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A compatibilidade internacional do Mercosul

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O trabalho verifica a compatibilidade do Tratado de Assunção com as regulamentações internacionais, verificando o que se modificou, o que restou intocado, e de que forma ocorrem as relações entre esse tratado e essas normativas.

Introdução

O propósito do presente trabalho é o de verificar a compatibilidade do Tratado de Assunção com as regulamentações internacionais pertinentes. Quando este tratado entrou em vigor, havia uma série de normas que incidiam sobre os mesmos conteúdos, ou, ainda, sobre matérias relacionadas. Procura determinar-se, pois, o que o Tratado de Assunção modificou, o que restou intocado, e de que forma ocorrem as relações entre esse tratado e essas normativas.

Compatibilidade jurídica significa a coexistência simultânea de duas normas ou ordenamentos. Não é uma expressão técnica, mas se faz mister precisar a que se refere. Salientar a compatibilidade de duas disposições é dizer que estas duas medidas são válidas ao mesmo tempo e que, além disso, podem ser aplicadas em conjunto. Existem, pois, duas dimensões: uma de validade e outra de eficácia.

A primeira seção aborda o que pode ser vulgarmente chamado de a "compatibilidade do Tratado de Assunção com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados". De fato, esses termos não são apropriados. Considera-se a Convenção de Viena uma "meta-norma" do Direito Internacional que regula, de modo parcial, o regime aplicável a uma de suas fontes: o tratado. Argüir a nulidade de um tratado não é o mesmo que afirmar que ele não observa a Convenção de Viena, pois ela própria é que define as nulidades. Na eventualidade de não se circunscrever aos preceitos da Convenção – mesmo as disposições referentes a nulidades –, um tratado não é válido ou inválido; simplesmente, não é um tratado (ou é oral). O que se busca nesta primeira seção é compreender melhor a natureza mesma do Tratado de Assunção.

A segunda seção descreve, de forma breve e ilustrativa, os princípios gerais sobre cumulação e sucessão de tratados. Quando há a interpenetração de sucessivos tratados, ocorre o fenômeno da cumulação, e a analogia com o direito interno serve apenas para confundir o intérprete, mais do que esclarecer. Por isso, faz-se necessário averiguar as regras próprias do Direito Internacional sobre o assunto. As duas primeiras seções devem ser entendidas em conjunto, como preliminares às demais partes deste texto.

A seguir, inicia-se o propósito específico deste trabalho: procede-se ao exame de compatibilidade entre o Tratado de Assunção e os Acordos Bilaterais Brasil-Argentina anteriores a ele. A partir da década de 1980, os dois maiores países do cone sul deixaram de lado as desavenças e formalizaram acordos comerciais de cooperação e, até mesmo, de integração. Depois, Uruguai e Paraguai juntaram-se aos dois e celebraram o Tratado de Assunção. Entretanto, os compromissos bilaterais não foram denunciados.

A quarta seção propõe-se a analisar as relações entre o Tratado de Assunção e o Tratado de Montevidéu de 1980, que criou a Associação Latino-Americana de Integração. De modo diverso ao que dispunha sua antecessora, a ALADI apresenta-se como uma organização bem mais flexível, que comporta diferentes maneiras de atingir seu objetivo final, que é a integração latino-americana. O Mercosul revela-se uma dessas formas, e a relação que se estabelece entre ambas organizações é de gênero e espécie. A tarefa aqui é, portanto, dupla: de um lado, é necessário determinar se o Tratado de Assunção observou os requisitos que o Tratado de Montevidéu de 1980 impõe à sua modalidade; de outro, o intérprete deve aferir a existência de mecanismos no Tratado de Assunção que assegurem sua autonomia face ao tratado constitutivo da ALADI.

Por fim, a última parte deste trabalho dedica-se à compatibilidade entre o Tratado de Assunção e as disposições do GATT de 1947. Cuida-se de coordenar a existência de duas sistemáticas contrapostas: a do sistema mundial de comércio, baseado na não-discriminação, e a de um sistema regional, que, de maneira necessária, discrimina os países não participantes. A Organização Mundial do Comércio contém regras bastante detalhadas sobre acordos regionais – embora não isentas de vagueza e polissemia –, além de seu próprio mecanismo de verificação de compatibilidade, e o caso do Mercosul ainda está sob exame.

1 A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados

O primeiro documento a ser verificada a sua compatibilidade com o TA é a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969. A convenção, em vigor desde 27 de janeiro de 1980, foi ratificada pela Argentina, em 5 de dezembro de 1972, pelo Paraguai, em 3 de fevereiro do mesmo ano, e pelo Uruguai, em 5 de março de 1982, mas não foi ratificada pelo Brasil. Ela foi assinada por este País em 23 de maio de 1969, no dia em que a convenção foi aberta à assinatura, foi encaminhada ao Congresso Nacional, em 20 de abril de 1992, e aprovada 3 anos depois pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional; porém, até o momento, não obteve confirmação parlamentar. Ainda assim, a convenção é válida até mesmo para o Brasil, pois ela representa o trabalho final de codificação de um costume universal pré-existente, realizado pela Comissão de Direito Internacional da Assembléia Geral da ONU na sua tarefa de codificar e promover o desenvolvimento do Direito Internacional. O costume continua a existir, e a referida convenção nada mais é do que seu jus scriptum e constitui uma verdadeira meta-norma na regulação de tratados.

Ademais, a Convenção de Viena de 1969 não estipula nenhuma obrigação substancial, à exceção da inviolabilidade do jus cogens. Mesmo assim, deixa aberto o rol de comportamentos que possam ser considerados normas imperativas de Direito Internacional. Dessa forma, o trabalho de análise da compatibilidade do TA com a CV está vinculado a elementos meramente formais, os quais serão muito úteis também em outra seção, quando for aferida a permanência de obrigações assumidas em tratados bilaterais Brasil-Argentina anteriores ao TA. Além disso, o cotejo com a CV permite compreender melhor o próprio TA.

O TA regula sua própria vigência no art. 19. Ele entrou em vigor "30 dias após a data do depósito do terceiro instrumento de ratificação" [01], perante o Governo da República do Paraguai, o que ocorreu em 29 de novembro de 1991. O modo pelo qual os quatro países escolheram para manifestar o seu consentimento em se obrigar pelo TA encontra-se previsto no art. 16 da CV.

O mesmo art. 19 do TA prescreve sua duração indefinida. É, pois, um tratado definitivo. O fato de estabelecer um período de transição (da data de entrada em vigor até 31 de dezembro de 1994) em nada afeta essa característica. A fixação deste período significa que o tratado é "destinado essencialmente a reger o período dito transitório (...) e deverá ser completado, progressivamente, por acordos e protocolos adicionais até que seu texto original se torne automaticamente inoperante" [02]. O TA não regula uma data para a sua extinção; no entanto, constitui-se num "quadro jurídico" no qual obrigações posteriores deverão ser contraídas. Tratados posteriores, ainda que possam entrar em conflito com algumas disposições do TA, não irão propriamente revogá-lo, mas deverão aperfeiçoar as relações existentes entre os quatro países para melhor atingir os fins – aqueles do mercado comum – que o tratado original, o TA, se propõe.

Todavia, não se deve depreender do que foi dito acima que o TA seria um "tratado-quadro". Ele seria melhor classificado como um umbrella treaty: uma convenção ampla, de grandes linhas normativas, sob cuja égide outros tratados são celebrados em complementação a seus dispositivos ou com objetivos próprios permitidos pela convenção. São exemplos de tratados guarda-chuva o Tratado da Antártica de 1959, o Acordo de Marrakesh de 1994 e o Tratado de Montevidéu de 1980. Já as framework conventions, ou tratados-quadro, são espécies novas de tratados multilaterais, bastante genéricas, surgidas na década de 1960, no âmbito do Direito Internacional do Meio Ambiente, com o fito de manter o regime jurídico que disciplinam atualizado, a despeito dos avanços da ciência e da tecnologia, sem precisar recorrer aos procedimentos lentos e solenes de emendas e modificações. Um exemplo seria a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Modificação do Clima, adotada durante a ECO-92. [03]

Alguns autores [04] invocam o texto do art. 10 da CV para ilustrar o caráter de permanência do TA:

O texto de um tratado é considerado autêntico e definitivo:

a) mediante o processo previsto no texto do tratado ou acordado pelos Estados que participam de sua elaboração;

b) na ausência de tal processo, pela assinatura, assinatura ad referendum ou rubrica, pelos representantes desses Estados, do texto do tratado ou da ata final da conferência que incorpora o referido texto. (grifo nosso).

Embora a posição que defendam seja acertada, o meio utilizado não é adequado. O referido artigo não introduz uma nova classificação de tratado – o tratado definitivo –, mas tão-somente versa sobre a autenticidade do texto de um tratado. [05] O TA é, portanto, um tratado multilateral normativo, guarda-chuva, que institui uma organização internacional [06] (fato que, em razão do art. 5º, não afasta a aplicabilidade da CV).

O TA não incide em nenhum dos vícios do consentimento previstos na CV (arts. 48 a 52), e tampouco atenta contra uma norma de jus cogens (art.53). Não incide em nulidade. Cumpre salientar que, à semelhança dos casos de nulidade por inobservância de jus cogens, expressamente previsto na CV, ocorre ainda uma espécie de nulidade substancial quando um tratado tem precedência absoluta. De fato, o termo mais apropriado seria "revogação". É o que prevê o art. 103 da Carta da ONU em relação à própria Carta: "No caso de conflito entre as obrigações dos Membros das Nações Unidas em virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta." A primazia da Carta da ONU é geral e "independe de sua anterioridade em relação a qualquer outro tratado" [07]. De todo o modo, o TA não desrespeita os compromissos da Carta; esta observação será importante para analisar a compatibilidade do Mercosul com a ALADI e com a OMC.

