos e Debate Doutrinário

2.1. Proteção internacional dos direitos humanos e combate à corrupção

O alicerce jurídico dos Magnitsky Acts reside na universalidade dos direitos humanos e no combate à corrupção internacional, reconhecendo que certas violações — como tortura, execuções extrajudiciais e grandes esquemas de corrupção — transcendem fronteiras e desafiam a ordem pública global. Tais princípios são consagrados em instrumentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e pactos multilaterais como a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção2 5.

Como observado por Russell (2021), a adoção de regimes Magnitsky reflete a ambição de reagir a crimes graves que não encontram repressão adequada no sistema doméstico dos estados envolvidos, atribuindo à sanção internacional um papel subsidiário e de incentivo à accountability universal5. Isso coincide com estudos empíricos recentes (Moiseienko, 2023) que demonstram o impacto das sanções como mecanismo de defesa de valores fundamentais em situações de ineficácia judicial local7 8 9.

2.2. Extraterritorialidade e tensões de soberania

Um dos aspectos mais debatidos dos Magnitsky Acts refere-se à sua natureza extraterritorial. A legislação autoriza a adoção de sanções mesmo quando os crimes foram cometidos fora da jurisdição do estado sancionador, fundada no interesse legítimo de reprimir condutas de “jus cogens” (normas imperativas de direito internacional)610 11 12 . O alcance prático dessas sanções se explica pelo papel central do sistema financeiro americano e pela predominância do dólar nas transações globais, o que efetivamente amplia o impacto para além das fronteiras nacionais dos Estados Unidos411 .

No entanto, há tensões notórias. O uso unilateral dessas medidas desafia o princípio da soberania estatal e da não intervenção, gerando resistências diplomáticas e questionamentos sobre o devido processo, especialmente quando se observa a ausência de condenação judicial transitada em julgado nos países de origem dos sancionados10 12 13. Adicionalmente, debates acadêmicos apontam o risco de aplicação seletiva e de instrumentalização diplomática dos mecanismos de sanção5 13.

2.3. Processo e critérios de inclusão

Os critérios para inclusão de indivíduos e entidades nas listas de sanções Magnitsky exigem a demonstração de fortes indícios e provas de envolvimento em violações graves ou corrupção sistêmica. Relatórios e guias técnicos destacam a necessidade de documentação clara, verificação da conduta, padrão de comportamento repetido e ausência de repressão efetiva pelo Judiciário local214. Em alguns países, regras específicas estabelecem a possibilidade de recurso administrativo, mas, na prática, a exclusão da lista é rara e demanda forte comprovação de mudança de conduta ou erro processual relevante4 5.


3. Aplicação Prática das Sanções Magnitsky

3.1. Sanções financeiras e restrições de acesso

A principal característica das sanções Magnitsky é o bloqueio de ativos financeiros sob jurisdição do país sancionador, o que abrange contas bancárias, propriedades, investimentos e participação societária em empresas. Nos EUA, o Departamento do Tesouro publica uma lista de “Specially Designated Nationals” (SDN), restringindo severamente a atuação econômica dos alvos, que passam a ser excluídos do sistema financeiro global — inclusive por efeito cascata decorrente das normas de compliance de bancos de outros países2457. É comum que bancos e empresas estrangeiras encerrem relações com sancionados pelo risco de sanções secundárias ou de exposição reputacional47 8.

Além disso, quem está na lista tem proibida a entrada no território do país sancionador, é alvo de cancelamento de vistos, perde acesso a plataformas digitais (Google, Apple, Amazon, Microsoft, Meta etc.) e vê restringida qualquer interação comercial com pessoas ou empresas do país responsável pela sanção4 7 15. Esses fatores configuram uma “morte financeira internacional”, segundo expressão de analistas e relatos de estudos empíricos457 8 .

3.2. Efeitos reputacionais e políticos

A repercussão das sanções ultrapassa o âmbito econômico. Ser listado como sancionado em regime Magnitsky representa exclusão institucional, social e política em escala internacional. Parceiros de negócio, consultorias e fornecedores evitam qualquer associação com o alvo, o que pode levar à dissolução de estruturas empresariais, perdas de capital político e destruição de redes de influência previamente estabelecidas7 8 16. O impacto é agravado pela divulgação pública dos nomes sancionados e pelo crescente alinhamento de legislações Magnitsky em diferentes jurisdições, reduzindo as alternativas para evasão das restrições4 5 6.

3.3 Casos paradigmáticos e estudos de caso

A adoção e aplicação prática da Lei Magnitsky e equivalentes globais já produziu resultados emblemáticos, documentados em literatura e relatórios acadêmicos internacionais:

  • Myanmar: Após o massacre contra minorias Rohingya, líderes militares tiveram bens congelados, acesso negado a sistemas financeiros e forte isolamento internacional5 4 15.

  • China: Sanções sobre altos funcionários ligados à repressão dos Uigures em Xinjiang, com impactos imediatos sobre patrimônio, transações e mobilidade internacional, incluindo figuras como Chen Quanguo, ex-secretário do Partido Comunista da região416.

  • Arábia Saudita: Indivíduos vinculados ao assassinato do jornalista Jamal Khashoggi sofreram congelamento de ativos e exclusão de serviços nos Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido e Canadá, com consequências políticas e diplomáticas substanciais5 16.

