Em determinada localidade, um agente de trânsito lavrou diversos autos de notificação contra alguns desafetos. Aproveitando-se de pequenas infrações cometidas por esses condutores, como estacionar em local proibido ou não utilizar o cinto de segurança, o agente lavrou, a seu bel-prazer, autos de infrações severas. Para tanto, imputou recusa em se submeter ao teste do etilômetro e ultrapassagem pelo acostamento. Para agravar a situação, o agente não possuía competência para exercer seu poder de polícia naquela circunscrição.
Diante desse cenário, os autuados — embora efetivamente responsáveis por infrações de menor gravidade — interpuseram recursos contra as autuações ilegais. Contudo, o mesmo agente que lavrara os autos integrava também a junta responsável pelo julgamento dos recursos, sendo notório que seus pares raramente ousavam contestá-lo. Assim, o indeferimento era a regra, e, para a opinião pública, aqueles indivíduos passaram a ser vistos como infratores contumazes.
Frente a tamanha injustiça, cidadãos iniciaram uma campanha pela anistia dessas autuações, contando com o apoio de parte da população, de algumas autoridades e de poucos veículos de imprensa. Vozes isoladas, entretanto, defendiam que a medida correta seria o cancelamento das autuações abusivas, sem obter maior êxito na mobilização.
É fundamental estabelecer a diferença entre anistia e cancelamento. A anistia pressupõe o reconhecimento de que o ato era legal e válido, mas que, por razões de conveniência, oportunidade ou clemência, o Estado opta por afastar seus efeitos punitivos. Já o cancelamento decorre da constatação de que o ato é nulo de pleno direito, por ter sido praticado em desacordo com a legislação vigente, sendo, portanto, inexistente em sua essência jurídica.
No caso em análise, trata-se de autuações manifestamente ilegais, que não produzem efeitos válidos no mundo jurídico. Falar em anistia nesse contexto seria conferir aparência de legalidade a atos nulos, o que afronta princípios constitucionais como o da legalidade, do devido processo legal e da moralidade administrativa.
O correto é determinar o cancelamento das autuações, com base na nulidade do procedimento originário. Tal medida preserva o direito dos condutores lesados, reforça a responsabilidade da Administração Pública e impede a consolidação de práticas ilegais sob o manto da conveniência administrativa.
Dessa forma, deve-se rejeitar a tese da anistia e promover, com fundamento no princípio da autotutela administrativa, o imediato cancelamento das autuações irregulares. Tal providência não apenas corrige uma injustiça, mas reafirma o compromisso do poder público com a legalidade e a proteção dos direitos dos cidadãos.
E assim termina esta fábula, que, embora ambientada no trânsito, não trata de trânsito. Trata, isto sim, de como o abuso de poder, quando não enfrentado, pode travestir-se de justiça — e de como chamar de “anistia” o que deve ser cancelado é apenas mais uma forma de perpetuar a ilegalidade.