Os quatro Estados não promoveram reservas ao TA. O mesmo deve ser aplicado de forma integral. Resta, assim, prejudicada qualquer análise de compatibilidade do TA com os arts. 19 a 23 da CV. O TA também silencia quanto à possibilidade de ser emendado ou modificado. Ainda que as regras contidas nos arts. 39 a 41 da CV sejam aplicáveis mesmo no silêncio de um tratado, não parece haver possibilidade de se modificar ou emendar o TA, tal como ocorre com o procedimento relativo a reservas. De fato, o TA não estabelece, de maneira expressa, a impossibilidade de sua alteração. Entretanto, em virtude de sua condição de umbrella treaty, qualquer modificação deverá ser efetuada mediante novo acordo. Uma alteração, ainda que substancial, das obrigações contidas no TA deve ser efetuada em um outro ato internacional, um protocolo, não uma emenda ao próprio TA.

Se um dos quatro Estados não estiver satisfeito com as provisões do TA, e essa insatisfação for tamanha que não possa ser objeto de um protocolo, o mecanismo que lhe resta é a denúncia. As regras sobre denúncia encontram-se previstas nos arts. 21 e 22 do TA. Dispõe o art. 54 da CV que a retirada de uma das partes do tratado pode se dar em conformidade com as disposições do próprio tratado. É claro que os efeitos da denúncia só atingem o Estado denunciado; todavia, cabe lembrar que, na sistemática do Mercosul, a extensão desses efeitos compreende não somente a aplicação do TA, mas também todos os demais instrumentos jurídicos adicionais. O sistema criado pelo TA é do tipo "ame-o ou deixe-o".

Apesar dessa disposição mais rigorosa, os Estados-membros do TA, com o consentimento mútuo, podem suspender a execução do Tratado. Embora não haja uma previsão expressa no TA, a regra do art. 57, b), da CV é perfeitamente aplicável. Assim, o sistema é suavizado, e a velocidade do processo de integração é sempre controlada pela vontade das partes.

Um problema grave que a comparação do TA com a CV permite vislumbrar é a hierarquia jurídica entre aquele e as legislações nacionais dos quatro Estados. Dispõe o art. 27 da CV: "Uma parte não pode invocar as disposições do seu direito interno para justificar o não cumprimento de um tratado. (...)." O Direito Internacional estipula a sua primazia sobre o direito interno. Como o TA não prescreve sua própria precedência em relação ao direito nacional, é preciso observar a prática interna dos quatro Estados. O Paraguai reconhece, em sua constituição, a superioridade do Direito Convencional sobre suas leis internas, e o coloca logo abaixo da constituição. Na Argentina, a Corte Suprema também reconheceu a supremacia do Direito Convencional.

No entanto, o mesmo não ocorre com o Brasil e o Uruguai. No Brasil, o julgamento do RE 80.004 alterou toda a tradição anterior e agora possibilita a aplicação da regra lex posterior derogat priori, mesmo que a norma seja de direito internacional. Como o Uruguai não se manifestou sobre a questão, na prática, esta abstenção significa que o país prevê a prevalência de seu direito interno. [08]

Ainda que previsto na CV, este problema remete à compatibilidade das normas do Mercosul com a legislação nacional dos Estados-partes e, portanto, foge ao escopo deste trabalho. Aqui, basta ressaltar que o art. 27 da CV tem eficácia plena para efeitos de responsabilidade internacional, e o Estado não pode invocar a sua soberania para afastar seus efeitos, ainda que, como o Brasil, não tenha ratificado a CV. [09]

2 Princípios Gerais sobre Sucessão de Tratados

Quando, em 23 de março de 1990, os Estados do cone sul firmaram o TA, já havia outras normas internacionais, não só de caráter geral como a CV, que incidiam sobre o mesmo assunto: Direito da Integração. Era o Tratado de Montevidéu de 1980, criador da ALADI, e os acordos bilaterais Brasil-Argentina. Para se determinar quais normas permanecem válidas frente ao TA, é preciso antes tecer alguns comentários sobre a sucessão de tratados.

Existe o fenômeno da cumulação ou sucessão de tratados quando mais de um acordo internacional regula a mesma matéria. As técnicas de solução deste problema não são de todo satisfatórias. Há, grosso modo, duas abordagens doutrinárias sobre o assunto.

O método subjetivo defende a idéia de que dois tratados em conflito não deixam de ser válidos. Duas proposições prescritivas podem ser contraditórias, sem perder a validade. O princípio lógico da não-contradição só se aplica a proposições fáticas, descritivas, no plano do ser. O problema que então poderia surgir não é de validade, mas de eficácia: ambas as obrigações não podem ser aplicadas no mesmo espaço, ao mesmo tempo. Os partidários deste método afirmam que não é possível buscar, fora da vontade dos Estados, regras gerais que determinem a priori a resposta para todos os casos. Por conseguinte, a solução deveria ser negociada entre os Estados envolvidos. [10]

Esta forma de resolução é insatisfatória porque, embora preserve a vontade dos Estados, abre margem para uma insegurança jurídica bastante grande, o que pode mitigar o princípio maior do pacta sunt servanda. Ademais, o conflito se torna insolúvel no caso de malogro das negociações.

O segundo método, chamado objetivo, afirma que a ordem internacional, como toda ordem jurídica, contém necessariamente regras para resolver conflito de normas. Essas regras encontram-se fora da vontade dos Estados. Com algumas ressalvas, aplicam-se os critérios de solução de conflitos do direito interno. [11]

A transposição de regras do direito interno para o direito internacional é bastante problemática. Uma ordem jurídica descentralizada não pode aplicar, em princípio, v.g., o critério hierárquico; ainda assim, este critério é válido quando se tratar de normas imperativas ou quando incidir no art. 103 da Carta da ONU, conforme visto. Há diversas adaptações a serem feitas e parece ser difícil de atingir-se uma resposta segura para todos os casos. Ademais, este método menospreza um parâmetro importante: a soberania dos Estados, e corresponde, pois, apenas parcialmente à prática internacional.

Não obstante, o método objetivo foi adotado grosso modo pela CV, no art. 30, mas também nos arts. 41, 53, 60 e 64, para efeitos de responsabilidade internacional. A primeira situação reflete uma disposição convencional expressa e encontra-se prevista no § 2º do art. 30: "Quando um tratado estipular que está subordinado a um tratado anterior ou posterior ou que não deve ser considerado incompatível com esse outro tratado, as disposições deste último prevalecerão." Aqui, o tratado prevê eventuais conflitos e fixa antecipadamente, por uma cláusula expressa, uma fórmula que prescreve uma ordem de prioridade chamada "declaração de compatibilidade". Quando um tratado contém semelhante declaração, ele deve ser interpretado como se fosse de posição hierárquica inferior ao outro tratado. Um exemplo desse tipo de dispositivo é o art. 21 da Pacto da Liga das Nações que estabelece que os tratados de arbitragem, e "os acordos regionais, como a doutrina de Monroe destinados a assegurar a manutenção da paz, não serão considerados como incompatíveis com nenhuma das disposições do presente Pacto." É o caso também do art. 311 da Convenção de Montego Bay sobre o direito do mar que autoriza os Estados-partes a concluir acordos derrogatórios sob reserva de não serem incompatíveis com os seus objetivos, os seus fins e os seus princípios, ressalvados os direitos dos demais Estados-partes. [12] O TA também apresenta um exemplo um tanto controverso, que será analisado posteriormente.

Quando os tratados apresentam eles próprios como subordinados, o exame da compatibilidade não oferece maiores dificuldades. Entretanto, o mesmo não acontece quando da hipótese inversa, quando os tratados afirmam sua superioridade. Aqui, impõe-se o problema de resguardar-se o direito de terceiros.

O art. 20, § 1º do Pacto da Liga das Nações dispõe que ele revoga "todas as obrigações ou acordos entre si, incompatíveis com os seu termos, e [os Membros] se comprometem, solenemente, a não contrair, no futuro, outros, semelhantes". O Pacto prescreve, de forma expressa, a sua superioridade face a acordos passados e futuros que contenham obrigações incompatíveis com ele próprio. A superioridade é suficiente mesmo para revogar os acordos incompatíveis. Consoante o § 2º deste mesmo artigo, o Estado-membro do Pacto deverá adotar mediadas imediatas para se desvincular de obrigações anteriores ao Pacto que fossem incompatíveis. Cumpre salientar que essas obrigações anteriores, com o advento do Pacto, não são simplesmente revogadas: os Estados devem providenciar medidas para se desligarem desses deveres. Além disso, a provisão do § 2º atinge tão-somente os membros do Pacto. [13]

Essa disposição é repetida – ainda que de maneira imperfeita – pelo art. 103 da Carta da ONU, já mencionado. Trata-se da criação de uma "situação objetiva": no caso da Carta, esta situação é comprovada pelo caráter quase constitucional do documento, pela quase universalidade dos seus membros, o que torna as suas obrigações oponíveis ao conjunto dos Estados.

É discutível, no entanto, se o TA estabelece, em relação aos seus Membros e no âmbito dos processos de integração, uma situação objetiva. A sua qualidade de tratado guarda-chuva prescreve que seus protocolos posteriores – bem como novos tratados que possam surgir motivados pelo regime jurídico que o TA cria – deverão estar de acordo com o seu propósito principal (a constituição de um mercado comum), mas nada impede que possam entrar em conflito com o próprio TA.