Diversas pesquisas recentes sugerem que, embora nem sempre haja reversão completa do comportamento dos regimes ou a punição judicial de alto escalão, o impacto cumulativo das sanções tende a reduzir o acesso a recursos ilícitos, incapacitar redes ligadas à corrupção e isolar politicamente os infratores7 8 9 16.


4. Limites e críticas: debates atuais

Enquanto os Magnitsky Acts são celebrados por sua inovação e efetividade, parte da doutrina especializada e de organismos não governamentais alerta para riscos e limitações inerentes ao modelo. Kerr e Sexton (2022) afirmam que tais sanções podem ser “ilusórias” se usadas de modo politicamente seletivo ou sem transparência, e que o devido processo jurídico dos sancionados deve ser rigorosamente preservado para garantir legitimidade e evitar violações de direitos humanos na própria aplicação da medida13 17 18. Há registros de resistência diplomática, retaliação estatal (caso da Rússia e da China) e desafios quanto à efetividade na indução de reformas institucionais profundas em estados autoritários513 16.

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Também existem questionamentos sobre a compatibilidade entre a execução unilateral dessas medidas e princípios fundamentais do direito internacional, sobretudo no tocante à proteção do devido processo, do contraditório e da presunção de inocência610 12 18. A jurisprudência permanece em evolução, especialmente à medida que tribunais nacionais e entidades multilaterais são chamados a examinar a legalidade e os limites das sanções Magnitsky em casos concretos 1819.


5. Conclusão

A Lei Magnitsky e seus equivalentes globais sintetizam a busca por responsabilização efetiva em um cenário internacional marcado pela impunidade de violações graves e corrupção sistêmica. Fundadas em princípios jurídicos internacionalmente reconhecidos, mas também fonte de intenso debate doutrinário, tais legislações representam um novo paradigma de enforcement financeiro, político e social que desafia fronteiras e amplia ferramentas de combate à impunidade.

A literatura acadêmica e os relatórios jornalísticos internacionais convergem ao apontar que as sanções Magnitsky impõem restrições severas, especialmente nas dimensões financeira, de mobilidade internacional e reputacional, enquanto alavancam pressões diplomáticas de envergadura inédita. Ao mesmo tempo, a consolidação do modelo exige aprimoramentos de transparência, proporcionalidade, respeito ao devido processo e padronização de critérios, para que o instrumento mantenha sua legitimidade e impacto positivo no enfrentamento aos piores crimes internacionais.


Referências

1 https://en.wikipedia.org/wiki/Magnitsky_Act

2 https://www.everycrsreport.com/files/2024-11-07_IF10576_71b270fa49773e47166cbcb00dcdbab0756ae3bf.html

3 https://www.congress.gov/crs-product/IF10576

4 https://www.sanctions.io/blog/global-magnitsky-sanctions

5 https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2021/698791/EPRS_BRI(2021)698791_EN.pdf

6 https://tile.loc.gov/storage-services/service/ll/llglrd/2022666106/2022666106.pdf

7 https://law.anu.edu.au/news-and-events/news/making-sense-sanctions-anu-law-scholar-researches-impact-global-magnitsky-act

8 https://www.internationallawyersproject.org/post/a-journey-of-20-an-empirical-study-of-the-impact-of-magnitisky-corruption-sanctions

9 https://researchportalplus.anu.edu.au/en/publications/a-journey-of-20-an-empirical-study-of-the-impact-of-magnitsky-cor

10 https://dspace.cuni.cz/bitstream/handle/20.500.11956/184064/120452968.pdf?sequence=3&isAllowed=y

11 https://www.saudlaw.com/international-sanctions-extraterritorial-effects-of-foreign-sanctions/

12 https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/P-9-2021-003655_EN.docx

13 https://www.asser.nl/about-the-asser-institute/news/new-research-paper-magnitsky-sanctions-fail-to-serve-human-rights-or-security/

14 https://safeguarddefenders.com/sites/default/files/pdf/Fighting%20Impunity%20-%20A%20Guide%20on%20Magnitsky%20Act%20sanction%20-%20Spread%20edition.pdf

15 https://www.federalregister.gov/documents/2025/03/19/2025-04530/global-magnitsky-human-rights-accountability-act-annual-report

16 https://www.theregreview.org/2025/05/03/seminar-magnitsky-sanctions-and-global-accountability/

17 https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0165176524003732

18 https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2025/754474/EXPO_STU(2025)754474_EN.pdf

19 https://ehrac.org.uk/en_gb/key-ehrac-cases/magnitsky-others-v-russia/

20 https://www.congress.gov/bill/114th-congress/senate-bill/284/text

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Sobre o autor
Rodolfo José Andrello

Palestrante, escritor e servidor do Judiciário Federal (TRF3). Bacharel em direito com especialização em filosofia do direito. Bacharel em filosofia com especialização em ontologia e epistemologia. Possui M.B.A em economia e finanças.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRELLO, Rodolfo José. Lei Magnitsky: origem, fundamentos e aplicação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8065, 31 jul. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115062. Acesso em: 5 dez. 2025.

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