Resumo: O lipedema, uma doença crônica que afeta predominantemente milhões de mulheres no mundo, permanece invisível para a maioria. Mais do que uma questão de saúde, é um desafio para a governança pública e justiça social. Diante de tantos casos e diagnósticos, uma pergunta reverbera: Por que uma condição que impacta a vida e a dignidade de tantas mulheres continua à margem da atenção governamental e corporativa? Por meio de evidências científicas, inclusive internacionais, e de um relato pessoal, essa doença grave consegue gerar impactos físicos, emocionais e sociais. A condição, que afeta majoritariamente mulheres, é marcada pelo acúmulo anormal de gordura em braços, pernas e outras partes do corpo, dores intensas e limitações funcionais. Assim, é fundamental pensar em soluções para que o diagnóstico, o tratamento, a diversidade e a inclusão sejam, finalmente, uma prioridade no Brasil.
Palavras-chave: Lipedema, inclusão, diversidade, dor crônica, políticas públicas, qualidade de vida, saúde da mulher, respeito, acessibilidade, diagnóstico precoce.
1. QUANDO A DOR NÃO TEM NOME: O DESAFIO DO DIAGNÓSTICO
O lipedema é uma condição crônica, progressiva e ainda pouco conhecida, que afeta principalmente mulheres. Caracterizado pelo acúmulo anormal de gordura subcutânea, geralmente nos braços e pernas, podendo atingir outros membros, o lipedema pode causar dor intensa, inchaço e limitações funcionais. Esta doença é muitas vezes confundida com obesidade ou linfedema, o que retarda o diagnóstico e o acesso ao tratamento adequado.
1.1. Obesidade: Quando a Gordura é Acúmulo, Não Doença Localizada
Ao contrário do lipedema, a obesidade é classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença metabólica complexa, resultado de um acúmulo generalizado de gordura corporal que compromete a saúde. Enquanto a obesidade é amplamente reconhecida como uma epidemia global com etiologia multifatorial, respondendo a intervenções como dieta, exercício físico e cirurgias como a bariátrica, a mesma abordagem não se aplica à gordura localizada e dolorosa do lipedema.
A existência de políticas públicas e protocolos de tratamento consolidados para a obesidade, incluindo a cobertura de procedimentos cirúrgicos por planos de saúde e pelo Sistema Único de Saúde Nacional (SUS), contrasta drasticamente com a invisibilidade e a falta de amparo institucional que as pacientes com lipedema enfrentam. Essa diferença evidencia uma lacuna crítica na governança em saúde, onde uma doença conhecida e visível recebe atenção, enquanto outra, tão ou mais incapacitante, permanece à margem.
1.2. Linfedema: O Inchaço que Começa nos Pés
Diferente do lipedema, o linfedema é uma disfunção patológica do sistema linfático, resultando em um acúmulo de linfa e consequente inchaço. Essa condição pode ser primária (congênita) ou, mais frequentemente, secundária a intervenções médicas, como a linfadenectomia em cirurgias oncológicas. Clinicamente, manifesta-se com um inchaço progressivo que, ao contrário do lipedema, frequentemente atinge os pés e as mãos. O diagnóstico se baseia em sinais clínicos, como o Sinal de Stemmer positivo, em que a pele na base do segundo dedo do pé não pode ser pinçada.
O linfedema já possui caminhos de tratamento e reconhecimento institucional mais consolidados, muitas vezes vinculados a clínicas de reabilitação e serviços de oncologia. A existência de diretrizes e protocolos para seu diagnóstico e manejo (como a terapia física descongestiva) demonstra que a comunidade médica e os sistemas de saúde já possuem um entendimento formal dessa patologia.
Tal fato contrasta com a jornada de incerteza das pacientes com lipedema, cujos sintomas permanecem subvalorizados pela falta de reconhecimento e de protocolos clínicos amplamente aceitos.
