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Direito à morte digna: eutanásia e suicídio assistido no Brasil.

A omissão legislativa diante do direito à autodeterminação no fim da vida

11/08/2025 às 07:59

Resumo:


  • O Brasil enfrenta omissão legislativa diante da demanda por regulamentação da eutanásia e do suicídio assistido, ignorando avanços de outros países.

  • O ordenamento jurídico brasileiro ainda trata essas práticas com omissão ou criminalização, desconsiderando princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana.

  • A necessidade de debate democrático e reforma legislativa é defendida com base em fundamentos do biodireito, bioética e jurisprudência comparada, visando garantir direitos fundamentais no fim da vida.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A ausência de avanços sobre eutanásia e suicídio assistido perpetua o sofrimento e a insegurança jurídica. O Brasil pode negar o direito à morte digna por omissão legislativa?

Resumo: O presente artigo analisa criticamente a omissão legislativa brasileira diante da crescente demanda social por regulamentação da eutanásia e do suicídio assistido, práticas associadas ao direito à morte digna. Embora o Brasil se fundamente em princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e o direito à autodeterminação, o ordenamento jurídico ainda trata com omissão ou criminalização os atos de auxílio à morte, ignorando avanços significativos em países como Portugal, Espanha, Bélgica e Canadá. O artigo sustenta que o silêncio normativo compromete a efetividade dos direitos fundamentais no fim da vida, perpetuando sofrimento e insegurança jurídica. Parte-se de uma abordagem interdisciplinar, com base em fundamentos do biodireito, da bioética e da jurisprudência comparada, para defender a necessidade urgente de debate democrático e reforma legislativa.


O debate sobre a morte digna no Brasil ainda se mantém em uma zona de penumbra jurídica. Em um país que constitucionalmente consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III, da CF), causa estranheza que as demandas por eutanásia e suicídio assistido ainda sejam tratadas sob o véu da criminalização e do tabu moral, em vez de serem objeto de regulamentação clara e respeitosa às liberdades individuais. A ausência de legislação específica sobre o tema revela não apenas a omissão do legislador, mas a perpetuação de uma concepção biomédica e paternalista da vida, que ignora o sofrimento existencial e o direito à autonomia do sujeito em seus momentos finais.

O Código Penal Brasileiro, ainda de 1940, tipifica como crime tanto o homicídio piedoso (art. 121, §1º) quanto o auxílio ao suicídio (art. 122), desconsiderando a evolução dos direitos fundamentais, da medicina paliativa e da própria percepção social acerca da morte. A anacrônica rigidez normativa imposta por esse dispositivo afronta a ideia de autonomia privada, expressa inclusive no art. 5º, II, da Constituição, ao desrespeitar a liberdade individual de decidir sobre o próprio corpo e sobre o momento e as condições da própria morte.

Como aponta Maria Helena Diniz, “a dignidade humana é o núcleo axiológico dos direitos fundamentais e deve orientar todas as interpretações e aplicações do Direito” 1. Essa dignidade, quando levada a sério, deve incluir o direito de morrer com respeito, livre de dores insuportáveis e em consonância com os próprios valores existenciais.

Outros países vêm avançando nesse debate, promovendo reformas legislativas que buscam equilibrar a proteção à vida com a autodeterminação individual. Portugal legalizou a morte medicamente assistida em 2023, após amplo debate parlamentar e judicial 2. Espanha já o havia feito em 2021, assim como a Bélgica e os Países Baixos no início dos anos 2000. O Canadá, com a Medical Assistance in Dying Act (MAiD), adotou política pública de auxílio à morte respeitando critérios médicos e éticos rigorosos. Esses países não enfraqueceram a proteção à vida, mas sim fortaleceram a proteção à liberdade individual, reconhecendo que prolongar artificialmente o sofrimento não é vida digna – é tortura.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal já enfrentou questões próximas ao tema, como no julgamento da ADPF 54 3, que tratou da antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia. Ali, prevaleceu o entendimento de que a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a ausência de sofrimento são princípios que podem, sim, justificar o término da vida intrauterina incompatível com a sobrevida pós-parto. Da mesma forma, a Resolução nº 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina reconhece a validade das diretivas antecipadas de vontade, permitindo que pacientes expressem sua recusa a tratamentos fúteis ou desproporcionais 4.

