Capa da publicação Da Grécia a Bolsonaro: ostracismo à brasileira?
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Ostracismo à brasileira?

09/09/2025 às 08:27

Resumo:


  • Pisístrato simulou um ataque para obter uma guarda pessoal e instalar a tirania em Atenas.

  • Jair Bolsonaro tentou emular Pisístrato ao criar uma milícia para assaltar a capital, mas fracassou.

  • Enquanto em Atenas o ostracismo era uma forma de lidar com facções rivais, no Brasil o "Lawfare" foi utilizado para excluir adversários políticos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Em Atenas, tiranos sempre exploraram canais democráticos. Em Brasília, Jair Bolsonaro seguiu esse roteiro, mas hoje responde por crimes no Judiciário brasileiro.

A maneira como é tratado o exercício abusivo do poder é uma das coisas que diferencia a democracia indireta moderna da democracia direta que foi criada em Atenas na antiguidade. É claro que os tiranos quase sempre chegam ao poder utilizando os canais democráticos. 

Antes de se tornar tirano e destruir as reformas democratizantes de Sólon, Pisístrato foi estratego (comandante militar eleito), tendo ganhado fama em decorrência de uma vitória militar na guerra contra a cidade de Mégara por volta de 565 a.C. Ao retornar a Atenas, ele simulou ter sido atacado e ferido para exigir e obter uma guarda pessoal. Foi com essa guarda pessoal que ele conquistou a Acrópole e instalou a tirania. 

Segundo Heródoto, “Pisístrato governou os atenienses, não alterando os que eram magistrados nem mudando as leis, e sob essas circunstâncias estabelecidas, administrou a cidade, bela e ordenadamente bem” (Histórias, I 59-60). 

Aristóteles confirma essa versão, afirmando que “Pisístrato, como foi dito, administrava os negócios da cidade com moderação, e antes como cidadão do que como tirano. Em geral, com efeito, era humano, brando e clemente para com os infratores e, em particular, adiantava empréstimos em dinheiro aos que estavam em dificuldades, viabilizando seus trabalhos de modo a se sustentarem com os cultivos das terras. [...] Em geral, durante o seu governo não atormentou a multidão em nada, antes sempre manteve a paz e velou pela tranquilidade; e por isso mesmo, difundira-se a fama de que a tirania de Pisístrato era como a vida no tempo de Cronos – com efeito, o poder se tornou bem mais severo mais tarde, quando seus filhos o sucederam.” (Aristóteles, A Constituição dos Atenienses, XVI, 2, 7-9). 

Tucídides concorda com Heródoto e parcialmente com Aristóteles. Entretanto discorda da versão aristotélica no que se refere à tirania dos filhos de Pisístrato ao dizer que, “na realidade, ele [Hípias] não exercia sobre o povo poder opressivo, mas governava-o sem lhe provocar ressentimentos. Estes tiranos desempenharam seus cargos com máxima integridade e prudência e embora cobrassem aos Atenienses somente a vigésima parte dos seus ganhos, adornaram a cidade de forma primorosa, continuaram as suas guerras e ofereceram sacrifícios nos templos. Além disso, esta cidade continuou a usar as leis antes estabelecidas, mas eles tomaram o cuidado de ter sempre no poder um deles.” (Guerra do Peloponeso, VI. 54, 5-6)

 No período em que a tirania da facção pisistrátida dominou Atenas, ocorreram exílios forçados que se estenderam aos filhos dos cidadãos exilados. O patrimônio desses exilados foi confiscado. Portanto, a “versão ditabranda” da tirania de Pisístrato parece ser mais uma representação artificial dos fatos construída por Heródoto, Aristóteles e Tucídides do que uma representação da verdade factual. O mesmo ocorreria no Brasil em relação à ditadura militar de 1964-1985: o regime tirânico dos militares torturou, assassinou, exilou e provocou o exílio de milhares de cidadãos brasileiros, sendo que o exercício abusivo e violento do poder foi chamado “ditabranda” pela Folha de S.Paulo


O golpe militar de 1964, entretanto, não foi semelhante ao dado por Pisístrato. Quem tentou emular o tirano ateniense foi Jair Bolsonaro. Muito embora não tenha obtido nenhuma vitória militar, seu Jair ganhou uma eleição e utilizou o poder legítimo lhe atribuído para tentar construir uma tirania. Ele até criou uma milícia de policiais, militares e militares aposentados para assaltar a capital, mas o assalto final dos bolsonaristas a Brasília fracassou. 

