Capa da publicação Receptação: limites do “deve saber” no dolo direto
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Receptação (de coisas e animais): causa final dos crimes de furto e roubo

06/09/2025 às 21:33

Resumo:

- A receptação é um crime que afronta os cidadãos, sendo responsável por infrações penais graves como furto e roubo.
- A legislação atual trata a receptação com rigor, punindo tanto quem adquire produtos sabendo da origem criminosa quanto quem adquire de forma imprudente.
- A jurisprudência absolve quando não é possível provar se o réu sabia ou deveria saber que a coisa era produto de crime, seguindo o princípio "In dubio pro reo".

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Receptação exige prova do dolo direto; a mera suspeita não basta. Como interpretar “deve saber” no art. 180-A sem ferir proporcionalidade e presunção de inocência?

Sumário: Entre os crimes que mais afrontam e lesam os cidadãos figura a receptação, porque, sobre ameaçar-lhes o patrimônio, é fator responsável por infrações penais graves, como o furto e o roubo. A lei, que protege a um tempo os bens móveis e os semoventes (art. 180-A: receptação de animal), por isso dá combate permanente e rijo ao receptador.


1. Receptação como vetor de criminalidade e evolução legislativa

Na escala dos crimes contra o patrimônio, a receptação ocupa, sem debate possível, um dos pontos mais altos. Revela-o todos os dias a imprensa, forte em dados estatísticos, ilustrados com fotos eloquentes de lugares onde se expõem coisas de procedência ilícita, apreendidas em poder de receptadores: aqui, entulhados em cubículos sombrios, centenas de aparelhos celulares; ali, num depósito clandestino de pseudo-oficina mecânica, diversas carcaças de veículos, a meio desmontados. Tudo, produto de crime!

À frente de tais estabelecimentos não raro aparece uma viatura policial e, algemado, o indivíduo que acabara de receber voz de prisão em flagrante, por ter infringido o art. 180. do Código Penal. 1

A primitiva doutrina penal, tomando em consideração porventura o grau menos exacerbado da malícia humana então reinante, julgava a receptação delito de menor gravidade que o seu pressuposto (ou antecedente), no geral o furto e o roubo.

A legislação atual, contudo, advertindo nas nefastas consequências e danosos efeitos da receptação, pôs timbre em tratá‑la com desconhecido rigor, vedado todo o rasgo de benevolência. A razão deu-a, excelentemente, o ilustre e saudoso penalista Damásio E. de Jesus:

“(…) do antigo joalheiro ou dono de ferro-velho, passamos a enfrentar grupos organizados para a receptação de ouro e joias subtraídos e o desmanche de automóveis, caminhões, aeronaves, lanchas, jet-skis e motocicletas, empregando documentos falsos para encobrir a criminalidade e corrompendo menores e desocupados, muitas vezes ligados ao tráfico de drogas. Em outros casos, armas e munições subtraídas são vendidas e cedidas entre os delinquentes, propiciando e facilitando novos delitos” (Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 689; Editora Saraiva).

Mas, impossível que é penetrar os segredos da alma humana, só as circunstâncias do fato revelarão se o agente (receptador), obrou, ou não, com dolo; delas, unicamente, é que se inferirá se conhecia a origem ilícita das coisas adquiridas em proveito próprio.


2. Dolo direto e receptação culposa

Aquele que, sabendo-as de origem criminosa, adquire coisas a terceiros procede com dolo direto. Está no caso o dono de ferro-velho que, ciente de sua procedência ilícita, recebe das mãos de larápio inveterado dezenas de metros de fio de cobre, furtados havia pouco à rede de iluminação pública; ou o proprietário de oficina mecânica, vezeiro em desmontar veículos, cujas peças avulsas depois vende a pessoas incautas (ou de má índole). Identifica-se de plano, em tais exemplos, a figura penal do dolo (que, segundo tradicional conceituação, é a vontade livre e consciente de praticar um fato que a lei define como crime).

Não basta, entretanto, que o adquirente desconfie; importa saiba — isto é, tenha certeza — que se trata de produto de crime a coisa que a qualquer título recebe.