Esses avanços pontuais demonstram que o sistema jurídico brasileiro já admite, ainda que timidamente, o direito de escolha sobre o fim da vida – mas falta-lhe a coragem normativa de reconhecer plenamente o direito à morte digna.

Como defende Luís Roberto Barroso, “a dignidade da pessoa humana deve ser compreendida como o direito de cada um de moldar a própria existência segundo seus valores e convicções” 5. Isso inclui o direito de não se submeter a tratamentos cruéis, de não viver à revelia de sua própria vontade e de, em última instância, decidir pelo fim da própria vida quando esta se tornar insuportável. A omissão legislativa, portanto, ao negar essa possibilidade, reduz o indivíduo a objeto de tutela estatal, violando o núcleo da autonomia privada 6.

A crítica ao ordenamento jurídico atual não ignora os riscos envolvidos na regulamentação da eutanásia ou do suicídio assistido – tais como abusos, pressões familiares ou falhas no diagnóstico 7. Contudo, é exatamente por isso que o tema precisa ser regulamentado: para oferecer critérios objetivos, controle judicial e garantia de que a decisão seja livre, consciente, informada e, acima de tudo, voluntária. O silêncio normativo apenas perpetua práticas clandestinas, desigualdades no acesso à morte digna e angústia para os profissionais de saúde e familiares envolvidos em tais decisões.

Urge, portanto, que o legislador brasileiro enfrente com responsabilidade e coragem esse tema. A morte, assim como a vida, é um evento essencialmente humano e inevitável, e negar ao indivíduo o direito de decidir sobre ela é subestimar sua humanidade. O avanço legislativo internacional mostra que é possível compatibilizar a proteção à vida com a proteção à liberdade individual. A omissão não protege a vida: protege o sofrimento. E o sofrimento imposto sem consentimento não é respeito à vida – é a sua negação.

Nesse cenário, a legislação brasileira precisa se libertar de preconceitos morais e dogmas religiosos que não podem, em um Estado laico e democrático de direito, servir como fundamento exclusivo da norma jurídica. O que se impõe é o reconhecimento do direito à autodeterminação existencial, inclusive no processo de morrer, com a regulamentação clara, segura e ética da eutanásia e do suicídio assistido, respeitando limites e garantias, mas também a liberdade de cada um viver – e morrer – com dignidade.

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Referências

1 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Constitucional. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

2 PORTUGAL. Lei n.º 22/2023, de 28 de maio. Regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal. Diário da República. Lisboa, 2023.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54. Rel. Min. Marco Aurélio. Brasília, DF, 2012. Disponível em: https://www.stf.jus.br/. Acesso em: 20 jul. 2025.

4 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995, de 9 de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 ago. 2012.

5 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

6 TORRES, Rodrigo da Cunha Pereira. Direito à morte digna: a eutanásia e o suicídio assistido como expressão da autonomia privada. In: ___. Famílias e o direito: novos paradigmas. Belo Horizonte: Del Rey, 2019.

7 VIEIRA, Fábio Ulhoa Coelho. Bioética, Direito e Morte Digna. Revista dos Tribunais, v. 905, p. 53-78, 2010.

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Sobre a autora
Rachel Reis Lana

Graduada em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ); Especializada em Direito Civil-Constitucional pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ); Mestre em Biodireito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LANA, Rachel Reis. Direito à morte digna: eutanásia e suicídio assistido no Brasil.: A omissão legislativa diante do direito à autodeterminação no fim da vida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8076, 11 ago. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115134. Acesso em: 5 dez. 2025.

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