Pisístrato certamente tinha mais experiência militar e coragem pessoal que Jair Bolsonaro. Além de militar experiente e testado no campo de batalha, ele liderou pessoalmente sua guarda pessoal no ataque à Acrópole, tendo obtido um sucesso que a história negaria ao acabrunhado seu Jair (que fugiu temporariamente para os EUA para poder ter um álibi plausível em caso de derrota). 

Os filhos de seu Jair tentam seguir os passos dos filhos de Pisístrato. Todavia, a parcela de poder que eles exercem é mínimo e eles provavelmente não conseguirão nem mesmo evitar a condenação e a prisão do Pisístrato fracassado tupiniquim. É nesse ponto que a realidade antiga e a moderna se tornam muito diferentes. 

Em Atenas, à época de Pisístrato, a única maneira de lidar com uma facção rival era o exílio forçado. Assassinatos políticos durante conflitos no interior da Polis também não eram incomuns. Após a derrocada da tirania pisistrátida, Clístenes criou um novo instituto para lidar com os problemas resultantes das disputas políticas mais graves sem que fosse necessário recorrer ao exílio e o confisco de bens. Refiro-me ao ostracismo. 

O exílio forçado, como aquele imposto pelos pisistrátidas aos seus inimigos políticos, era uma medida extrema que afetava a família e o patrimônio do exilado. O ostracismo, ao contrário, era objeto de votação, dependia da observância de um quorum e era temporário. O afastamento forçado do cidadão ateniense da cidade por 10 anos não acarretava sanções contra os filhos dele, nem a perda do patrimônio do exilado ou das rendas deste. 

Segundo G.E.M. de Ste. Croix são conhecidos apenas nove ostracismos. Ele cita os três casos mais conhecidos para concluir que:

“… pode-se dizer que o ostracismo funcionou muito bem do ponto de vista dos atenienses do século V, que tinham visões diferentes de nós sobre o assunto da relação entre indivíduo e Estado. Por causa de cada um desses três ostracismos – os de Temístocles, Címon e Tucídides, filho de Melésias – um potencial líder de facção, cuja presença ameaçava a unidade do Estado no campo da política externa, se não também na política interna, foi removido da cidade por tempo suficiente para destruir a resistência que ele e seus seguidores vinham oferecendo ao grupo então dominante, liderado no primeiro caso por Címon, no segundo por Efialtes (e possivelmente Péricles) e no terceiro por Péricles. Com o ostracismo de Temístocles, Címon foi capaz de preservar a amizade ateniense com Esparta, que Temístocles vinha ameaçando, e trazer toda a energia de Atenas para o fortalecimento da Liga de Delos e o prosseguimento da luta contra a Pérsia, culminando na vitória no Eurimedonte, em 469 ou logo depois. Com o ostracismo de Címon, essa política foi revertida: Atenas rompeu com Esparta e seguiram-se as alianças com Mégara e Argos, e a Primeira Guerra do Peloponeso. Ouvimos falar de uma única tentativa de traição  em 457 ou 458), mas, fora isso, havia evidentemente uma grande unidade por trás do novo grupo de líderes democráticos radicais. Com o ostracismo de Tucídides, filho de Melésias, a oposição aberta à política imperial de Péricles parece ter cessado inteiramente; e mesmo os oligarcas extremistas em 411 não desejavam acabar com o império até descobrirem que seria impossível para eles manter tanto o império quanto seus interesses pessoais. De acordo com nossas preferências individuais, podemos acreditar que um ou mais desses ostracismos representaram um erro político por parte dos atenienses. Muitas pessoas podem pensar que o ostracismo de Címon foi um erro. Eu acredito que o erro foi o ostracismo de Temístocles). Mas, de qualquer forma, em cada caso, uma situação que poderia facilmente ter levado à stasis ou à traição da cidade a um inimigo estrangeiro ou pelo menos a uma divisão profunda que teria enfraquecido gravemente Atenas foi sanada, à custa de dez anos da carreira política de um homem.”

(As origens democráticas de Atenas, G.E.M. de Ste. Croix, editora MNEMA, Araçoiaba da Serra SP, 2025. p. 274/275)

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Após o ostracismo de Hipérbolo (cidadão ateniense sem proeminência política e que, apesar de odiado, não representava um perito para a Pólis) o instituto atribuído a Clístenes nunca mais foi utilizado pelos atenienses. Suspeita-se que Alcebíades e Nícias, os líderes das duas facções políticas rivais na época, combinaram o resultado para evitar que um deles fosse ostracizado.