É a lição lapidar do eminente Nélson Hungria:

“O texto do art. 180. é iniludível: não basta que o agente tenha razões para desconfiar da origem criminosa da coisa, pois cumpre que saiba tratar-se de produto de crime. É imprescindível o dolo direto , isto é, o conhecimento positivo de que se está mantendo a situação ilícita decorrente de um crime anterior” (Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 306).

Em suma: embora, à luz da experiência comum, a apreensão da “res” em poder do acusado, que o não saiba justificar, possa arguir-lhe grave suspeita de crime (pois, de ordinário, as coisas pertencem para a esfera de seu dono, que não de estranhos), não há condená-lo sem prova plena e cabal de sua culpabilidade; indícios, posto veementes, não no autorizam. Somente a certeza é base legítima de condenação).

Para que não ficassem impunes, o legislador não hesitou em trazer à barra da Justiça até mesmo aqueles que, desavisados e imprudentes, afoitaram-se um dia a receber coisa de origem criminosa (pois nem sempre a inocência vê a serpente debaixo das flores!).

Essa hipótese — receptação culposa — faz o objeto do art. 180, § 3º, do Código Penal:

“Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso.

Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa, ou ambas as penas”.

Em guarda, portanto, contra aqueles que, invocando razões as mais variadas e esdrúxulas (e muita vez com lágrimas na voz), instam com pessoas de boas entranhas que lhes adquira (por preço vil) coisas de muito valor, porém de má procedência! Para situações desse feitio já andavam precavidos nossos avós, que, provados nos percalços da vida, não cessavam de repetir: Quando a esmola é demais, o santo desconfia! Ou: A desconfiança é a mãe da segurança.

Nos casos “de bens do patrimônio da União, de Estado, do Distrito Federal, de município ou de autarquia, fundação pública, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviços públicos” (art. 180, § 6º, do Cód. Penal), o legislador, no intento de reprimir a prática desse crime — em que, na frase do distinto jurista Saulo Ramos, “(…) o receptador é o empresário do crime” e o ladrão, “sua mão de obra barata e desqualificada” 2 —, não trepidou em puni-la severamente: “aplica-se em dobro a pena prevista no caput deste artigo” (isto é, art. 180. do Cód. Penal).

Em tais casos, a pena aplicável ao acusado será de dois a oito anos de reclusão e multa.


3. Receptação de animal

Ao capítulo da receptação (art. 180. do Cód. Penal) acrescentou a Lei nº 13.330, de 2.8.2016, novo tipo, assim redigido:

“Art. 180-A – Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter

e m depósito ou vender, com a finalidade de produção ou de comercialização, semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes, que deve saber ser produto de crime:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa”.

O projeto de lei que lhe deu origem, da autoria do deputado Afonso Hamm (PR-RS), apresentou convincente justificação, amparada em motivos de grande peso e relevo: o abigeato (ou furto de gado) era, para o produtor rural, causa de contínua apreensão e angústia, visto lhe suprimia bens imprescindíveis à subsistência própria e da família; ao demais — argumento este de muito alcance! —, a carne das reses abatidas clandestinamente, uma vez exposta à venda e entregue a consumo (ao arrepio dos órgãos de inspeção e vigilância sanitária), representava risco grave e iminente à saúde pública.

Essas foram as principais razões que moveram o legislador a fixar penas, graduando-as com nota de especialidade, àquele que adquirir “semovente doméstico de produção” (por exemplo, boi, cavalo, porco, aves, etc.), “que deve saber” de procedência ilícita. E graças se lhe deem a essa conta!

Mas, para não desmentir a velha máxima da sabedoria das nações — “Errar é humano —, a crítica avisada achou que reparar no teor literal do novo dispositivo (art. 180-A do Cód. Penal).

Com efeito, ao descrever o elemento subjetivo do tipo, o texto do art. 180-A do Código Penal (receptação de animal) empregou a perífrase verbal deve saber , o que rendeu ensejo a oportunas e sensatas observações de penalistas de boa nota.


4. "Sabe" x "deve saber"

Em largo escólio acerca das elementares sabe e deve saber — talvez o mais exaustivo e erudito que ainda veio à luz em livro de doutrina jurídica —, o Prof. Damásio E. de Jesus exarou os seguintes conceitos:

“1) o sabe do caput (do art. 180. do Cód. Penal) indica conhecimento pleno da origem ilícita da coisa; 2) o deve saber (§ 1º) indica incerteza: o receptador não sabe , não tem certeza de que o objeto material é produto de crime, agindo na dúvida. Para ele, pouco importa que a coisa tenha ou não origem ilícita. É por isso que a doutrina liga a expressão ao dolo eventual” (Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 695; Editora Saraiva).