1.3. Celulite: Uma Questão Estética, Não uma Doença
Diferente do lipedema, a celulite não é uma doença, mas um fenômeno estrutural e fisiológico do tecido subcutâneo. Amplamente presente em muitas mulheres, a celulite resulta de uma interação entre o tecido conjuntivo, a gordura e a pele, que cria o aspecto de ondulações e covinhas. É uma condição essencialmente assintomática, sem dor ou limitação funcional.
Enquanto o lipedema, uma condição dolorosa e incapacitante, permanece em grande parte sem reconhecimento e com tratamentos negados, a celulite é objeto de uma gigantesca indústria de bem-estar e cosmética. Centenas de produtos e procedimentos, desde cremes a tecnologias a laser, são comercializados e acessíveis ao consumidor, refletindo uma prioridade de mercado para questões estéticas em detrimento de condições médicas legítimas.
A confusão entre essas condições é um dos principais motivos do diagnóstico tardio do lipedema, o que reforça a necessidade de protocolos claros e da capacitação de profissionais de saúde.
Essa disparidade ilustra como a saúde da mulher pode ser subvalorizada, com a atenção e os recursos sendo direcionados a preocupações cosméticas, em vez de patologias que causam sofrimento real.
2. A JORNADA SILENCIOSA: DOR, ESTIGMA E O PREÇO DA INVISIBILIDADE
O lipedema é uma doença crônica e progressiva, caracterizada pelo acúmulo anormal de gordura em braços e pernas, que evolui em diferentes graus. Atingindo principalmente mulheres, a condição ganhou um reconhecimento crucial da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Importante destacar que a doença foi oficialmente incluída na Classificação Internacional de Doenças (CID-11) com o código EF02.2, que entrou em vigor globalmente em 1º de janeiro de 2022, apesar de a CID-11 ter sido adotada pela OMS em 2019.
Embora o código esteja em vigor no mundo todo, a realidade no Brasil ainda enfrenta desafios. A implementação completa da CID-11, prevista para 2025, foi adiada no país, somente, para 2027.
No entanto, o reconhecimento da patologia na classificação internacional é fundamental, pois facilita o diagnóstico padronizado, o acesso a tratamentos especializados e a busca por amparo legal e institucional, transformando uma condição individual em uma questão de saúde pública.
A vivência com o lipedema, frequentemente em estágios avançados como o grau 3, traduz-se em um cotidiano de dor constante e limitações físicas debilitantes. As dores, que afetam braços e pernas de forma significativa, não são apenas um sintoma, mas uma realidade que impacta a autonomia e a qualidade de vida do paciente que se encontra afetado por esta doença terrível.
Este quadro, no entanto, é apenas a face visível de uma batalha silenciosa, travada por milhares de mulheres que enfrentam os desafios impostos por uma condição pouco compreendida e socialmente estigmatizada.
A dimensão dessa batalha silenciosa pode ser traduzida em números dramáticos, que revelam o custo da inação perpetrada ao longo dos séculos:
Indicador |
Dado Científico |
Fonte |
|---|---|---|
Prevalência mundial em mulheres |
De 11% a 18% |
Meyer et al. (2021); Forner-Cordero et al. (2012) |
Afeta homens? |
Raríssimo (<2% dos casos relatados) |
Forner-Cordero et al. (2012) |
Idade de início |
Geralmente na puberdade, gestação ou menopausa |
Allen & Hines (1940); Meyer et al. (2021) |
Tempo médio até diagnóstico |
De 15 a 20 anos após início dos sintomas |
Lipedema Foundation (2022) |
Mulheres com dor diária |
Cerca de 88% das pacientes |
Herpertz et al. (2020) |
Prevalência de depressão e ansiedade |
Alta, devido ao estigma e dor crônica |
Wolkenstein et al. (2019) |
A indústria da beleza lucra com a insegurança, enquanto o sistema de saúde falha em reconhecer uma doença que causa sofrimento real. O diagnóstico tardio e a falta de tratamento, revelados por esses dados, são o reflexo mais cruel de uma comunidade mundial que prioriza a estética sobre a saúde.
