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O Direito das Gentes: entre o direito natural e o direito positivo

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Resumo:


  • O Direito das Gentes (jus gentium) é um ramo do Direito Positivo com fortes vínculos com o Direito Natural, contendo um conteúdo ético de solidariedade entre os povos.

  • Originado em Roma, o jus gentium evoluiu de um direito aplicável dentro de uma comunidade (intra gentes) para um conjunto de normas universais que harmonizavam culturas diversas, tendo um pretor itinerante (praetor peregrinus) como figura central na sua administração.

  • Embora tenha adquirido autonomia em relação ao Direito Natural com o passar dos séculos, o Direito das Gentes manteve seu caráter ético, sendo influenciado por teólogos como Francisco de Vitória e Francisco Suárez, que discutiram sua aplicação e a relação com conceitos como autoridade, soberania e a própria humanidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. As Concepções de Vitória e de Suárez

O Direito das Gentes irá conquistar sua autonomia face ao Direito Natural somente com Francisco de Vitória. Por mais ortodoxo e fiel ao tomismo que fosse, ele vivia num mundo diferente daquele de Santo Tomás. As grandes navegações haviam diminuído o tamanho do planeta. Pela primeira vez, parecia possível um rei se tornar senhor de todo o mundo. Por isso, ele precisou se confrontar com uma questão que o Doutor Angélico ignorou: a capacidade dos índios.

Vitória tratou, pois, de atualizar Santo Tomás. O poder é natural e provém de Deus. São Paulo já havia ensinado isso. 21 Ocorre que Deus distribuiu sua autoridade para todos os povos, não só os cristãos. Os índios também podem exercer soberania e se encontravam em "domínio pacífico de suas coisas públicas e privadas. Logo (salvo outro óbice em contrário), devem ser considerados verdadeiros senhores e, nessas circunstâncias, não se pode despojá-los de suas posses" 22.

Como foi visto, em Santo Tomás, o jus gentium, embora humano – e é isso que se deve entender quando o autor emprega a palavra "positivo" –, é natural. A unidade humana, no Aquinate, é de ordem teológica. Contudo, já em Vitória, se a autoridade se revela natural, e se todos os povos, mesmo os infiéis, podem possuir títulos válidos de domínio, então essa unidade passa a se tornar de ordem política também.

Um evento político que afete um Estado, afeta a todos. Assim, a justiça desse evento deve ser mensurada de maneira global. "Como cada república é uma parte de todo o mundo, e sobretudo uma província cristã parte de uma república, se a guerra fosse útil a uma província ou a uma república, mas fosse prejudicial ao mundo ou à cristandade, penso que por esse fato ela seria injusta." 23

Porque a unidade do todo o mundo não é mais dos homens, mas dos povos, a antiga definição romana precisa ser re-elaborada. O teólogo de Salamanca irá conferir a feição de jus gentium como um direito entre os povos de uma forma bastante simples: substitui, na definição de Gaio, homines por gentes. "É Vitória, nós afirmamos, que iria conferir ao conceito o seu sentido moderno: essa seria a modificação que ele realiza na definição de Gaio ao substituir a expressão inter omnes homines por inter omnes gentes." 24

Neste teólogo, o jus gentium pertence, de forma inequívoca, ao Direito Positivo e não mais existe, como em Santo Tomás e em Santo Isidoro, a distinção entre lei e direito: "Que o direito das gentes não tem força somente por pacto ou convenção dos homens, mas que tem verdadeira força de lei." 25

O fundamento desse direito é um jus communicationem, um direito derivado da solidariedade humana. 26 A orbe como um todo possui o poder de dar leis: "E o mundo todo, que de certo modo forma uma república, tem o poder de prescrever, a todos os súditos, leis justas, como são as de direito das gentes." 27 Vitória escreve já no século XVI; não pensa mais em termos de um "Império Universal" ou uma Respublica Christiana. Essa república universal é somente uma idéia moral, não uma realidade política dotada de coação. Uma lei comum a todos os povos é possível porque deriva sua força da razão.

Cumpre salientar que o autor, nesta questão, mantém-se fiel ao conceito de lei em Santo Tomás ("A lei é uma espécie de regra e medida dos atos, por meio da qual se obriga alguém a fazer ou a se abster." 28). A lei consiste num ditame da reta razão; uma lei válida não precisa de coação, basta haver uma consciência ordenadora. E essa consciência permeia toda a orbe graças à solidariedade humana.

Francisco Suárez rejeita esse argumento do teólogo de Salamanca em virtude de uma opção por um meio-termo entre intelectualismo e voluntarismo. O debate voluntarismo e intelectualismo corresponde a uma questão escolástica sobre as relações entre o intelecto e a vontade na constituição da lei natural. Determinada ação constitui pecado, porque Deus proíbe, ou porque Deus proíbe determinada ação, ela constitui pecado? Consoante o voluntarismo, determinado ato é crime, porque Deus ordenou assim. Já segundo a tese intelectualista, não há dúvida de que tudo, mesmo a lei natural, provém de Deus, mas Ele teria criado o cosmo para um propósito bom e nobre, e existem regras que decorrem da natureza das coisas e que obrigam as coisas para o seu objetivo final. Deus havia criado coisas que seriam intrinsecamente boas; as regras que decorrem da natureza dessas coisas a impelem para o bem. O mesmo ocorreria com o homem. Contudo, como este possui livre-arbítrio, ele poderia frustrar os objetivos e, assim, cometer atos que sejam maus em si mesmos: atos que desvirtuam a natureza. O problema que os voluntaristas apontam é que, depois de criado o mundo, a vontade e a autoridade de Deus se tornariam meros acessórios; Ele próprio não poderia mudar a natureza do que criou. Deus seria subordinado à lei natural, o que representaria um limite ao poder de um Ser onipotente. 29