Passos avante, pôs o abalizado jurista a seguinte questão: “Qual é a conduta mais censurável: de quem sabe ou de quem deve saber ?”. Deu ele próprio a resposta lógica e peremptória: “Inegavelmente, de quem sabe , uma vez que tem conhecimento perfeito da situação de fato. Na receptação, tem plena consciência do elemento normativo (produto) de crime . Já quem deve saber não tem certeza a respeito da situação típica. Tanto que, para alguns, age com culpa” ( Idem , ibidem , p. 698).

Após acentuar a discriminação (de cunho intuitivo) entre sabe e deve saber, dissertou particularmente do § 1º do art. 180. do Código Penal (receptação qualificada) — que soa:

“Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime:

Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa” — e pontificou:

(…) o preceito secundário do § 1º — que respeita à sanção ou pena — deve ser desconsiderado, uma vez que ofende os princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização legal da pena. Realmente, nos termos das novas redações, literalmente interpretadas, se o comerciante devia saber da proveniência ilícita do objeto material, a pena é de reclusão de três a oito anos (§ 1º): se sabia , só pode subsistir o caput , reclusão de um a quatro anos. A imposição de pena maior ao fato de menor gravidade é inconstitucional, desrespeitando os princípios da harmonia e da proporcionalidade” ( Idem , ibidem , p. 697).

Por fim, não pôde menos de forjar polida e congruente lição:

“Sugerimos que o preceito secundário do § 1º do art. 180. seja desconsiderado, permanecendo, entretanto, a figura do crime próprio (preceito primário). (…) De modo que: 1º) se o comerciante sabia da origem criminosa do objeto material, aplica-se o caput do art. 180. (preceitos primário e secundário); 2º) se devia saber , o fato enquadra-se no § 1º (preceito primário), com a pena do caput (preceito secundário)” ( ibidem , p. 700).

Tal orientação — que já tem carta de cidadania na Jurisprudência ( cf . Rev. Tribs., vol. 770, p. 579) — foi preconizada para o art. 180, § 1º, do Código Penal (receptação qualificada). Não é muito, porém, que, por via analógica, se entenda também do art. 180-A (receptação de animal), em que a locução verbal deve saber anda às testilhas com o preceito secundário: “Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa)”. 3

Essa inteligência do texto (a operar como emenda à redação defeituosa da lei) é a que, somente, poderá restaurar o prestígio do brocardo, segundo o qual o legislador se presume lógico e sábio.


5. "In dubio pro reo": jurisprudência absolutória

Na receptação, desde que impossível conhecer ao certo se o réu sabia ou devia saber se era produto de crime a coisa que recebera, será força absolvê-lo, por amor do princípio que orna os brasões da Justiça Criminal: “In dubio pro reo”. Isto mesmo praticou a 15a. Câmara do extinto Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, ao confirmar sentença absolutória de réu, acusado de receptação. Adiante vai reproduzido o respectivo acórdão:

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Não evidenciado que o réu tinha consciência da antijuridicidade do fato, será força absolvê-lo da acusação de haver transgredido o preceito do art. 180. do Código Penal, pois, segundo os ditames da lei, ninguém pode ser punido senão quando procede com conhecimento do ilícito.

“Mera suspeita de que o agente tem conhecimento da procedência ilícita não autoriza decisão condenatória” (Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, vol. II, p. 165).

“O texto do art. 180. é iniludível: não basta que o agente tenha razão para desconfiar da origem criminosa da coisa, pois cumpre que saiba tratar-se de produto de crime. É imprescindível o dolo direto , isto é, o conhecimento positivo de que se está mantendo a situação ilícita decorrente de um crime anterior” (Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1980, t. VII, p. 306).

Está nos autos provado que, em consequência de acidente, ficou o réu paraplégico. Tal circunstância, ainda que não poderosa a influir no mérito da causa, faz no entanto impressão forte no ânimo do julgador. O infortúnio é digno sempre de respeito! E se isto, na balança de Têmis, fez descer a concha da absolvição, não há matéria para censura.