A sociedade, que impõe uma visão idealizada e excludente do corpo que desvia do padrão, inflige às mulheres com lipedema uma série de penalizações severas.
Por atingir predominantemente mulheres, o lipedema enfrenta um sério desafio de reconhecimento. Seus sintomas clínicos, como a dor e o inchaço, são frequentemente minimizados ou mal interpretados por profissionais de saúde e pela sociedade, que os associam a problemas puramente estéticos ou a alterações hormonais. Essa negligência diagnóstica é agravada por um discurso moralizante que culpa a paciente por sua condição, reforçando o preconceito de que a doença seria resultado de falta de disciplina ou hábitos inadequados. Esse viés de gênero não apenas posterga o diagnóstico, mas também aprofunda o sofrimento psicológico.
Em verdade, o lipedema é uma patologia que gera dor e sensibilidade tátil no tecido adiposo. O acúmulo de gordura e o processo inflamatório crônico que o acompanha resultam em hiperalgesia, ou seja, uma dor intensa ao toque e à pressão. Além disso, a progressão da doença causa um comprometimento funcional que vai além da estética, afetando a mobilidade, a prática de atividades físicas e, em casos mais graves, a realização de tarefas básicas. Essa limitação progressiva não apenas reduz a qualidade de vida, mas também aumenta o risco de outras comorbidades e agrava o ciclo de sofrimento. Inúmeras mulheres são acometidas por essas dores, essas inflamações e essas e outras limitações progressivas, frequentemente sem compreender a natureza patológica do problema. Essa falta de percepção sobre a seriedade da doença, aliada à ausência de conhecimento médico, contribui para um diagnóstico tardio e para o agravamento do quadro.
O estigma social, a busca frustrada por um diagnóstico e a sensação de fracasso por não conseguir emagrecer nas áreas afetadas reforçam quadros de tristeza e desconforto físico que afetam a saúde mental. O lipedema, por sua natureza visível e frequentemente confundida com obesidade, acarreta uma profunda carga psicossocial. A estigmatização, o julgamento social e o bullying verbalizado com termos depreciativos minam a autoestima e a autopercepção da paciente, que se sente "feia" e inadequada. A busca frustrada por um diagnóstico e a sensação de fracasso diante da ineficácia de dietas e exercícios reforçam quadros de depressão e ansiedade. Além disso, o corpo, que deveria ser um meio de expressão, torna-se uma fonte de constrangimento e exclusão, limitando a escolha de vestuário e a participação em atividades sociais. A batalha contra a doença, portanto, estende-se ao campo emocional, onde a paciente luta para manter sua dignidade e saúde mental em um ambiente que a julga e a invisibiliza.
A falta de reconhecimento profissional e social do lipedema é um dos seus maiores desafios. Inúmeros relatos de pacientes descrevem uma verdadeira peregrinação médica, passando por múltiplos especialistas que não identificam corretamente a doença. Às vezes, a título de exemplo, muitos profissionais da saúde tratam o caso como obesidade ou falta de disciplina. Essa lacuna de conhecimento na formação e na prática clínica resulta em anos de diagnósticos errôneos e tratamentos ineficazes, que não apenas atrasam a intervenção correta, mas também aprofundam o sentimento de frustração e a invisibilidade. O consequente uso de medicamentos desnecessários, a polifarmácia e a negligência do quadro real podem levar ao surgimento de novas comorbidades ou ao agravamento do próprio lipedema, demonstrando o risco físico direto que o descaso profissional impõe. Esse ciclo de desinformação e tratamentos ineficazes reforça a percepção social de que a condição não é uma doença legítima, perpetuando o ciclo de sofrimento e negligência.
O lipedema é uma evidência da falha na governança em saúde no mundo. A carência de políticas públicas robustas e de protocolos clínicos nos sistemas de saúde (público e privado) cria um cenário de total desamparo para as pacientes. A negação sistemática de cobertura para tratamentos eficazes por planos de saúde transforma a busca por alívio em uma exaustiva batalha judicial. Essa falta de amparo institucional não apenas nega o direito ao tratamento, mas também demonstra uma profunda iniquidade no sistema, onde o reconhecimento de uma doença depende de sua visibilidade e de sua classificação dentro de um quadro regulatório deficiente. A luta da paciente, que já é contra a própria doença, se torna também uma luta contra a estrutura que deveria ampará-la. Trata-se da existência real de barreiras ao acesso a tratamento.