Ademais, não há dispositivo expresso no TA que crie uma situação objetiva. Entretanto, existe, no TA, a previsão de "mecanismos preventivos" para assegurar a compatibilidade. Prescreve o art. 8º, c) que os Estados-partes realizarão "consultas entre si sempre que negociem esquemas amplos de desgravações tarifárias, tendentes à formação de zonas de livre comércio com os demais países membros da Associação Latino-Americana de Integração". Essas consultas são formas que as convenções encontram de impedir que acordos supervenientes entre todos ou alguns de seus membros com outros Estados não-membros venham a frustrar os propósitos da convenção primeira. Trata-se de uma maneira de resguardar os direitos dos outros Estados da convenção – os que não irão integrar os referidos acordos. Por meio da consulta prévia, estes Estados podem fazer valer a sua posição sobre uma eventual incompatibilidade, antes dela ocorrer. [14]

A segunda situação de cumulação de tratados encontra-se prevista no § 3º do art. 30 da CV. Quando as partes do tratado anterior forem as mesmas do tratado posterior, aplica-se a regra lex posterior derogat priori. Cabe observar que a data "determinante da anterioridade não é a data da entrada em vigor do tratado, mas sim a de sua adoção" [15]

A regra do art. 30, contudo, não contempla casos em que um tratado tiver um caráter especial em relação a outro. O § 1º menciona "tratados sucessivos sobre o mesmo assunto", o que foi interpretado como "tendo o mesmo grau de generalidade" [16]. Quando existir um tratado mais específico, aplica-se a regra lex specialis derogat generali.

O problema maior reside na terceira situação, quando há tratados sucessivos sem identidade de partes. Nos trabalhos preparatórios da CV, procurou consagrar-se, no projeto de Sir Gerald Fitzmaurice, um sistema complexo, de acordo com uma classificação dos tratados quanto a seus efeitos – v.g., "tratados interdependentes", cujo objeto somente pode ser alcançado pela execução de todas as suas partes (como nos tratados de desmilitarização de territórios), e "tratados integrais", cujo inadimplemento de um dos membros não autoriza os demais a suspenderem ou extinguirem o tratado (como nos tratados de direitos humanos) –, a partir do qual, o tratado posterior seria nulo. Optou-se, todavia, pelo projeto de Sir Humphrey Waldock, por uma solução que preserva a vontade mais recente dos Estados e consagra a relatividade das obrigações internacionais. [17]

Quando não há identidade de partes, a CV, no seu art. 30, § 4º, estipula dois regimes. O primeiro aplica-se nas relações entre os Estados que são partes nos dois tratados: as mesmas regras descritas acima acerca do § 3º. Contudo, diverso do que foi mencionado acima, se o tratado posterior for mais genérico do que o anterior, não deve ser aplicada a máxima lex specialis derogat generali, mas sim o critério lex posterior derogat priori. Isso porque se deve preservar a vontade última dos Estados. [18]

O outro regime aplica-se nas relações entre um Estado que seja parte nas duas convenções e o outro que seja parte somente em uma: os direitos e deveres regem-se pela convenção em que ambos são partes. Isto decorre, sem dúvida, do efeito relativo dos tratados.

O art. 30 parece restringir-se à hipótese de um tratado multilateral ser sucedido por outro tratado que seja – senão também em relação à matéria, ao menos em relação às partes – "especial" ao anterior. No entanto, se o tratado posterior constituir uma manifesta violação do anterior, a CV passa a se tornar confusa. O tratado será válido, se observar as regras do art. 41. Caso, contrário, será nulo e incidirá em responsabilidade internacional (art. 30, § 5º). Note-se que, ao remeter para a responsabilidade internacional, o sistema consagrado na CV – que era, até então, objetivo – adota o método subjetivo.

Os princípios aqui descritos sobre cumulação de tratados são fundamentais para aferir a compatibilidade do TA com os acordos bilaterais entre o Brasil e a Argentina e com o Tratado de Montevidéu de 1980. Eles não perdem a sua importância na análise da compatibilidade com a OMC, mas este organismo possui uma instância encarregada de desempenhar esta função.

3 Os Acordos Brasil-Argentina

Como foi visto, o TA não surge num vácuo legislativo internacional. Pré-existiam ao TA até mesmo normas de integração, como o Tratado de Montevidéu de 1980, que será objeto da seção seguinte, e também algumas tentativas de integração bilateral entre o Brasil e a Argentina. Cumpre salientar que algumas obrigações não foram revogadas pelo TA.

As tentativas de aproximação entre os dois países são bastante anteriores ao Mercosul. É certo que esses países permaneceram como rivais durante boa parte do século XX, e o "degelo" entre ambos só iria ocorrer após o inequívoco apoio brasileiro às pretensões argentinas durante a Guerra das Malvinas. Mas remonta a 1941 um ensaio de "união aduaneira" entre Brasil e Argentina, o qual malogrou em virtude das diferenças diplomáticas que se manifestam entre ambos depois do ataque japonês a Pearl Harbor e das distintas posições acerca do conflito mundial. Durante a década de 1950, somente Hélio Jaguaribe, então Secretário Geral do IBESP (antecessor do ISEB), advogava, entre os brasileiros, a integração dos dois vizinhos. [19]

No entanto, é somente em 1985 que a cooperação entre os dois países vai surtir efeitos. Neste ano, é celebrada a Declaração de Iguaçu, pela qual os dois presidentes expressam sua "firme vontade de acelerar o processo de integração bilateral". Para tanto, é criada uma Comissão Mista de Alto Nível, presidida pelos Ministros das Relações Exteriores. Na ocasião, é firmada uma Declaração Conjunta sobre Política Nuclear.

Nos anos posteriores, a integração acelera-se, e há quase um consenso entre os autores que os acordos bilaterais constituem prolegômenos ao próprio TA. Em 1986, a Ata para a Integração Brasil-Argentina estabelece o Programa de Integração e Cooperação Econômica, composto de 24 protocolos, cujo caráter "gradual, flexível e equilibrado" prevê tratamentos diferenciais face a terceiros mercados. Em 1988, é firmado o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento com o intuito de consolidar o processo de integração e instituir, num prazo de 10 anos, um espaço econômico comum em duas etapas. Na primeira, deveria ocorrer a harmonização das políticas aduaneira, comercial, agrícola, industrial e de transportes e comunicações, bem como a coordenação de políticas monetária, fiscal e cambiária. Num segundo estádio, deveria haver a harmonização gradativa de todas as demais políticas necessárias a um mercado comum. Dois anos depois, a Ata de Buenos Aires estabelecia o prazo de 31 de dezembro de 1994 para a conformação do mercado comum e cria o Grupo Mercado Comum (este binacional). No mesmo ano, é criado o Estatuto das Empresas Binacionais Brasileiro-Argentinas. [20]

Por fim, em dezembro de 1990, em conformidade com o Tratado de Montevidéu de 1980, os dois países celebram um Acordo de Complementação Econômica, que recebeu o número 14. Este acordo reúne tanto a Ata de Cooperação e Integração como os protocolos, mas deixa sem efeito os "Acordos de Alcance Parcial de Renegociação das Preferências Outorgadas no período 1962/1980 e os de Complementação Econômica nº 7 e nº 12" [21]. Os protocolos que originaram estes últimos (os de nº 1 e de nº 22), bem como aqueles sobre a Indústria Automobilística (o de nº 21) e o de Cooperação Nuclear (o de nº 17), constaram como anexos do ACE nº 14. Ele se aplica a "todo o universo tarifário de bens", sem qualquer exceção expressa.

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O Uruguai, preocupado com a aproximação do Brasil e da Argentina, que ameaçava deixá-lo num isolamento econômico, procurou inserir-se de imediato no novo contexto sub-regional. Por isso, participou de todos os encontros presidenciais entre Brasil e Argentina, na segunda metade da década de 1980. O Paraguai juntou-se em seguida. Assim, em 1991, os quatro países celebraram o TA, fruto maior tanto da integração bilateral, como da inserção dos outros dois países neste processo. Todavia, os acordos bilaterais anteriores não foram denunciados.

Para explicar as relações entre o TA e os acordos anteriores, sobretudo em relação ao ACE 14, José Ângelo Estrella Faria recorre a uma analogia sugestiva com o Tratado de Roma e o BENELUX e a UEBL (União Econômica Belgo-Luxemburguesa). Afirma o autor que o Tratado de Roma, por seu art. 233, não afetou aqueles acordos, "na medida em que os objetivos dessas uniões regionais não sejam atingidos pela aplicação do presente Tratado". Este dispositivo não afasta de todo a incidência do Tratado de Roma, mas reconhece a derrogação das regras comunitárias naquelas matérias em que a integração do BENELUX estiver mais avançada. Quando o Tratado de Roma regular determinado assunto com igual ou maior intensidade, ele próprio será aplicável. Assim, esse tratado, v.g, não suspendeu a eficácia do protocolo sobre política comercial comum dos países do BENELUX, o qual antecedia em doze anos a TEC da CEE. Tampouco impediu que, já em 1960, esses países outorgassem a livre circulação aos seus cidadãos. Da mesma forma, Bélgica e Luxemburgo já possuíam uma união monetária muito antes do Tratado de Maastricht. De certa maneira, o BENELUX funciona como uma espécie de "laboratório" para impulsionar a própria integração européia. [22]

O autor, entretanto, reconhece duas diferenças entre o exemplo europeu e o latino-americano. A primeira revela-se como a discrepância entre o peso relativo dos países do BENELUX em relação à União Européia e o de Brasil e Argentina para com o Mercosul. No contexto europeu, as decisões tomadas no âmbito do BENELUX não afetariam de forma substancial a marcha dos acontecimentos da comunidade maior. No caso latino, o risco reside em outro extremo. "Essa situação pode justificar o receio de que, mantidas as condições atuais, os demais Estados partes do Mercosul (Paraguai e Uruguai) sejam meros caudatários dos avanços argentino-brasileiros, ou, pior ainda, vítimas de decisões errôneas às quais não possam resistir." [23]

A segunda diferença é o fato de o TA não consagrar a cláusula da nação mais favorecida, mas, ainda assim, ele está, conforme seu art. 2º, baseado na "reciprocidade de direitos e obrigações entre os Estados partes". Se os acordos bilaterais permanecerem válidos – e será visto que o TA admite isto de modo expresso –, então eles poderiam tornar-se fonte de discriminação, pois nada obrigaria o Brasil ou a Argentina a conceder as vantagens bilaterais aos outros Estados-membros do Mercosul. Os acordos bilaterais podem constituir verdadeiras "válvulas de escape" aos dois grandes que pretendem garantir o seu processo de integração sem depender de todo no sucesso do TA. Em razão desse problema, o GMC decidiu que todos os acordos concluídos entre os países do Mercosul no âmbito da ALADI (e os acordos bilaterais encontram-se nesta esfera) serão adaptados às regras do Mercosul. Percebe-se, pois, uma tendência a multilateralizar os acordos bilaterais. A cota de importação, por exemplo, estabelecida pelo Uruguai no setor de automóveis foi aumentada e estendida do Brasil para os demais países do Mercosul. [24]

Além dessa tendência que acaba por mitigar os receios do Paraguai e do Uruguai, convém lembrar que o sistema de tomada de decisão previsto no TA (art. 16) é baseado no consenso. Dessa forma, uma única oposição pode impedir a pretensão dos dois países maiores.

