Introdução
A crise diplomática entre Brasil e Estados Unidos, centrada na figura do encarregado de negócios Gabriel Escobar, nos coloca diante de um dilema que vai muito além da política. A pergunta "Expulsar, ou não expulsar?" nos leva ao coração do direito internacional e da soberania nacional, desafiando o Brasil a equilibrar uma resposta firme à ingerência externa com o pragmatismo da manutenção de uma relação estratégica crucial.
Este relatório mergulha nas nuances legais e diplomáticas do caso, analisando se a declaração de persona non grata é a medida mais acertada. Embora a lei esteja do lado do Brasil, a análise sugere que a prudência diplomática e a contenção estratégica podem ser o caminho mais inteligente, evitando uma escalada que parece ser, ironicamente, o objetivo da administração americana.
O Jogo Jurídico: O Poder de Declarar Persona Non Grata
Quando falamos em diplomacia, existem regras claras que regem a conduta dos países. A expulsão de um diplomata não é um capricho, mas um ato soberano, legalmente fundamentado na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961.
A joia da coroa dessa prerrogativa está no seu Artigo 9º, que é bastante direto: um país pode, a qualquer momento e sem precisar dar uma justificativa, notificar o outro de que um diplomata é considerado persona non grata. Essa é uma das normas mais antigas e incontestadas do direito diplomático, um reflexo claro do direito de cada Estado de decidir quem o representa em seu território 1.
Embora a conduta de Gabriel Escobar e da embaixada americana não se encaixe nos casos clássicos de espionagem, as repetidas declarações e ameaças contra autoridades judiciais brasileiras podem ser (e têm sido) interpretadas como "atividades incompatíveis com a função diplomática". Essa interpretação, por si só, já oferece ao Brasil uma base sólida para agir, caso decida seguir esse caminho.
A diplomacia brasileira tem utilizado essa prerrogativa legal para expressar sua "profunda indignação" com o "tom e o conteúdo das postagens" 2. O governo, por meio do Itamaraty, manifestou "total rejeição às repetidas interferências do governo norte-americano nos assuntos internos do Brasil" 3, classificando as ações como "ataque frontal à soberania brasileira" 4.
A Lei Magnitsky: A “Espada” Legal dos EUA
Um dos elementos mais intrigantes dessa crise é o uso da Lei Magnitsky como justificativa para a intervenção americana. A Lei, criada em 2012 para sancionar os responsáveis pela morte do advogado russo Sergei Magnitsky, permite que os EUA imponham sanções econômicas a indivíduos acusados de corrupção ou de graves violações de direitos humanos.
Ao aplicar essa lei ao Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, e ameaçar estendê-la a outros membros do Judiciário brasileiro, o governo americano tenta transformar uma disputa judicial interna em uma suposta questão de direitos humanos, uma tática de guerra de narrativas para justificar sua interferência e minar a legitimidade das instituições brasileiras 5.
A Embaixada dos EUA, inclusive, republicou uma declaração de um alto funcionário da Casa Branca, Darren Beattie, afirmando que Moraes é o "principal arquiteto da censura e perseguição contra Bolsonaro e seus apoiadores" 5. A publicação continha uma ameaça clara, avisando que "aliados de Moraes no Judiciário e em outras esferas estão avisados para não apoiar nem facilitar a conduta de Moraes" e que o governo dos EUA estava "monitorando a situação de perto" 5.
Essa postura unilateral e intervencionista, utilizando ferramentas legais americanas para influenciar o sistema jurídico brasileiro, é a essência da violação do direito internacional que o Brasil contesta.
Precedentes e Casos Semelhantes
A diplomacia, por mais única que cada crise seja, tem seus precedentes. Dois casos recentes ajudam a contextualizar o dilema brasileiro.
O primeiro é a expulsão de diplomatas russos na Europa em 2022. Após a divulgação de imagens do massacre de civis na Ucrânia, vários países europeus expulsaram diplomatas russos sob a justificativa de que suas atividades eram "incompatíveis com seu status diplomático". Embora o porta-voz do Kremlin tenha criticado a decisão, classificando-a como um "movimento míope", o caso mostra que a expulsão é uma ferramenta válida para expressar descontentamento.
O segundo é a crise entre Equador e México em abril de 2024. A polícia equatoriana invadiu a embaixada mexicana em Quito para prender o ex-vice-presidente Jorge Glas, que havia recebido asilo político 7. O México respondeu imediatamente com o rompimento de relações, classificando a ação como "um ato autoritário" e uma "violação flagrante do direito internacional e da soberania mexicana".
A diferença é crucial: enquanto o caso Equador-México foi uma violação física e inequívoca da inviolabilidade de uma embaixada, a crise atual é de natureza verbal e digital. Isso dá ao Brasil uma margem de manobra maior para uma resposta não-explosiva, que pode ser tanto uma força quanto uma fraqueza.