Impor alguém pena ao que já está condenado à mais grave de todas; àquele que, preso ao próprio cadáver, de humano só guarda a figura, fora mais do que injustiça, porque seria do mesmo passo iniquidade. A punição, em tal caso, a ninguém aproveitava: seria inútil ao réu porque já condenado a sorver por antecipação o cálice da morte; não interessava também à sociedade condenar quem não lhe podia inspirar outro sentimento que comiseração. Fazem ao intento, por isso, estas sublimes palavras do grande Romeiro Neto: “Não há realmente Justiça sem Piedade” (apud Eliézer Rosa, in Jurídica, nº 110, p. 21).

1. Da r. sentença de fls. 292/294, que absolveu SFS da imputação de infrator do art. 180. do Código Penal, irresignado apela o Ministério Público, pondo o intento em sua reforma, para condenação do réu, pelo persuadirem as provas dos autos (fls. 299/302).

Foi apresentada às fls. 305/308 a contrariedade ao apelo.

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em minucio­so e bem fundamentado parecer do Dr. Oswaldo Henrique Duek Marques, opinou pelo provimento do recurso (fls. 317/319).

É o relatório.

2. O órgão do Ministério Público denunciou o réu perante o MM. Juízo de Direito da 10a. Vara Criminal da Comarca da Capital porque, no dia 19 de janeiro de 1995, cerca de 11h, na Vila de São José, nesta Metrópole, de comum acordo com GMS (em relação a quem foram os autos da ação penal desmembrados) adquiriu em proveito próprio, sabendo tratar-se de produto de crime, um televisor, um aparelho de som e duas caixas acústicas, roubados havia pouco a um caminhão pertencente às Casas Bahia.

Os réus descarregavam de um veículo os objetos roubados, quando os surpreenderam e detiveram policiais militares.

O culto e diligente Magistrado de primeiro grau, Dr. Sérgio Godoy Rodrigues Aguiar, à conta da ausência do elemento subjetivo do tipo, foi servido lavrar decreto absolutório, no que não conveio entretanto a digna Promotoria de Justiça, que pôs recurso para este Colendo Tribunal.

Mas, sem menoscabo dos lisonjeiros predicados de espírito de sua subscritora, não procedem, “data venia”, as razões recursais, pois a r. sentença recorrida decidiu a preceito a controvérsia entretida nos autos.

3. Em seu interrogatório judicial, ofereceu o acusado versão exculpatória para os fatos (fl. 89): acompanhado do corréu Gilmar, que o levaria a um hospital para tratamento fisioterápico, o apelado encontrou, durante o percurso, pessoas que lhe pediram permissão para guardar em sua casa algumas caixas, de cujo conteúdo não lhe deram informação. Entravam já a descarregá-las, quando chegou a Polícia e os levou presos.

Nestas mesmas palavras abundou o corréu (fl. 90).

É certo que, na Delegacia, o apelado catara notável silêncio, o que lhe custou esta objurgatória da Promotoria de Justiça: “Se efetivamente tivesse uma versão plausível, teria falado naquela ocasião” (fl. 300).

Era direito seu, no entanto, permanecer calado, que lho garantia a Constituição da República (art. 5º, nº LXIII).

O corréu porém falou, e fazendo-o apresentou a mesma versão que, ao depois, dariam ambos “coram judice”.

O silêncio do réu, ao contrário do que sente o órgão da Acusação, não pode, no caso, ser interpretado em seu desfavor, porque as declarações do corréu em certo modo o supriram. Seu silêncio, em suma, quebraram-no as palavras do corréu Gilmar; quanto não disse, falou este.

Do interrogatório do corréu consta que não havia “alguma coisa de errado nas caixas” (fl. 90. v.).

Isto de se achar o réu no mesmo veículo em que “estavam as mercadorias, não pode, por si só” — como acentuou a r. decisão apelada —, “alicerçar o decreto condenatório” (fl. 294). É que não firma a certeza de que o agente lhe conhecesse eventual origem ilícita.