O TA prevê, no art. 8º, que os "Estados-Partes se comprometem a preservar os compromissos assumidos (...) inclusive os Acordos firmados no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (...)". De modo bastante explícito, o art. 12 do Anexo I do TA exclui do Programa de Liberalização do Comércio os ACEs 1, 2, 13 e 14, bem como os acordos comerciais e agropecuários, subscritos na ALADI, "os quais se regerão exclusivamente pelas disposições nele estabelecidas".

Essa espécie de cumulação de tratados não é aquela prevista no art. 30, § 4º da CV, quando "as partes no tratado posterior não incluírem todas as partes do tratado anterior". Na verdade, ocorre o contrário: o tratado posterior é mais abrangente. Dessa feita, em princípio, a regra geral de compatibilização aplicável seria a da lex posterior derogat priori. Entretanto, cumpre desvendar se as referências que o TA faz àqueles acordos acabam por firmar uma posição hierárquica superior ou inferior, e se, por não possuírem o mesmo grau de abstração, não subsiste o critério do lex specialis derogat generali, agora não mais referente ao art. 30, § 4º, mas ao § 1º, em razão da interpretação dada aos termos "mesmo assunto", a qual já foi mencionada.

Como foi visto na segunda seção, a simples condição de umbrella treaty não basta para que o TA crie uma situação objetiva. As expressões empregadas no art. 8°, "se comprometem a preservar os compromissos", e no art. 12 do Anexo I, "as normas contidas o presente Anexo não se aplicarão aos Acordos (...)" não colocam o TA como superior aos acordos mencionados. Essas expressões em nada se parecem com as do art. 103 da Carta da ONU, ou do art. 20 do Pacto da SDN. À primeira vista, essas expressões parecem fazer o oposto e subordinar o TA aos acordos bilaterais.

Todavia, a tese da superioridade do TA é defendida pelos "sócios menores" do Mercosul. Assim argumenta o Chanceler uruguaio:

Pero, como el objetivo y el fin del Tratado de Asunción concuerda en lo esencial con el de 1988 y, en consecuencia, el proceso de conformación del mercado común ha dejado de ser bilateral para hacerse multilateral, y como el mercado común ya no será argentino-brasileño, sino argentino-brasileño-paraguayo-uruguayo hay que llegar a la conclusión de que, habiendo quedado, en lo esencial, vacío de contenido el Tratado de 1988, es el de Asunción el que se ha de aplicar y el que tiene vigencia efectiva y real para el proceso de conformación del mercado común (...). El Tratado de 1988, aunque formalmente puede considerarse vigente, ha devenido en un Tratado carente de sentido y aplicabilidad. El único que hoy regula la creación del Mercado Común del Sur, las obrigaciones y derechos de las partes al respecto es el Tratado de Asunción. [25]

A argumentação utilizada parece, por vezes, confundir os critérios da superioridade e da posteridade, embora os comentadores façam referência expressa àquele. [26] Em que pese a autoridade do autor, a tese da superioridade não pode ser admitida em virtude dos motivos acima. Resta, agora, descobrir se o TA se subordina aos acordos bilaterais, ou se seria aplicável o critério da especialidade ou mesmo o da posteridade.

A regra lex posterior derogat priori constante no art. 59, § 1º, a) ou b) [27] deve preencher algumas condições. A alínea a) remete o intérprete para o método subjetivo, pois é necessário aferir a intenção das partes. Ora, em razão da expressa referência aos acordos anteriores, fica claro que a intenção das partes era a de preservar a validade desses acordos, e não a de revogá-los. E a alínea b) só poderia incidir se o caso não se subsumisse à alínea a), isto é, se não fosse possível aferir a intenção das partes. No caso em tela, a alínea b) incidiria se o TA se mantivesse silente acerca dos acordos anteriores. Mas, como foi visto, o TA é bem barulhento. Assim, o critério da posteridade é afastado.

Ana Cristina Pereira afasta a idéia de que o TA tenha se subordinado aos acordos anteriores. Ela cita o art. 30, § 3º, da CV e afirma que esses acordos continuam em vigor; porém, nas matérias em que entram em conflito com o TA, entra em cena a máxima lex posterior derogat priori. Dada a estranheza do fato de o próprio TA fazer remissão a esses acordos, a autora, baseada em Marcelo Halperín, argüi que o intérprete se encontra diante de uma situação de "superposição de elos de integração". Todos os instrumentos jurídicos adotados se encontrariam na mesma posição hierárquica, e os Estados-membros do Mercosul se valeriam daquele documento legal mais "‘adaptado’ aos interesses do momento" [28].

Data vênia, não merece acolhida essa argumentação. O próprio art. 30, § 3º, da CV, que a autora cita, remete ao art. 59, já analisado acima. O critério da posteridade poderia ser aplicado se, e somente se, as partes não tivessem manifestado a sua intenção de manter em vigor os acordos anteriores. Ademais, a criação de um tertius genus – a situação de "superposição de elos de integração" –, na qual diferentes normas, das mais diversas procedências, concorrem consoante a sua "melhor adaptação" aos interesses "do momento" do processo integratório – um critério de conveniência política –, em nada contribui para o deslinde da questão. O intérprete ainda precisa definir esses termos ambíguos para determinar qual norma é aplicável.

Aquelas expressões do art. 8° do TA e do art. 12 do Anexo I, que fazem remissão aos acordos bilaterais, representam o que se chamou de "declaração de compatibilidade". O TA estabelece uma ordem de prioridade quando realiza esta operação. Isso significa que, quando se materializarem as hipóteses de incidência dos arts. 8º do TA e 12 do Anexo I, o TA será afastado, e os referidos acordos serão eficazes. Portanto, o TA estabelece sim a sua própria subordinação a normas anteriores.

Estrella Faria não aceita a idéia dessa subordinação e se baseia na diferença de intensidade entre as expressões do art 8º do TA ("comprometem-se a preservar os compromissos assumidos") com as do art. 13 do ACE 18 ("as normas contidas no presente Acordo não se aplicarão"). Como será visto a seguir, o ACE 18 é o documento que inscreve o próprio Mercosul no âmbito da ALADI. Conforme uma interpretação literal, a obrigação do TA seria bem mais branda do que a do ACE 18. Segundo o autor, são os quatro Estados que se comprometem a preservar os compromissos anteriores, mas não o próprio Tratado. A obrigação contida neste seria apenas a de um "empenho" para harmonizar. [29]

No entanto, esta distinção entre os Estados-membros do TA e o próprio TA apresenta-se um tanto forçada. Além disso, embora os termos do art. 8° pareçam mesmo mais "suaves" do que os do art. 13 do ACE 18 (mas não suaves o suficiente para deixarem de ser declarações de compatibilidade), o art. 12 do Anexo I retira qualquer dúvida quanto à sua rigidez: "as normas contidas no presente Anexo não se aplicarão (...), [e os acordos anteriores] se regerão exclusivamente pelas disposições nele estabelecidas". (grifo nosso).

Por fim, o critério da especialidade não deve ser aplicado também por causa dessas declarações de compatibilidade. Como visto, elas afastam, em determinadas matérias, a eficácia do TA e resgatam a dos acordos anteriores. A ênfase aqui reside nessas "determinadas matérias". Os compromissos são válidos naqueles assuntos em que aparecem as declarações de compatibilidade. A contrário senso, nos demais assuntos, eles não serão válidos. O fato dessas declarações serem disposições expressas indica tanto que as partes não esqueceram de conferir validade aos compromissos anteriores em determinados assuntos, como elas manifestaram a sua intenção de não conferir validade a esses mesmos compromissos no silêncio do tratado. Caso não houvesse nenhuma manifestação de intenção em qualquer sentido (a favor ou contra a aplicação dos acordos anteriores), ou seja, na hipótese de silêncio absoluto do tratado, então poderia perquirir-se sobre a incidência da norma anterior especial.

Por isso, não subsiste a máxima lex specialis derogat generali. Naquelas matérias não reguladas pelo TA, e não excetuadas de forma expressa, os compromissos anteriores não serão válidos. As partes manifestaram sua intenção de fazer prevalecer a norma posterior geral. Entretanto, o caput do art. 8º é genérico e excetua de forma expressa qualquer compromisso assumido até a data da celebração do TA. Na prática, é como se a regra da especialidade fosse aplicável, mas, de fato, a sistemática é bem distinta: o que houve foi uma subordinação geral aos compromissos anteriores.