Entre nós, o ostracismo não existe. Todavia, se levarmos em conta os evidentes abusos jurídicos cometidos contra Dilma Rousseff em 2016 (impeachment sem crime de responsabilidade) e contra Lula durante o processo do triplex (processo julgado por um juiz incompetente e suspeito que proferiu condenação desprezando as provas existentes no processo), podemos de certa maneira que, no Brasil, o Lawfare foi uma espécie de ostracismo. A facção neoliberal, liderada primeiro por Michel Temer e depois por Jair Bolsonaro, conquistou e preservou o poder com a exclusão do campo político de seus principais rivais. 

O caso de Jair Bolsonaro, entretanto, não se assemelha a um ostracismo. Ele não é vítima de Lawfare, mas responde uma ação criminal com todas as garantias constitucionais e legais pertinentes. Quem se move contra o fracassado Pisístrato tupiniquim não é uma facção política que domina o parlamento e a presidência impondo sua vontade ao rival mediante abusos jurídicos e processuais. Lula não tem maioria no Congresso e ninguém pode realmente dizer ou sequer imaginar que ele controla o MPF e o STF.

Seu Jair está sendo responsabilizado de maneira legítima pelo sistema de justiça (MPF e STF) porque cometeu atos típicos, antijurídicos e culpáveis. A lei que define o crime imputado a Jair Bolsonaro foi promulgada por ele mesmo e não pelos rivais dele. Ele não é um líder expulso do campo político por uma decisão partidária, mas um criminoso comum, com algum apoio dentro e fora do país. 

Numa democracia como a ateniense, o caso do seu Jair facilmente teria acarretado grande turbulência política rapidamente, desaguando numa tirania ou no exílio forçado, confisco imediato de patrimônio, ostracismo (no período em que o instituto foi utilizado) e/ou assassinato político do tirano e dos seus principais seguidores antes mesmo deles colocarem em marcha as engrenagens do golpe que fracassou apesar de ter destruído parcialmente prédios públicos em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023.

Nós somos muito mais tolerantes e imprudentes do que os gregos, mas a eficiência impessoal do sistema jurídico-penal moderno brasileiro é muito maior do que aquele que existia na Antiguidade. O caso do seu Jair felizmente está sendo resolvido de maneira adequada dentro dos limites da legislação e sem qualquer necessidade de medidas políticas extremas ou não previstas na Constituição Cidadã.

O ostracismo à brasileira, que se tornou uma realidade nos casos de Dilma Rousseff e Lula, não é uma realidade no caso do seu Jair. É claro que ele tentará de todas as maneiras se fazer de vítima, mediante alegações abusivas e até risíveis. Todavia, a retórica dele e dos advogados dele não é uma representação fiel da realidade factual. Ademais, pesa sobre ele uma acusação política e um crime que pode ser considerado tão ou mais grave do que o golpe fracassado: seu Jair usa contatos no exterior para causar prejuízos à economia brasileira e para pressionar ilegalmente os juízes encarregados de julgá-lo. Isso não é coisa de líder patriota, mas de mafioso traidor da pátria.

Ademais, além de ilegítimo e potencialmente criminoso, seu Jair, Eduardo “Bananinha” Bolsonaro, Donald Trump e outros estão tentando impedir o STF de julgar os líderes do golpe que fracassou e coagir os Ministros da Suprema Corte a ignorar o crime cometido, desprezar a legislação em vigor e/ou conceder um perdão judicial indevido a réus que produziram provas contra si mesmos ao longo de quase um ano. A malta autoritária quer criar uma zona artificial de ostracização da democracia e das instituições brasileiras.

Se o PGR e o STF se curvarem à pressão interna e externa que estão sofrendo uma tirania bestial ressurgirá do esgoto com força avassaladora, para dominar o Estado, reduzir a soberania do Brasil e subjugar a vontade popular com evidente destruição de todos os pilares da Constituição Cidadã. Isso é inadmissível e historicamente impensável. O Brasil não pode ser ostracizado pela família Bolsonaro ou por Donald Trump.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Fábio Oliveira. Ostracismo à brasileira?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8105, 9 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115517. Acesso em: 5 dez. 2025.

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