A controvérsia sobre a vinculação das unidades técnico-científicas à Polícia Civil ganhou novo capítulo com a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis (Lei nº 14.735/2023).
O art. 151 mantém em aberto a possibilidade de que as unidades técnico-científicas não integrem os quadros da Polícia Civil. Essa sanha em prol da exaltação de uma separação baseada em anacronismo e no politicamente correto tem início no art. 6º, inciso IV, da lei sob comento, no qual já se evidencia a perda da oportunidade de pôr fim a essa divisão absurda. Ali já se fazia referência à possibilidade de que as unidades técnico-científicas estivessem ou não nos quadros da Polícia Civil, estimulando o erro perpetrado por alguns entes federativos.
A Lei Orgânica Nacional estabelece que a organização e a execução da atividade de perícia oficial (criminalística e médico-legal) cabem às Polícias Civis, devendo ser dirigidas, portanto, por um Delegado de Polícia.
Acontece que várias unidades federativas promoveram a separação, a nosso ver indevida, entre os órgãos de perícia (Instituto de Criminalística e IML) e a Polícia Civil, criando Superintendências de Polícia Científica independentes. Essas criações são fruto de nada mais do que um anacronismo. Trata-se do retorno a um período histórico em que várias instituições — e não só a Polícia Civil — foram instrumentalizadas em prol de um regime autoritário. Fosse assim, deveria haver a extinção das Forças Armadas, do Ministério Público, do Judiciário, da própria Polícia Científica, da Polícia Militar etc., criando-se, em seus lugares, outras instituições — na verdade, as mesmas com outros nomes —, já que o nominalismo mágico é a marca registrada desses tempos politicamente corretos.
A separação entre a Polícia Civil e os órgãos de perícia tem gerado conflitos e uma administração incompatível com as necessidades de urgência e de ininterrupção dos atendimentos. Um exemplo é o caso do Instituto de Criminalística de São Paulo, que editou norma determinando que os peritos não devem atender locais de furto qualificado durante a noite, como se ainda vivêssemos em séculos nos quais não havia energia elétrica ou lanternas. Trata-se de mera comodidade, sem qualquer consideração pelas vítimas que permanecem noites inteiras com as casas arrombadas e sob a determinação de não alterarem o local — o que, compreensivelmente, não é respeitado. Como consequência, perdem-se provas e indícios. Esse exemplo ilustra o desgoverno que decorre da indevida separação da perícia, a qual deve ajustar-se às necessidades da investigação, e não o contrário.
Ocorre que a Lei Orgânica Nacional, para respeitar essas medidas simbólicas e anacrônicas adotadas por algumas unidades federativas, em nome da autonomia estadual e distrital, manteve de forma extremamente frágil a regra da união entre a Polícia Civil e os órgãos periciais, mas deixou em aberto a possibilidade de que, nos Estados em que a separação já tenha sido implementada, esta seja mantida. É o que se depreende tanto da disposição do art. 6º, inciso IV, quanto do art. 15, que trata especificamente das unidades técnico-científicas.
O correto seria pôr cobro a esse equívoco, estabelecendo uma regra geral para o país e obrigando as unidades federadas a rever seus posicionamentos. Não foi, contudo, esse o caminho escolhido pelo legislador. Assim, caberá a cada unidade federativa deliberar pela manutenção ou não da separação, já que a lei federal não impõe sua adoção. Ao contrário, estabelece uma regra e prevê uma condição excepcional. Não obstante, infelizmente, como se verá, o mais provável é que a separação seja reforçada.
Cumpre notar que o art. 15, caput, determina que a indicação dos chefes das unidades técnico-científicas caberá ao Delegado-Geral de Polícia, mas apenas quando o órgão central de perícia oficial estiver integrado à estrutura da Polícia Civil. Caso contrário, certamente se seguirão os modelos de superintendências independentes, subordinadas diretamente às Secretarias de Segurança Pública, hipótese em que a nomeação das chefias competirá ao respectivo Secretário de Segurança Pública.
Essas unidades técnico-científicas, estabelecidas pela lei em rol não taxativo e responsáveis pela perícia oficial criminal (§ 1º do art. 15), são as seguintes:
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I – Instituto de Criminalística;
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II – Instituto de Medicina Legal; e
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III – Instituto de Identificação.