Assim, os compromissos anteriores se aplicam, porque o próprio TA, em determinadas matérias, e na redação genérica do art. 8º, prevê a sua subordinação. De todo o modo, isso representa obrigações que foram contraídas fora da sistemática do Mercosul e que incidem em somente dois dos países da integração do TA. Dessa feita, para atenuar riscos dessas obrigações comprometerem o Mercosul, além da "tendência à multilateralização" descrita acima, o TA consagra alguns mecanismos preventivos.

Na seção 2, aludiu-se à obrigatoriedade das consultas prévias do art. 8º, c), sempre que um dos membros for negociar uma desgravação tarifária com demais membros da ALADI. Esta consulta permite que os outros membros do TA firmem sua posição antes de um possível acordo prejudicial aos seus interesses.

Consultas prévias constituem o exemplo mais ilustrativo da existência de mecanismos que previnem choques de compatibilidade. O TA, contudo, prevê ainda outras maneiras não tão explícitas. No final do caput do art. 8º, os Estados-membros se comprometem a "coordenar suas posições nas negociações comerciais externas durante o período de transição". Segundo alguns autores [30], esta disposição reflete a exigência de coordenação de posições em foros econômico-comerciais regionais e internacionais que se encontra estipulada no terceiro parágrafo do art. 1º. Cumpre salientar que, em princípio, depois do período de transição, esta medida restará prejudicada, pois os quatro países devem possuir uma política comercial externa comum.

Outro mecanismo preventivo encontra-se no art. 8º, a): a obrigação de evitar "afetar os interesses dos Estados-Partes nas negociações comerciais que realizem entre si até 31.12.1994". Esse artigo refere-se a negociações que não envolvam a totalidade dos Estados-membros do TA. Isto é uma espécie de "abrandamento" dos efeitos, para o Paraguai e para o Uruguai, do fato dos acordos bilaterais Brasil-Argentina ainda subsistirem. Esta disposição materializa-se "no caso destes compromissos gerarem novas negociações comerciais" [31]: pende sobre essas novas negociações a obrigação de não afetar os interesses dos demais Estados-membros.

O TA dispõe ainda de outros mecanismos preventivos de compatibilidade, mas, em razão de sua vinculação com a ALADI, serão objeto da próxima seção.

Pode concluir-se que, para a liberação do comércio de bens entre Brasil e Argentina, valem as disposições do ACE 14 – além, é claro, dos demais acordos expressamente previstos no art. 12 do Anexo I. Em relação a todos os outros elementos constitutivos de um mercado comum, aplica-se o art. 8º. Ora, o ACE 14 derrogou expressa e tacitamente todos os compromissos que diziam respeito à liberação do comércio de todo o universo tarifário. Então, os acordos e protocolos que regularem matéria estranha ao ACE 14 permanecem em vigor.

De um modo geral, as obrigações contidas no ACE 14 não causam problemas para a integração quadrilateral, até porque o ritmo de eliminação de barreiras é equivalente ao do Programa de Liberação Comercial. O mesmo, todavia, não pode ser dito acerca dos protocolos relativos à Indústria Automobilística [32], Trigo e Indústria Alimentícia, e os demais compromissos que facilitam a cooperação empresarial entre Brasil e Argentina, ou que promovem a circulação de pessoas e capitais ou que dão acesso recíproco aos fornecimentos do poder público para as empresas. Assim, o Estatuto de Empresas Binacionais pode produzir uma discriminação em relação às empresas de capital paraguaio e uruguaio. Da mesma forma, a aplicação do "Protocolo nº 14, sobre transporte terrestre, ou do Protocolo nº 15, sobre transporte marítimo, pode levar a que se facilitem os intercâmbios apenas entre aqueles dois países, em prejuízo do comércio com os dois restantes Estados Partes do Mercosul" [33]. Cumpre salientar que, embora os compromissos anteriores sejam válidos de acordo com o TA, hoje, muitos produtos dos setores citados integram as listas de exceções à TEC ou um regime especial.

4 O Tratado de Montevidéu de 1980

Em 12 de agosto de 1980, na cidade de Montevidéu, nascia a Associação Latino-Americana de Integração (TM-80), que veio substituir a infrutífera Associação Latino-Americana de Livre Comércio (TM-60) e entrou em funcionamento em 1981, quando foram depositadas as 3 primeiras ratificações (Uruguai, Argentina e Paraguai). Diversas foram as causas do malogro da ALALC, desde a diferença de grau de desenvolvimento dos Estados-membros até a inadequada estrutura institucional, ou mesmo o desinteresse político. [34]

A nova organização precisava contornar esses problemas e reverter uma tendência ao esvaziamento. Assim, apesar da ALADI possuir o mesmo objetivo formal, declarado no Preâmbulo – o de criar um mercado comum –, que a sua predecessora, deu-se prioridade ao estabelecimento de uma zona de preferências tarifárias regionais. [35] Além disso, flexibilizou-se a cláusula da nação mais favorecida (art. 44 do TM-80) em favor de acordos sub-regionais de complementação econômica.

O realismo e os propósitos mais modestos que a nova organização apresenta revelam-se, sobretudo, nos princípios do art. 3º [36]:

a) O pluralismo que se expressa no desejo de integração, apesar da diversidade política e econômica dos seus membros;

b) A convergência que se traduz na "multilateralização progressiva dos acordos de alcance parcial, através de negociações periódicas entre os países-membros";

c) A flexibilidade "caracterizada pela capacidade para permitir a celebração de acordos de alcance parcial";

d) O tratamento diferencial, dispensado aos seus membros, em função do grau de desenvolvimento, e

e) Múltiplo, que se mostra na admissibilidade das variadas formas de consecução dos objetivos do tratado, desde que não se encontrem expressamente proibidos.

A ALADI previu três modos de atingir seus objetivos: as negociações das preferências alfandegárias regionais, as ações de alcance regional e as ações de alcance parcial. Caracterizadas pela generalidade e progressividade, as preferências alfandegárias regionais abarcam a quase totalidade do universo aduaneiro, sem prejuízo das listas de exceção. Trata-se aqui de conciliar o processo de integração com os interesses individuais de cada Estado-membro. As negociações são periódicas. As ações de alcance regional podem adotar a forma de acordos comerciais, de complementação econômica, agropecuários, etc, e incidem sobre todas as partes. Já as ações de alcance parcial ocorrem em acordos bilaterais, sub-regionais e multilaterais referentes a itens específicos, setoriais, intersetoriais e genéricos. Constituem uma limitação à cláusula da nação mais favorecida. [37]

Assim, as iniciativas bilaterais Brasil-Argentina e o próprio TA são ações de alcance parcial do TM-80 perfeitamente válidas. A integração de todos os países latino-americanos é finalidade última da ALADI, e a integração do cone sul consiste numa finalidade meio. Em 29 de novembro de 1991, o TA foi inscrito junto à Secretaria da ALADI como Acordo de Complementação Econômica nº 18.

A vinculação do TA ao TM-80 está prevista ao longo de todo o texto do tratado. A identidade de objetivos é expressa. Logo no quinto parágrafo do preâmbulo, o TA consagra: "Conscientes de que o presente Tratado deve ser considerado como um novo avanço no esforço tendente ao desenvolvimento progressivo da integração da América Latina, conforme o objetivo do Tratado de Montevidéu de 1980." (grifo nosso). E para os que ainda duvidam da força normativa dos preâmbulos, a ALADI é ainda referida nos arts. 8º, caput, b), c) e d), e 20 do TA, nos arts. 2º, b), 3º, 4º, 5º, 10 e 12 do Anexo I, bem como nos arts.1º, b), c) e e), 14, 15, 19 do Anexo II.

Se o TA apresenta subordinação aos acordos bilaterais anteriores, com muito mais propriedade, também se subordina ao TM-80. A declaração de compatibilidade do art. 8º, caput, já analisada acima, também se aplica ao TM-80. Uma vez que essa subordinação se verifica até mesmo no plano institucional (ACE 18), todas as decisões e protocolos aprovados no âmbito do Mercosul devem ser igualmente inscritos na ALADI. Trata-se de uma situação curiosa que poderia levar ao duplo controle das decisões do Mercosul. [38]

As previsões do art. 8º, caput, e do art. 20 do TA conferem determinados direitos aos membros do TM-80. No primeiro caso, estabeleceu-se a validade dos acordos da ALADI anteriores ao TA, sem a necessidade de estender os direitos e prerrogativas destes compromissos aos demais Estados-membros do TA, além da conseqüente subordinação. Observe-se que, na alínea d) deste artigo, em complementação ao disposto no caput, existe uma espécie de "cláusula da nação mais favorecida" entre as partes do Mercosul em relação a qualquer privilégio concedido a produtos oriundos de países que não sejam membros da ALADI. No art. 20, o TA confere aos países membros do TM-80 (que não sejam, obviamente, membros do TA), mediante aprovação unânime dos quatro Estados, a possibilidade de adesão, após 5 anos de vigência do tratado. Abria, ainda, a possibilidade de adesão antes do prazo para membros da ALADI que não participassem de outra associação integrativa. [39]

O TA considera a ALADI uma área jurídica privilegiada: ao lado do seu âmbito próprio de incidência – os quatro países –, estende alguns dos seus benefícios para uma outra área. Trata-se de uma exceção à regra geral do efeito relativo dos tratados prevista no art. 36 da CV: uma convenção que cria direitos para terceiros Estados. Mesmo que seja um direito, não uma obrigação, é necessário o consentimento do terceiro envolvido. Entende-se que o consentimento possa ser tácito; apenas uma manifestação expressa em contrário da ALADI poderia impedir essa concessão.

Cumpre salientar que os Estados-membros do Mercosul não podem mais dispor desses direitos que concederam às partes do TM-80. Por força do art. 37, § 2º, da CV, após o nascimento do direito ao terceiro Estado, as partes do tratado não podem mais revogar, sem o consentimento do terceiro, desde que essa restrição seja prevista. Ainda que essa restrição não se encontre no TA, ela está prevista no TM-80, como será visto a seguir. E, uma vez estabelecida a subordinação do TA ao TM-80, aquele dispositivo da CV tem aplicabilidade. Isso significa que, em razão da qualidade de tratado guarda-chuva do TA, mesmo protocolos posteriores a ele não podem retirar esses direitos já concedidos aos países-membros da ALADI.