Tabela 1: Análise Comparativa de Precedentes Diplomáticos
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Crise |
Natureza da Violação |
Resposta Diplomática |
Consequências |
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Brasil-EUA |
Ingerência política, ameaças sancionatórias, violação da soberania nacional. |
Convocação reiterada do diplomata, manifestação de "indignação profunda". |
Tensão crescente, risco de sanções e rompimento. |
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Rússia-Europa |
Espionagem e "atividades incompatíveis com status diplomático". |
Expulsões em massa de diplomatas. |
Retaliações recíprocas, complicações na comunicação. |
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Equador-México |
Invasão física da embaixada para prender asilado político. |
Rompimento imediato das relações diplomáticas. |
Condenação da OEA, ação na Corte de Haia. |
A Decisão Estratégica: Razão vs. Reação
A decisão de expulsar Gabriel Escobar é um ato legal e um forte sinal político, mas também um movimento estratégico de alto risco. A análise estratégica, especialmente a feita por Luís Nassif, sugere que a administração Trump pode estar buscando justamente uma resposta drástica do Brasil para justificar uma escalada ainda maior 6.
A expulsão de Escobar poderia ser a desculpa perfeita para um rompimento total de relações, com consequências severas para o Brasil, como sanções econômicas, interrupção de acordos militares e de inteligência, e paralisação de programas de cooperação em áreas vitais como tecnologia e agronegócio.
A alternativa – não expulsar o diplomata – não significa fraqueza, mas sim pragmatismo. É a decisão de manter um canal de comunicação aberto, mesmo que indesejado, para controlar a crise e evitar um rompimento que traria prejuízos sistêmicos para a economia e a segurança nacionais 8.
A matriz de cenários a seguir deixa claro que a expulsão, apesar de ser um ato legal e simbólico de soberania, carrega um risco desproporcional.
Tabela 2: Matriz de Cenários: Expulsão vs. Não Expulsão
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Critério de Avaliação |
Cenário A: Expulsão |
Cenário B: Não Expulsão |
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Afirmação de Soberania |
Alta (ato simbólico forte) |
Média (gestão da crise sem ruptura) |
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Risco de Escalada |
Muito Alto (potencial de rompimento) |
Baixo (contém a crise) |
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Impacto Econômico |
Muito Negativo (sanções, tarifas) |
Neutro a Negativo (depende de outras ações dos EUA) |
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Preservação de Canais |
Nula (ruptura ou rebaixamento de canais) |
Mantida (permite a gestão formal) |
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Apoio Multilateral |
Pode ser visto como escalada desnecessária |
Favorece o Brasil como ator prudente |
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Análise Estratégica |
Reação emocional, potencialmente autodestrutiva |
Pragmatismo, foco em interesses de longo prazo |
Conclusão e Recomendações
O Brasil tem todo o direito, amparado pela Convenção de Viena, de declarar Gabriel Escobar como persona non grata. Mas o fato de ter o direito não significa que seja a melhor jogada. A crise é uma ofensiva calculada da administração americana, e a expulsão pode ser a armadilha que o Brasil precisa evitar.
A resposta mais estratégica é uma de contenção firme. O Brasil deve continuar a utilizar todos os canais diplomáticos para manifestar sua indignação, enquanto se prepara para um cenário de escalada unilateral. Isso significa buscar apoio em fóruns multilaterais, como a OEA e o BRICS, e elaborar planos de contingência detalhados para proteger a economia e a segurança nacionais.
A verdadeira força do Brasil não está em uma reação explosiva, mas na sua capacidade de defender a sua soberania com maturidade e de forma estratégica, protegendo seus interesses de longo prazo, sem cair em provocações.
Referências citadas
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Persona Non Grata - Oxford Public International Law, agosto 2025, https://opil.ouplaw.com/display/10.1093/law:epil/9780199231690/law-9780199231690-e974
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Itamaraty chama encarregado da Embaixada dos Estados Unidos para novos esclarecimentos após nota com ameaças a ministros - Rádio Pampa, agosto 2025, https://www.radiopampa.com.br/itamaraty-chama-encarregado-da-embaixada-dos-estados-unidos-para-novos-esclarecimentos-apos-nota-com-ameacas-a-ministros/
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Governo brasileiro acusa Estados Unidos de "novo ataque frontal à..., agosto 2025, https://www.dnoticias.pt/2025/8/10/459111-governo-brasileiro-acusa-estados-unidos-de-novo-ataque-frontal-a-soberania-do-pais/
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Chargé d'Affaires, a.i. Gabriel Escobar - Portuguese - Embaixada e Consulados dos EUA no Brasil, agosto 2025, https://br.usembassy.gov/pt/charge-daffaires-gabriel-escobar-portuguese/
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Itamaraty convoca encarregado da embaixada dos EUA após novas..., agosto 2025, https://veja.abril.com.br/mundo/itamaraty-convoca-encarregado-da-embaixada-dos-eua-apos-novas-ameacas-ao-stf/
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Embaixada americana reforça críticas de Trump ao STF | WW - YouTube, agosto 2025, https://www.youtube.com/watch?v=K6ZxNAgirJE
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México rompe relações diplomáticas com o Equador - Planeta, agosto 2025, https://revistaplaneta.com.br/mexico-rompe-relacoes-diplomaticas-com-o-equador
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EUA busca romper relações diplomáticas com o Brasil em nova crise internacional, agosto 2025, https://www.portaltela.com/noticias/politica/2025/08/11/eua-busca-romper-relacoes-diplomaticas-com-o-brasil-em-nova-crise-internacional