4. Não evidenciado tivesse o réu consciência da antijuridicidade do fato, era força absolvê-lo da acusação de haver transgredido o art. 180. do Código Penal, pois, segundo os ditames da lei, ninguém pode ser punido senão quando procede com conhecimento do ilícito.

Princípio é este de aceitação desembaraçada e geral: deve o agente saber que é a coisa produto de crime.

Esta é a doutrina comum dos penalistas:

“Exige, assim, a lei, de forma inequívoca, o dolo direto, não podendo o crime ser praticado com o dolo eventual. A ciência de que a coisa é produto de crime, em caso algum se presume; ela deve ser demonstrada, e essa prova, como sempre, incumbe à acusação. Mera suspeita de que o agente tem conhecimento da procedência ilícita não autoriza decisão condenatória” (Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, vol. II, p. 165).

Ainda:

“O texto do art. 180. é iniludível: não basta que o agente tenha razões para desconfiar da origem criminosa da coisa, pois cumpre que saiba tratar-se de produto de crime. É imprescindível o dolo direto , isto é, o conhecimento positivo de que se está mantendo a situação ilícita decorrente de um crime anterior” (Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1980, t. VII, p. 306).

O mesmo passa nos círculos pretorianos:

“Para a receptação dolosa exige a lei penal vigente que o receptador saiba que a coisa é produto de crime. A prova desse conhecimento não se assenta em presunção, mas em fatos que constituam indícios dos quais decorra a certeza da ação delituosa(Rev. Forense, vol. 163, p. 373).

Ora, no particular de que se trata, ao menos dúvida existe de que o réu soubesse da procedência criminosa das aludidas mercadorias. E esta falta de certeza haverá de beneficiá-lo, em obséquio ao venerando aforismo, universalmente recebido: “In dubio pro reo”.

5. Demais do que, está nos autos provado que, em consequência de acidente, ficou o réu paraplégico. Tal circunstância, ainda que não poderosa a influir no mérito da causa, faz no entanto impressão forte no ânimo do julgador. O infortúnio é digno sempre de respeito!

E se isto, na balança de Têmis, fez descer a concha da absolvição, não há matéria para censura.

Com efeito, impor alguém pena ao que já está condenado à mais grave de todas; àquele que, preso ao próprio cadáver, de humano só guarda a figura, fora mais do que injustiça, porque seria do mesmo passo iniquidade.

A punição em tal caso a ninguém aproveitava: seria inútil ao réu porque já fora condenado a sorver por antecipação o cálice da morte; não interessava também à sociedade condenar quem não lhe pode inspirar outro sentimento que comiseração.

Fazem ao intento, por isso, estas sublimes palavras do grande Romeiro Neto: “Não há realmente Justiça sem Piedade” ( apud Eliézer Rosa, in Jurídica, nº 110, p. 21).

Do que fica dito, claramente se mostra que, fossem porventura débeis os fundamentos do decreto absolutório (o que, todavia, não se concede), bastara a justificá-lo a desgraçada condição do réu.

6. Destarte, pelo meu voto, nego provimento ao recurso.

(Tribunal de Alçada Criminal, 15ª Câmara, Apelação Criminal nº 1.028.637/8, Rel. Carlos Biasotti, j. 2. de janeiro de 1997)


Notas

1 Assento legal do crime de receptação, reza o art. 180. do Código Penal: “Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte; Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa”.

2 Apud Damásio E. de Jesus, op . cit ., p. 690.

3 Ao benévolo e gentil leitor não seja matéria para estranheza isso de nos termos louvado, tão de espaço, no magistério de Damásio E. de Jesus. Expoente das letras jurídicas, foi um dos mais bem reputados autores de Direito Penal. Sua opinião em pontos de doutrina penal e processual penal, era recebida (íamos quase escrevendo como oráculo) pela generalidade dos que militam nas províncias da Justiça Criminal. Fizemo-lo, ao demais, num como preito de saudade e culto à memória daquele, a quem, vai por um lustro, dedicamos um singelo escrito: Damásio E. de Jesus: Honra e Glória do Direito Penal ( in https://jus.com.br/artigos/81048/damasio-e-de-jesus-honra-e-gloria-do-direito-penal).

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Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. Receptação (de coisas e animais): causa final dos crimes de furto e roubo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8102, 6 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115497. Acesso em: 5 dez. 2025.

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