Já que o próprio TM-80 prevê a constituição de acordos de alcance parcial, o exame de compatibilidade entre esta convenção e o TA comporta dois momentos: por um lado, deve aferir-se a observância do TA em relação às regras que o TM-80 especifica para acordos parciais; por outro, o intérprete deve averiguar em que medida o TA firma sua própria identidade: um regime jurídico, ainda que subordinado, mas distinto do TM-80, precisa conter disposições que impeçam este último de opor obstáculos ao seu processo de integração.

O art. 9º do TM-80 estabelece alguns requisitos para a validade de um acordo de alcance parcial. A primeira disposição requer que esses acordos estejam abertos à adesão, mediante prévia negociação, dos demais Estados-membros da ALADI. À primeira vista, parece que o TA, no seu art. 20, satisfaz esta exigência. Mas, "na prática a negociação exigida não será de muita utilidade, visto que no momento em que o país interessado for aceito no seio do Mercosul, as bases do mercado a ser implementado já estarão estabelecidas" [40]. Assim, cabe ao novo aderente apenas aceitar as regras já previstas, como se fosse um contrato de adesão. Sua vontade só fará diferença na elaboração das regras futuras. Por essa razão, o art. 5º, b), da Resolução nº 2 do Conselho de Ministros da ALADI prescreve que os Estados-membros que desejam iniciar uma negociação de um acordo de alcance parcial deverão comunicar essa iniciativa ao Comitê, para possibilitar os demais membros a oportunidade de participar da mesma. Além disso, o prazo de 5 anos impediu diversos países de negociar sua entrada durante o período de transição.

O segundo requisito que o art. 9º do TM-80 estabelece para os acordos parciais é o de que devem "conter cláusulas que propiciem a convergência, a fim de que seus benefícios alcancem a todos os países-membros". Na alínea seguinte, faculta a existência de cláusulas que propiciem a convergência a demais países latino-americanos, respeitadas suas próprias disposições. Excetuada a abertura à adesão do art. 20, o TA não prevê nenhuma medida de extensão dos benefícios do Mercosul aos demais membros da ALADI ou a outros países latino-americanos.

Outro dispositivo (art. 9º, d)) exige que os acordos parciais devem consagrar um tratamento diferenciado em função de três categorias (países de desenvolvimento pleno, médio e menor desenvolvimento econômico). Prescreve ainda a existência de "procedimentos de negociação para sua revisão periódica, a pedido de qualquer país-membro que se considere prejudicado". Existem aqui três obrigações. Uma primeira estipula a criação de mecanismos para contornar a desigualdade de fato entre os Estados-membros do acordo parcial. Como os acordos parciais devem, pelo requisito anterior, convergir para beneficiar todos as partes do TM-80, há um segundo dever de estabelecer um relacionamento mais privilegiado entre o Mercosul e as partes de menor desenvolvimento econômico do restante da ALADI. Isso significa que, ainda que não adiram ao TA, os países menos desenvolvidos economicamente da ALADI devem gozar de um relacionamento privilegiado com o Mercosul, no que tange aos mecanismos de convergência dos benefícios. Uma última obrigação ordena que os acordos parciais encerrem procedimentos para a sua revisão periódica sempre que um dos seus Estados-membros se sentir lesado.

O art. 6º do TA reconhece "diferenças pontuais de ritmo" para o Paraguai e o Uruguai, e essas diferenças constam do Programa de Liberação Comercial. As outras duas obrigações não são contempladas no TA. Cumpre salientar que alguns autores [41] julgam a disposição do art. 6º insuficiente, porque, apesar daqueles países poderem determinar listas de exceções mais amplas e de gozarem de um prazo adicional de um ano para liberalizar seus mercados, o princípio da reciprocidade, previsto no art. 2º, anularia essa vantagem. O fato de o processo de integração basear-se em direitos e deveres recíprocos dos Estados-membros colocaria os quatro países no mesmo patamar de igualdade.

Não obstante, a insuficiência da proteção não equivale à sua inexistência. O art. 6º, de fato, estabelece um privilégio aos dois países de menor desenvolvimento econômico relativo, seguindo os ditames não de uma igualdade formal, mas de um conceito material de igualdade dos Estados. Além disso, na prática, a previsão deste artigo aliada à sistemática consensual de votação surte efeitos significativos. Mesmo com essa divergência de opinião, as outras duas obrigações não se encontram contempladas e, neste aspecto, o TA não observou os ditames do TM-80.

A última exigência [42] que o TM-80 prevê para a validade dos acordos de alcance parcial diz respeito a um prazo mínimo de um ano de duração do próprio acordo. Não se trata de um prazo máximo para se iniciar a convergência com os demais países-membros da ALADI, mas não partes do acordo parcial. Esta medida justifica-se em razão do interesse que a ALADI tem no sucesso da integração latino-americana, quer seja regional ou parcial, e somente se explica em função do malogro da organização antecessora.

Como foi visto na primeira seção, ainda que preveja um período transitório, o TA é um tratado com duração indeterminada, e o requisito é, pois, preenchido. Cabe observar que o próprio período de transição excedia a um ano; fato que demonstrava a "vontade política" dos quatro países para o processo integratório.

Após analisar as exigências previstas no TM-80 para a validade do TA, o intérprete deve perquirir quais são os mecanismos preventivos existentes no TA para a compatibilização com o TM-80. O art. 8º, caput, do TA dispõe, no final, que os Estados-membros do Mercosul deverão "coordenar suas posições nas negociações comerciais que empreendam durante o período de transição." Esta "coordenação de posições" é reflexo da obrigação de coordenação em foros regionais e internacionais prevista no art. 1º e deve ser pautada conforme o que alguns autores [43] denominaram de diretrizes. A primeira diretriz corresponde à alínea a) do art. 8º e foi vista na última seção.

A alínea seguinte contém duas premissas distintas. A primeira estipula que as partes deverão evitar prejudicar os interesses dos demais Estados-membros do Mercosul sempre que celebrarem acordos com outros membros da ALADI. A segunda dispõe que esses mesmos acordos não poderão prejudicar os objetivos do mercado comum. Tanto os interesses nacionais dos Estados-partes, como os interesses da integração se encontram albergados pela alínea b) do art. 8º do TA. Em princípio, esta obrigação vige durante o período de transição, após o qual deveria haver uma política comercial comum, decorrente da TEC.

Em razão desse dispositivo específico, foi ditada a Resolução nº 16/92 que convocou uma reunião de coordenadores do GMC em conjunto com os funcionários governamentais de alto nível (art.11). Essa resolução prescreve que os acordos celebrados ou renegociados entre Estados-membros do TA com outros Estados do TM-80 posteriores ao TA não poderão vigorar além do período de transição. Os acordos anteriores ao TA, já subscritos, que porventura possuam um âmbito de validade temporal que exceda 31 de dezembro de 1994 deverão ser renegociados com vistas à sua compatibilidade com a TEC, antes da mesma entrar em vigor. [44]

A alínea c) encerra o mecanismo preventivo por excelência: um sistema de consultas prévias sempre que os Estados-partes "negociem esquemas amplos de desgravações tarifárias, tendentes à formação de zonas de livre comércio com os demais membros da Associação Latino-Americana de Integração". Já foi aludido em que consiste este mecanismo. Consoante alguns autores [45], também estão sujeitos às consultas prévias, além dos tratados que visem desgravações tarifárias amplas, como os que buscam formar zonas de livre comércio, acordos menores de integração, como os acordos de complementação econômica.

Para regular a aplicação deste dispositivo, nos dias 14 e 15 de julho de 1992, em São Paulo, expediu-se os chamados "critérios de São Paulo", pela Resolução nº 35 do GMC. Estas normas: "congelaram" os acordos de alcance regional no estado em que se encontraram até o final do período de transição; determinaram algumas regras específicas aos acordos de alcance parcial (art. 2º) e acordos comerciais (art. 3º) que fossem celebrados após esta data, mas antes do término do período de transição, e ordenaram (art. 4º) a renegociação de todos os acordos parciais após o período de transição numa sistemática do tipo 4 + 1. [46]

Além de toda essa engenharia bastante complexa de compatibilização, o TA também recorre a mecanismos mais simples: a remissão direta a artigos do TM-80 para a sua complementação. A referência a dispositivos específicos de uma outra convenção é a maneira mais direta de um tratado reconhecer a validade de outro. Ao definir "restrição" no art. 2º, b), do Anexo I, o Programa de Liberação Comercial excetua do conceito "as medidas adotadas em virtude das situações previstas no Artigo 50 do Tratado de Montevidéu de 1980". [47]

Outro exemplo de remissão direta encontra-se no art. 1º, b) e e) e art. 14 do Anexo II. Estes dispositivos aludem não a um artigo do próprio TM-80, mas a decisões tomadas dentro da estrutura da ALADI (Resoluções 25 e 78 do Comitê de Representantes). Esta é uma maneira bastante peculiar de complementação, porque mostra a interpenetração da soft law na hard law: o texto de um tratado que remete a decisões de uma organização internacional. No entanto, disso não se pode depreender que a subordinação do TA ao TM-80 implicaria também a aceitação de todas as decisões "suaves" decorrentes desta última convenção. Trata-se de uma referência pontual. Ademais, é da natureza dessas remissões específicas preservar a aplicação apenas da decisão expressamente prevista. Mesmo que não houvesse a subordinação do TA ao TM-80, a remissão do exemplo anterior não preservaria a validade do TM-80 em sua integridade.

