Nos últimos dias, um vídeo publicado pelo influenciador Felca reacendeu uma discussão urgente, mas constantemente abafada, a “adultização” precoce das crianças e, ainda mais grave, a sua sexualização, muitas vezes incentivada por adultos e tratada com naturalidade nas redes. A repercussão foi imediata, intensa e incômoda. O vídeo não criou o problema, apenas escancarou o que muitos já vinham fingindo não ver.
A infância, como afirmava Rousseau, é um tempo legítimo do não saber, um estágio em que a criança tem o direito de não entender o mundo adulto, suas pressões, suas vaidades e suas perversões. Quando expomos crianças à lógica da estética sexualizada, da sensualidade precoce, das dinâmicas de validação social, curtidas, seguidores, comentários, estamos acelerando um processo de destruição subjetiva. Walter Benjamin já dizia que o mundo moderno rouba da experiência sua profundidade, e a adultização é isso, um sequestro da infância e um empobrecimento da identidade. A criança deixa de brincar para performar, de existir para agradar.
Do ponto de vista jurídico, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, é inequívoco, toda criança é sujeito de direitos em desenvolvimento e, por isso, deve ser protegida com prioridade absoluta. Expor uma criança à lógica da erotização, seja por roupas, falas, danças ou redes sociais, pode configurar, em certas situações, crime previsto em lei. Mais do que isso, há um conceito jurídico ignorado por muitos, o da revitimização simbólica, quando o dano psicológico ou moral é reforçado por práticas contínuas de exposição, pressão ou negligência. A omissão também é uma forma de violência.
O mais perverso é que esse processo é tratado como natural, ou pior, como conteúdo. Crianças são transformadas em produtos. Há quem ganhe dinheiro com isso. Há quem consuma isso. E há quem aplauda. O que era para ser proteção virou vitrine, o que era para ser cuidado virou entretenimento, o que era para ser infância virou palco.
Vivemos em uma era em que os limites entre o privado e o público foram diluídos, e a infância passou a ser explorada como vitrine da vaidade adulta. Pais, influenciadores, marcas e plataformas alimentam um ciclo perverso onde a exposição precoce é recompensada com engajamento, visibilidade e lucro. Mas por trás de cada vídeo viral, de cada criança ensinada a dançar de forma insinuante ou a se vestir como miniadulto, há um grito silencioso por proteção que ninguém escuta. Estamos ensinando uma geração inteira que o valor está na aparência, que a validação vem de olhares externos e que crescer é um jogo de agradar adultos, mesmo que à custa da própria integridade. É uma fábrica de feridas emocionais que ainda serão sentidas por décadas.
A questão não é um vídeo, não é um nome, não é um caso isolado. O que estamos presenciando é um fenômeno profundo, estrutural, doente. Não estamos diante de exageros conservadores ou de histeria moral. Estamos diante de um crime social que normaliza a perversão, incentiva a exposição e assassina a infância em silêncio.
E não se engane, isso é só a ponta do iceberg. O buraco é muito, muito mais embaixo, e se continuarmos tratando essa destruição como normal, como conteúdo, como liberdade, estaremos simplesmente nos tornando cúmplices do fim de tudo aquilo que deveria ser intocável.