Introdução
A democracia brasileira é frequentemente celebrada como expressão máxima da soberania popular. No entanto, ao analisar criticamente seus mecanismos internos, especialmente no que concerne à formação dos partidos políticos e à seleção dos candidatos que chegam ao eleitorado, percebe-se a existência de uma democracia “velada” ou “maquiada”. Isto porque, embora o voto seja obrigatório e aparentemente expresse a vontade do povo, na realidade os cidadãos são colocados diante de escolhas previamente determinadas por estruturas partidárias internas, muitas vezes alheias ao interesse coletivo.
Essa análise busca expor como a democracia representativa brasileira é tensionada pela lógica de dominação partidária, em que a vontade popular se manifesta apenas na superfície, mas cujo fundo é determinado por conveniências, alianças políticas e manutenção de poder.
1. A formação dos partidos políticos e a ausência da vontade popular
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 17, assegura a liberdade de criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, observando princípios como o caráter nacional, a defesa do regime democrático e o respeito aos direitos fundamentais. Contudo, na prática, os partidos se transformaram em organizações burocráticas e hierarquizadas, distantes da participação popular em suas instâncias decisórias.
A democracia interna partidária, que deveria garantir a participação dos filiados na escolha de dirigentes e candidatos, muitas vezes é substituída por acordos de cúpula, em que lideranças partidárias selecionam nomes conforme interesses estratégicos e pessoais, impondo-os ao eleitorado. Dessa forma, o cidadão não influencia a formação inicial da candidatura, apenas é convocado a referendar o que já foi decidido.
2. O processo de escolha de candidatos: uma democracia dirigida
Ao chegar o período eleitoral, os eleitores têm a impressão de participar plenamente da democracia ao depositarem seu voto. Todavia, a escolha real já ocorreu dentro dos partidos, quando se definiram os candidatos que seriam apresentados.
Esse mecanismo cria uma democracia dirigida, em que o povo exerce apenas uma parte do poder soberano, limitado a escolher entre opções previamente filtradas pelas elites partidárias. Assim, a democracia se torna uma formalidade: o cidadão cumpre sua obrigação de votar (art. 14, §1º, I, CF/88), mas não exerce de fato sua autonomia na definição de quem pode ou não representar seus interesses.
3. O mandato: do povo ou do partido?
Outra questão crítica é a titularidade do mandato. O Supremo Tribunal Federal, em sua jurisprudência consolidada, firmou o entendimento de que o mandato pertence ao partido político e não ao candidato eleito individualmente, o que ficou especialmente claro em julgamentos sobre a fidelidade partidária.
Esse entendimento significa que o parlamentar, mesmo tendo sido votado pelo eleitor, está juridicamente vinculado ao partido que o lançou. Caso decida adotar postura independente em relação às diretrizes partidárias, pode sofrer sanções, inclusive a perda de mandato ou ameaça de expulsão.
Fato recente, ainda que sem necessidade de citação nominal, ilustra esse dilema: um ministro de Estado, ao divergir da posição de seu partido por convicções próprias, foi pressionado com ameaça de expulsão. Esse episódio revela a contradição da democracia brasileira: o representante, eleito pelo voto popular, não possui plena autonomia para decidir conforme seu íntimo convencimento, mas sim deve atuar como “ponta de lança” da máquina partidária.
4. Doutrina
A crítica à democracia representativa não é nova. José Afonso da Silva, em sua clássica obra Curso de Direito Constitucional Positivo, aponta que a democracia só se concretiza quando há efetiva participação popular nas decisões políticas, e não apenas na escolha formal de representantes.
Norberto Bobbio, em O Futuro da Democracia, ressalta que o risco da democracia moderna é se reduzir a procedimentos, afastando-se da substância da participação e da soberania popular.
Dalmo Dallari, em Elementos de Teoria Geral do Estado, observa que a democracia exige transparência e mecanismos de controle popular sobre as instituições, sob pena de se transformar em uma forma de dominação política disfarçada.
5. Jurisprudência relevante
O STF já decidiu que o mandato eletivo, nas eleições proporcionais, pertence ao partido e não ao candidato individualmente, fundamentando a chamada fidelidade partidária. Isso reforça a crítica de que o eleitor vota em um nome, mas esse nome não tem plena autonomia política.
O TSE também consolidou que a desfiliação sem justa causa acarreta a perda do mandato, reafirmando o poder partidário sobre os representantes eleitos.
Esses precedentes ilustram a tensão entre a soberania popular e a hegemonia partidária.
6. Legislação aplicável
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Constituição Federal (1988):
Art. 1º, parágrafo único – “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
Art. 14. – dispõe sobre a soberania popular por meio do sufrágio universal e do voto direto e secreto, com valor igual para todos.
Art. 17. – regulamenta a criação e funcionamento dos partidos políticos.
Lei nº 9.096/1995 (Lei dos Partidos Políticos): disciplina a organização, funcionamento e fidelidade partidária.
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Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965): regula as eleições, reforçando o papel central dos partidos políticos como instrumentos de representação.
7. Reflexão final: democracia real ou manipulação velada?
O cenário exposto leva à reflexão: o eleitor realmente escolhe seus representantes de forma livre e democrática, ou apenas ratifica opções previamente estabelecidas por grupos de interesse?
Se a democracia significa governo do povo, pelo povo e para o povo, como sustentar que ela se realiza plenamente em um modelo em que a vontade popular é reduzida a uma escolha restrita, previamente filtrada e condicionada por estruturas partidárias internas?
A verdadeira democracia exige transparência, participação popular efetiva e autonomia dos representantes eleitos. Sem isso, o que temos é uma democracia maquiada, na qual o povo cumpre formalmente sua função de votar, mas permanece afastado das decisões cruciais sobre quem o representará e como esse representante poderá agir.
Conclusão
A democracia brasileira, sob o prisma aqui analisado, é um paradoxo: ao mesmo tempo em que assegura ao povo o direito de voto, nega-lhe o direito de influenciar a formação efetiva das candidaturas e limita a independência dos representantes eleitos.
Cabe, portanto, a todos — cidadãos, juristas, legisladores e estudiosos — refletir se a democracia que vivemos é autêntica ou se não passa de uma formalidade, uma fachada que encobre um sistema de manipulação política.
Somente com reformas estruturais, ampliando a participação popular nas instâncias partidárias e garantindo autonomia real aos representantes, será possível transformar essa democracia velada em uma democracia verdadeira.