Como foi analisado, o TA não observou todas as exigências pertinentes à constituição de um acordo de alcance parcial. Ainda assim, é preciso aceitar a perfeita compatibilidade entre este tratado e o TM-80. Quando o TA foi subscrito como ACE 18 no âmbito da ALADI, esta, ao aceitar a subscrição, perdeu o direito de argüir qualquer incoerência perante instâncias internacionais julgadoras. Trata-se da regra do estoppel, que foi transposta do common law para o Direito Internacional. Este instituto encontra-se consagrado no art. 45, b), da CV. Consiste numa rule of evidence ou rule of substantive law que previne a parte de promover alegação, ainda que correspondente aos fatos, porque contraria um comportamento adotado anteriormente pela própria parte que invoca. [48] Ainda que o estoppel constitua uma regra procedimental – porque se mostra aplicável apenas perante os tribunais internacionais –, não há, no caso em tela, pessoa de Direito Internacional com interesse para levantar a incompatibilidade, sem estar impedida. Desta feita, apesar de algumas incongruências, o TA e o TM-80 são, na prática, compatíveis.

5 A Ata Final de Marraqueche

de firmar o compromisso regional e, novamente, renovaram seu consentimento em se tornar partes do sistema mundial depois do compromisso regional. E, depois de 1994, outros protocolos foram concluídos no âmbito regional. A intenção dos quatro países é clara: o GATT 1947 e o TA devem permanecer em vigor concomitantemente.

A grande maioria dos autores reconhece ou de forma expressa ou implícita a superioridade do sistema mundial sobre o regional. Esta parece ser a posição acertada. Contudo, não há nenhuma declaração de compatibilidade no TA que permita comprovar isso. Na integração européia, a Corte de Justiça das Comunidades Européias, no acórdão International Fruit, reconheceu explicitamente a legislação do GATT como parte integrante do sistema jurídico comunitário, inclusive com um grau hierárquico maior; ou melhor, as obrigações do Tratado de Roma haviam se transformado em parte "de fato" do GATT, "não segundo o processo normal de admissão, mas por transferência das competências na matéria por parte dos Estados-membros a favor da CE". [56] Deve recordar-se que as próprias Comunidades Européias são membros iniciais do Acordo de Marraqueche.

A regra lex posterior derogat priori, em razão das reiteradas manifestações de intenção em favor tanto do sistema mundial como do regional, resta prejudicada. Também não parece aplicável o critério da especialidade do art. 30, § 4º, pois se o grupo de trabalho que verifica a compatibilidade do Mercosul encontrar alguma incongruência – e a mesma não for alterada, nem se chegar a uma solução negociada –, os quatro países estarão sujeitos a prestarem reparações, na esfera da OMC, a terceiros Estados que se sentirem lesados.

Tampouco nenhum dos artigos nos documentos que compõem a sistemática da OMC define uma situação jurídica objetiva, a exemplo do que ocorre com o art. 103 da Carta da ONU. O § 3º do art. 16 do Acordo que cria a OMC estabelece uma situação de prevalência deste acordo com os demais acordos multilaterais de comércio que constam dos seus próprios anexos. A superioridade da OMC sobre os Acordos Regionais de Comércio (ARCs) decorre mais de uma aquiescência geral sobre a importância daquela organização do que de alguma disposição normativa.

O art. XXIV do GATT 1947 estabelece os ARCs como exceção à cláusula NMF. No entanto, os redatores deste artigo tinham em mente processos de integração menores, como o BENELUX, jamais algo tão perturbador para o comércio mundial como o que viria a ser a União Européia. Muito menos poderiam imaginar que praticamente todos os membros da atual OMC iriam participar de um ou outro ARC. Por isso, no § 4º do art. XXIV, as partes contratantes chegam até mesmo a incentivar acordos regionais; incentivo esse que hoje seria dispensável. Nem mesmo formas mais profundas, como um mercado comum, foram concebidas; as modalidades previstas de acordo integrativo são zonas de livre comércio e uniões aduaneiras. [57]

Assim, o GATT 1947 parte do reconhecimento de que a criação de um ARC tem por finalidade a facilitação do comércio entre os territórios constitutivos, a criação de um novo "território aduaneiro". Entretanto, o mesmo § 4º do art. XXIV, no final, impõe um limite objetivo de "não criar obstáculos a outras partes contratantes com estes territórios". Esta ressalva é repetida em outros textos. O Preâmbulo do Entendimento relativo à interpretação do Artigo XXIV, do GATT 1994 dispõe:

Reafirmando que tais acordos devem ter por objetivo facilitar o comércio entre os territórios constitutivos e não levantar obstáculos ao comércio de outros membros com esses territórios; e que as partes nesses acordos devem fazer todo o possível para evitar que o seu estabelecimento, ou ampliação, tenha efeitos desfavoráveis no comércio de outros membros.

Assim, este novo território aduaneiro deve cobrir o "essencial das trocas comerciais" (art. XXIV, § 2º). Esta mesma expressão figura também no § 8º, quando o diploma se refere a uniões aduaneiras (a), i), e quando se refere a zonas de livre comércio (b)). Trata-se do primeiro requisito para a constituição de um ARC. Um ARC que não cubra o essencial das trocas comerciais não visa a integração; na verdade, constituiria um subterfúgio para escapar às provisões do GATT.

O problema reside na interpretação do substantially all, que ocupou diversos grupos de trabalho. No caso do EFTA, v.g., o setor agrícola foi excluído. Criou-se,então, dois critérios não necessariamente excludentes. "O critério quantitativo se inclina pela definição de um valor estatístico de referência, como determinada porcentagem de intercâmbios comerciais entre as partes nos ARCs, que indique que a cobertura de determinado ARC cumpre o requisito" [58]. Pelo critério qualitativo, nenhum setor deveria ficar excluído da liberalização de comércio intrarregional. Este critério visa impedir que um determinado setor mantenha as políticas restritivas que vigoravam antes do compromisso.

Esses termos aparecem também no Acordo GATS. No art. V, § 1º, a), um ARC deve possuir uma "cobertura setorial substancial" do comércio de serviços entre os membros. Entretanto, o dispositivo mencionado encerra uma nota explicativa que interpreta a expressão "em termos de números de setores, volume de comércio afetado e modos de fornecimento". Dispõe, ainda, que nenhum dos 4 modos de fornecimento será excluído. Mesmo assim, a vagueza permanece, pois o artigo nada revela sobre o grau de liberalização que seria necessário para satisfazer a obrigação. Até o presente, não se chegou a uma conclusão definitiva sobre esses termos. [59] Afirmam alguns autores [60] que a tendência seria a de considerar uma porcentagem entre 80 e 90% da totalidade do volume de comércio.

A segunda exigência que um ARC deve perfazer é a de dispor sobre um plano ou programa que contenha previsões precisas sobre o estabelecimento do processo de integração, dentro de um prazo razoável entre o início da integração e o final de um período transitório (art. XXIV, § 5º, c)). Repare-se que estas provisões encontram respaldo no TA. O ato que estabelece esse programa denomina-se "acordo interino". Aqui também se encerra um problema de interpretação sobre o que seria um "prazo razoável" de vigência desse acordo interino. O Entendimento sobre a Interpretação do Artigo XXIV fixou este prazo em 10 anos; uma interpretação mais rígida do que os grupos de trabalho haviam debatido. Determinou, ainda, o dever de prestar relatórios sobre o andamento do ARC a cada dois anos. [61]

O terceiro requisito depreende-se do final do § 4º do art. XXIV, já mencionado. O novo território aduaneiro não deve se prestar a desviar fluxos de comércio, não pode ser trade diverting, mas trade creating. Novamente, a interpretação desta regra não é pacífica, e, mesmo quando um órgão da própria OMC realiza esta análise, a solução nem sempre pode ser aproveitada.

Houve a realização de um "panel" proposto pelos EUA contra a CEE em 1982, segundo o qual aquele país argüia que os acordos de associação entre a CEE e países mediterrâneos de 1975-78 (em particular com Marrocos, em 1976) estariam desviando o comércio tradicional dos produtos procedentes da Califórnia. O Relatório do "Panel" adotado em 1985, não foi jamais adotado pelo Conselho do GATT [por conta do veto da própria CEE]. [62]

O último requisito refere-se somente a uniões aduaneiras e encontra-se previsto no art. XXIV § 5º, a). [63] O estabelecimento da união aduaneira, ou do acordo interino que visa formar a união aduaneira, não deve majorar, no seu conjunto, os direitos aduaneiros que existiam antes do compromisso. Isso possui implicações sobre uma tarifa externa comum. É correlata a essa disposição a medida do art. XXIV. § 8º, a), ii, que prescreve a identidade em essência dos mesmos direitos aduaneiros aplicados por cada Estado-membro do ARC em relação a terceiros países. Segundo a nova interpretação dada ao art. XXIV, esta avaliação "no seu conjunto" deverá, no que concerne a taxas e impostos, basear-se numa média ponderada das tarifas e taxas impostas. Isso implica uma redução ou mesmo eliminação dos níveis nacionais anteriores. Para temperar o rigor dessa disposição, o § 6º prevê, na eventualidade de uma elevação tarifária, a renegociação das concessões, com finalidades compensatórias, entre os membros da união e terceiros Estados. Os direitos de importação representam o principal instrumento de preferência regional, e mostra-se, pois, quase impossível, dentro de um processo de integração, não violar o princípio da consolidação tarifária. [64] Cumpre salientar que essa compensação só poderá ser firmada após a realização de negociações nos termos do art. XXVIII.

Ademais, a notificação deverá ser feita, consoante o § 7º, caput, do art. XXIV, "sem demora". O GATT foi informado da existência do Mercosul em 17 de fevereiro de 1992.