Suarez, na sua proposta sincrética, responde às objeções voluntaristas sobre o problema da limitação do poder de Deus: trata-se de auto-limitação. Deus, como ser perfeito, não pode errar, e não pode, portanto, emitir dois decretos contraditórios. Nesta questão, o teólogo de Granada permanece fiel ao legado intelectualista de Santo Tomás e de Vitória. Mas ele suaviza esse posicionamento. A lei, para o Doutor Exímio, reúne tanto o intelecto como a vontade: "É certo, em primeiro lugar, que, para produzir a lei, nele intervêm o intelecto e a vontade." 30 A lei consiste num ato intelectual, na medida em que contém diretrizes racionais destinadas a ordenar seres dotados de entendimento. Todavia, além desse momento intelectivo, dentro da mente do legislador, a lei pressupõe um ato de vontade para obrigar os seus destinatários. Desta feita, possui duas funções: uma diretiva e outra preceptiva; numa a lei orienta, noutra ela coage.

Por causa do elemento intelectivo, a lei natural apenas reforça a obrigatoriedade de comportamentos que, em si mesmos, já são bons em si, e proíbe aqueles que já são maus em si. Deus proíbe o que é mau e prescreve o que é bom, mas as coisas são boas ou más mesmo sem a vontade dEle. E não há qualquer limitação à onipotência divina nessa idéia. Num momento primordial da criação de tudo o que existe, o arbítrio de Deus revela-se ilimitado. Ele pode criar deste ou daquele modo: dois e dois poderiam ser tanto quatro ou cinco. Mas uma vez que já houve a criação, Deus só pode ordenar aquilo que se conforma a ela, sob pena de prescrever dois decretos contraditórios. A contradição num ser perfeito revela-se uma heresia muito mais grave do que uma aparente limitação.

No entanto, a lei natural não pode regular todos os aspectos da vida em sociedade. Há uma necessidade de um Direito Positivo humano para terminar essa regulação. 31 E esse direito não trata apenas de esmiuçar os preceitos gerais da lei natural; há uma imensa gama de comportamentos que a lei natural não se ocupou, pois os considera indiferentes do ponto de vista de sua honestidade ou torpeza. Porém, eles podem ser relevantes ao bem comum de uma determinada sociedade. Toda vez que a lei positiva humana proíbe ou ordena um determinado ato dessa natureza, ela cria "positivamente" (com duplo sentido) algo novo onde antes havia apenas uma possibilidade lícita, entre tantas outras. Ela constitui o mal, pois passa também a ser proibido pela lei natural; existe o mala prohibita. 32

Assim, o Direito das Gentes, em Suárez, não apenas declara o mal, como o Direito Natural, mas também o constitui, como ocorre com o Direito municipal na teoria suareziana. Cumpre salientar que, neste ponto, o Doutor Exímio se afasta do Doutor Angélico e dos tomistas anteriores, como Vitória, mas se aproxima do Direito Internacional contemporâneo.

Mas há outras características que aproximam o Direito das Gentes do Direito Natural e o afastam do Direito Positivo, em Suárez. O Direito Civil constitui produto da autoridade, mas esta não é qualidade de indivíduos: a autoridade repousa na coletividade. Ainda assim, essa coletividade não pode ser um simples aglomerado de homens; precisa encontrar-se reunida em um corpo moral. 33 Existem coletividades que não constituem uma comunidade perfeita e, assim, não produzem Direito, não suprem todas as necessidades de seus membros: as famílias, por exemplo. A comunidade perfeita corresponde ao próprio Estado.

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O fato é que a totalidade dos homens não se integrou num só corpo político, mas se fracionou em diversos Estados. "Mas para que estas comunidades pudessem ajudar-se mutuamente e conservar a paz e a justiça em suas relações (que é essencial para o bem comum de todos os povos) foi conveniente que, em suas mútuas relações, pusessem em vigor um acordo sobre algumas leis comuns" 34. Nem mesmo o Estado, a comunidade perfeita, basta a si mesma, mas precisa de assistência recíproca e de proteção. Dessa feita, apesar do realismo de Suárez em constatar a inexistência de uma organização política supraestatal, o fundamento do Direito das Gentes é metafísico: amor e caridade mútua. 35


Conclusões

Mesmo em dois autores da Escolástica tardia – teólogos que representam os dois momentos da Idade de Ouro da Espanha –, o Direito das Gentes conserva o seu conteúdo ético. Mesmo quando este ramo conquistou, em definitivo, sua autonomia do Direito Natural, valores como a solidariedade e o amor lhe conferem um fundamento.

Esse Direito das Gentes, com um conteúdo ético indissociável, teve nascimento e morte: originou-se em Roma e desapareceu, de vez, com a edificação do que hoje se entende por Direito Internacional, o qual, para alguns surgiu com Vattel. 36 O jus gentium distingue-se do seu sucessor por algumas características de ordem histórica e outras de ordem ontológica. Encontram-se entre as primeiras a ausência da noção de soberania e a conseqüente igualdade jurídica dos Estados, bem como a ausência do princípio do pacta sunt servanda.

A última ordem de diferenças decorre de um motivo apenas: "gentes" significa pessoas, não Estados. O Direito das Gentes era aplicado a seres humanos; o plural não implica uma coletividade abstrata maior do que soma de suas partes. O plural designa o fato dele destinar-se às mais variadas culturas, a todos os seres humanos nas suas mais diversas roupagens. Parece um ideal que tem muito a inspirar o Direito Internacional contemporâneo.


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Sobre o autor
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

Professor Adjunto de Direito Internacional Público (UERJ e UFRJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges. O Direito das Gentes: entre o direito natural e o direito positivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1852, 27 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11542. Acesso em: 22 dez. 2024.

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