A coordenação do Instituto de Criminalística, do Instituto de Medicina Legal e do Instituto de Identificação, de acordo com o § 2º do art. 15, cabe a peritos oficiais criminais das respectivas áreas que estejam na ativa e ocupem a classe mais elevada da carreira. Isso significa que, mesmo quando a estrutura da Polícia Civil abrange as unidades técnico-científicas, as chefias ou coordenações — cargos de direção — deverão recair sobre peritos e não sobre delegados. Trata-se de grave problema, pois, se um órgão integra a estrutura da Polícia Civil, somente pode ser dirigido por delegados de polícia de carreira (inteligência do art. 144, § 4º, da CF). A inconstitucionalidade patente dessa situação praticamente força as unidades federativas a procederem à separação entre os órgãos técnico-científicos e a Polícia Civil.
Quanto ao Departamento de Identificação Civil, observa-se que, embora a lei disponha que o Delegado-Geral deve nomear um policial civil para sua coordenação, essa nomeação é constitucionalmente vinculada, somente podendo recair sobre delegado de polícia de carreira, exatamente nos termos do art. 144, § 4º, da CF, combinado com o art. 12, § 4º, da Lei nº 14.735/2023.
Pode, nesse ponto, surgir aparente contradição entre o disposto no art. 12, § 4º, e o art. 15, inciso III e § 2º, da Lei Orgânica Nacional. No primeiro dispositivo, a lei se refere a “policial civil” (leia-se, delegado de polícia); no segundo, a perito oficial criminal. Contudo, não há contradição quanto ao órgão de identificação.
Há que se diferenciar o Departamento de Identificação Civil do Instituto de Identificação.
A distinção entre ambos encontra-se, sobretudo, em sua amplitude e em suas funções no âmbito da segurança pública. O Departamento de Identificação Civil tem a atribuição de realizar a identificação civil das pessoas, expedir documentos de identidade (v.g., RG) e gerenciar o cadastro civil, compondo as unidades de execução da Polícia Civil. Por sua vez, o Instituto de Identificação é uma unidade da Polícia Civil ou autônoma — unidade técnico-científica — cuja finalidade é a identificação criminal, abrangendo a análise de vestígios, a coleta de impressões digitais e a elaboração de laudos periciais para auxiliar nas investigações criminais.
Portanto, enquanto o Departamento de Identificação Civil é um órgão eminentemente administrativo e necessariamente vinculado à estrutura da Polícia Civil, o Instituto de Identificação é uma unidade técnico-científica voltada especificamente para a identificação criminal, que pode ou não integrar a estrutura da Polícia Civil. Essa diferença enseja a possibilidade de que as regras sobre sua direção variem na legislação.
Em Estados como São Paulo, em que o Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD) abarca tanto as atividades de identificação civil quanto as de identificação criminal, deverá haver uma separação para adequação à legislação federal.
Todas essas dificuldades poderiam ser evitadas se a Lei Orgânica Nacional tivesse imposto a obrigatória incorporação das unidades técnico-científicas à estrutura da Polícia Civil, com direção exercida por delegados de polícia. No entanto, não o fez, cedendo ao anacronismo e ao politicamente correto. A tendência, portanto, é que a separação se consolide, inclusive nas unidades federativas em que ainda não ocorreu.
Tanto é assim que, já em seu § 3º do art. 15, a Lei Orgânica Nacional evidencia que as Polícias Civis, em regra, serão distintas das unidades técnico-científicas, estabelecendo que, quando assim for, poderão ter acesso a seus bancos de dados apenas mediante “requisição fundamentada”. Nada mais óbvio: se fossem órgãos integrantes da estrutura da Polícia Civil, qualquer acesso a dados seria direto e imediato, o que, aliás, representaria medida de extrema relevância para a agilização e a eficácia das investigações criminais.
Nota
1 Art. 15. Constituem unidades técnico-científicas da polícia civil as unidades responsáveis pela perícia oficial criminal, nos casos em que o órgão central de perícia oficial de natureza criminal estiver integrado em sua estrutura, cujos chefes devem ser designados pelo Delegado-Geral de Polícia Civil, dentre outras:
I - Instituto de Criminalística;
II - Instituto de Medicina Legal; e
III - Instituto de Identificação.
§ 1º As unidades técnico-científicas são responsáveis pelas atividades de perícia oficial de natureza criminal e técnico-científicas relativas às ciências forenses.
§ 2º Os Institutos de Criminalística, de Medicina Legal e de Identificação devem ser coordenados por peritos oficiais criminais das respectivas áreas que estejam na ativa e sejam da classe mais elevada.
§ 3º Fica garantido, mediante requisição fundamentada, o livre acesso das polícias civis aos bancos de dados de unidades técnico-científicas não integradas à instituição.