Tal comunicação, contudo, seria feita de maneira transversal, através da informação rotineira prestada pelo Secretariado da ALADI (doc. L/6985, Restricted, de 05/III/1992) sobre várias de suas realizações, dentre as quais se incluía a celebração do Acordo de Complementação Econômica nº 18, (subespécie de acordo de alcance parcial), cujo objetivo tinha sido: "incorporar ao quadro legal da ALADI, aqueles dispositivos do Tratado de Assunção que basicamente dizem respeito à integração do comércio entre tais países (ACE 18)"; diga-se, contudo, que na referida comunicação, o Secretariado da ALADI ressalvava que a mesma estava sendo feita "in advance of the information to be furnished to the contracting parties in due course on measures taken last year by the member countries of the Association under the 1980 Treaty of Montevideo". [65]

O procedimento que se instaura após a notificação é de natureza diplomática e não contenciosa e se divide em duas fases: informativa e decisória. A autoridade não tem poder para modificar a vontade das partes e deve limitar-se a fazer meras recomendações a fim de que os ARCs atinjam a consistência com (consistency with) as normas do GATT. Não há possibilidade de sanção além das medidas reparatórias aos Estados lesados. Por essa razão, a denominação correta é "verificação de compatibilidade". [66]

Até 1996, o procedimento se desenvolvia em um grupo de trabalho. As autoridades do grupo de trabalho eram os próprios membros do GATT que estivessem interessados no deslinde da questão. As Partes Contratantes fixavam os pontos de referência e formulavam questões que julgavam pertinentes para a verificação de compatibilidade, a qual deveriam ser respondidas da melhor forma possível pelos Estados-membros do ARC. Não é difícil de conceber que os cerca de 20 grupos de trabalho não aplicavam critérios uniformes. Por isso, a grande maioria não chegava a conclusão alguma sobre a compatibilidade. [67]

Dessa feita, após o término da Rodada Uruguai, por meio de proposta canadense, o Secretariado da OMC apresentou estudo que explicitava as dificuldades trazidas pela dispersão de análise dos grupos de trabalho. Em dezembro de 1995, foi criado e, a partir de maio do ano seguinte, passou a funcionar o Comitê de Acordos Regionais de Comércio (CARC). [68] Este comitê avocou o exame, entre outros, do NAFTA, da ampliação da CE e do Mercosul, que estava sendo desenvolvido perante um grupo de trabalho.

Essas são as regras a que um ARC se submete para a verificação de sua compatibilidade com o GATT. Em alguns casos, o exame não ocorre em grupos de trabalho ou, como se dá hoje, no CARC. Graças ao recurso à Cláusula de Habilitação, a notificação pode ocorrer num órgão especializado do GATT, no Comitê sobre Comércio e Desenvolvimento.

Ao final da Rodada Tóquio, um dos textos mais importantes intitulado "Tratamento Diferenciado e Mais Favorável, Reciprocidade e Participação Mais Completa dos Países em Vias de Desenvolvimento" foi adotado por Decisão de 28 de novembro de 1980, doc. L/4903 (publicado em GATT Basic Instruments and Selected Documents, 36th. Supplement, março 1981, p. 203-205) e consagrou dois princípios, que passariam a ser referidos, na "terminologia do GATT, como: ‘cláusula de habilitação’ (enabling clause) e ‘clausula evolutiva’ (também denominada ‘cláusula do retorno gradual’, pela qual um Estado que anteriormente gozava de tratamento diferenciado mais favorável, pode notificar sua renúncia ao mesmo)" [69]. Esta cláusula pode ser bem sintetizada pelo seu § 1º: "Não obstante a cláusula do artigo primeiro do Acordo Geral, as Partes Contratantes devem estar de acordo com o tratamento diferenciado e mais favorável aos países em desenvolvimento, sem acordar tal tratamento às outras partes contratantes." [70] Trata-se menos de uma regra e mais de um princípio de não reciprocidade no tratamento entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Não se aplica, exclusivamente, a uma ou a outra situação pré-determinada, mas se traduz num sistema de preferências comerciais. Esta cláusula incide apenas nas relações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento; nos relacionamentos dos dois primeiros grupos de países entre si, ou dos dois últimos entre si, ela não tem eficácia.

Esse princípio se chama cláusula de habilitação, enabling clause, porque não impõe uma obrigação de tratamento diferenciado, mas uma faculdade. O regime jurídico preferencial, pois, comporta alguns limites:

(...) de um lado, a outorga de preferências não constitui uma obrigação jurídica, mas uma simples faculdade para as partes contratantes desenvolvidas (leia-se: industrializadas); de outro, a cláusula não se aplica às preferências especiais tais como as que decorrem da Convenção de Lomé, se bem que uma nota anexa à Declaração permita incluir nela categorias de tratamentos preferenciais não previstas pela própria cláusula. [71]

Antes mesmo da vigência da Cláusula de Habilitação, havia um certo "laxismo" na aplicação das normas do GATT a acordos comerciais que envolvesse países em desenvolvimento. Também consoante o art XXV, § 5º, do GATT (waiver), as partes contratantes, por meio de um ato coletivo podiam eximir um país em vias de desenvolvimento das suas obrigações. Este artigo era aplicado inicialmente em matérias selecionadas de forma limitada, mas depois foi estendido a ARCs. [72] As Partes Contratantes escolhiam deixar esses países seguirem seu curso e buscarem seu desenvolvimento, em vez de aplicar suas disposições na íntegra. A ALALC, por exemplo, não obteve um parecer conclusivo acerca de sua compatibilidade com o GATT. Mas, nem por isso, ela deixou de ser instalada. [73]

A ALADI, por sua vez, foi inscrita em 1º de julho de 1982, na vigência da Cláusula de Habilitação. Merece destaque o fato de ter bastado a simples notificação perante o Comitê sobre Comércio e Desenvolvimento. Não se seguiu o procedimento de constituição de um grupo de trabalho. [74]

As vantagens, portanto, da incidência da Cláusula de Habilitação mostram-se profundas. Além de dispensar a reciprocidade, as provisões do GATT são aplicadas com menor rigor. O fato de um ARC ser notificado perante um órgão de escalão inferior, como o Comitê sobre Comércio e Desenvolvimento, significa que o pedido será recebido por funcionários da organização, sem maior autoridade, o que acaba por resultar, não raro, no não processamento da verificação de compatibilidade ou num resultado inconclusivo. Ao contrário, o processamento perante um grupo de trabalho implica a fixação de termos de referência, baseados nas disposições do GATT, pelos Estados-membros da própria organização, as "Partes Contratantes", que, de modo inconteste, irão buscar resguardar seus próprios interesses.

Tal como se sucedeu com a ALADI, a notificação do Mercosul se daria na vigência da Cláusula de Habilitação; todavia, de maneira diversa daquela organização, haveria o processamento perante um grupo de trabalho (depois avocado pelo CARC). A oposição norte-americana defendia o afastamento da Cláusula de Habilitação, porque o Mercosul envolvia uma variada gama de aspectos de integração econômica desde produtos, serviços e investimentos, com implicações importantes para terceiros países. [75] Por conseguinte, não se subsumiria ao § 2º, c) da Cláusula de Habilitação, que seria apropriado apenas a concessões aduaneiras tradicionais. O resultado final do impasse foi uma solução de compromisso: a referida cláusula teria aplicabilidade, mas a notificação seria processada perante um grupo de trabalho, no qual as Partes Contratantes iriam fixar os pontos de referência e formular uma série de questões aos quatro países. "Importante observar que várias delegações, em particular os delegados da ASEAN e das Comunidades Européias, enfatizaram que ‘tal solução de compromisso não deverá ser considerada como um precedente para o exame de outros acordos de livre comércio’. [76]" Até o presente, os Estados-membros do Mercosul receberam as perguntas, devolveram respondidas e estão esclarecendo alguns pontos que ainda permaneceram obscuros.

Considerações Finais

Ao longo deste trabalho, analisou-se a compatibilidade do Tratado de Assunção com alguns instrumentos de Direito Internacional que o precederam: os Acordos Bilaterais Brasil-Argentina, o Tratado de Montevidéu de 1980 e o GATT 1947. Para tanto, preliminarmente, foi preciso discorrer sobre os princípios gerais de cumulação e sucessão de tratados, bem como aferir a concordância formal do Tratado de Assunção com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.

Constatou-se que os Acordos Bilaterais permanecem em vigor, embora com algumas ressalvas. Do mesmo modo, o Tratado de Assunção não invalida o Tratado de Montevidéu de 1980. Ao contrário, este tratado prevê formas de acordos de integração, entre as quais se encontra o Mercosul. Desta feita, foi preciso averiguar se o Tratado de Assunção se manteve fiel às prescrições referentes à modalidade de acordo regional de alcance parcial. Verificou-se que possuía incongruências, mas as mesmas foram convalidadas quando da subscrição do tratado constitutivo da integração do cone sul como ACE 18.

Em relação ao GATT 1947, a verificação de compatibilidade é realizada pela própria Organização Mundial do Comércio. Ainda não há um parecer definitivo. Uma vez que esta verificação está ocorrendo perante um sistema misto – que permite a aplicação do princípio da não-reciprocidade e, ao mesmo tempo, possibilita as Partes Contratantes do GATT defenderem seus interesses particulares –, o resultado, quando e se ele for atingido, deverá refletir uma interpretação mais diplomática do que propriamente jurídica.

O Tratado de Assunção repercutiu no Direito Internacional como um todo. Criou um processo de integração bastante ambicioso – superado em ambição somente pela União Européia –, alterou normas anteriores e criou um regime jurídico novo na América do Sul. Todas essas modificações não poderiam passar indiferentes a outras regulamentações comerciais e de integração pré-existentes.

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Sobre o autor
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

Professor Adjunto de Direito Internacional Público (UERJ e UFRJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges. A compatibilidade internacional do Mercosul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1851, 26 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11541. Acesso em: 24 dez. 2024.

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