Por ser frequentemente confundido com obesidade ou negligência nos cuidados pessoais, o lipedema carrega um estigma que agrava o sofrimento. Essa invisibilidade reforça o sentimento de isolamento e perpetua um ciclo de frustração e negligência, dificultando a busca por um diagnóstico preciso e por tratamentos adequados.
Esse cenário revela uma lacuna crítica no sistema de saúde e na sociedade. A ausência de políticas públicas robustas, a escassez de centros especializados e a falta de cobertura para tratamentos eficazes por sistemas de saúde são reflexos de uma prioridade equivocada. A batalha contra o lipedema, portanto, não é apenas médica, mas também social, cultural e estrutural. Ela demanda a construção de uma sociedade mais inclusiva, onde a diversidade dos corpos seja respeitada e as necessidades de saúde sejam reconhecidas, independentemente do estigma associado.
No entanto, em meio a tamanhas penalizações, o clamor por dignidade começa a encontrar um eco. A falta de amparo e de conhecimento sobre a condição já ganha voz em esferas oficiais. O recente reconhecimento internacional do lipedema pela OMS encontra repercussão em iniciativas locais no Brasil, como as ações de conscientização promovidas pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.
O passo tímido foi dado pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, a qual concentrou seus esforços em uma campanha de conscientização e divulgação sobre o lipedema no Brasil, objetivando iniciar o aculturamento, a educação da população e, sobretudo, os profissionais de saúde sobre a doença, que ainda é pouco diagnosticada no Brasil.
Embora não tenha lançado um programa de tratamento específico, a iniciativa lançada em 2022 pela Secretaria do Governo de São Paulo foi um passo fundamental para dar visibilidade institucional à condição. Por meio de materiais informativos e ações durante o "Mês de Conscientização sobre o Lipedema", a Secretaria buscou alinhar o estado de São Paulo ao reconhecimento internacional do tema, reforçando a importância do diagnóstico precoce e do tratamento adequado para evitar o agravamento do quadro clínico.
Embora esse movimento represente um inicial alívio e um vislumbre de futuro, é apenas o início de um longo percurso. O debate sobre a inclusão e o respeito à diversidade dos corpos ainda não se traduz em um avanço que chegue à ponta, onde a paciente continua sua luta diária. A mulher que convive com essa condição persiste em um cenário de profunda dor e sofrimento, à espera de que a atenção institucional se converta em ações concretas e que a saúde seja, finalmente, mais valorizada que a aparência.
O lipedema, assim, é uma doença crônica que atinge predominantemente mulheres, e que vem ganhando atenção gradativa, embora ainda esteja envolto em desinformação, preconceitos e barreiras significativas. Como dito acima, a condição, caracterizada pelo acúmulo anormal de gordura subcutânea e pela dor crônica, não afeta apenas o corpo físico, mas também a saúde mental e emocional das pessoas acometidas.
Assim, o lipedema se torna uma questão multifacetada que ultrapassa as barreiras da saúde. Ele toca na urgência de construir uma sociedade mais inclusiva, onde a diversidade dos corpos seja respeitada e acolhida, e onde políticas públicas inovadoras sejam implementadas para melhorar a qualidade de vida das pessoas que convivem com essa doença. A batalha contra o lipedema, portanto, não é apenas médica, mas também social, cultural e estrutural.
Frisa-se, embora o lipedema seja frequentemente confundido com obesidade, falta de disciplina ou linfedema, em realidade, é uma condição distinta, com causas e tratamentos próprios. Todavia haja algumas figuras públicas e personalidades que se tornaram mais abertas sobre a doença, ainda é uma condição pouco discutida e reconhecida pela maioria das pessoas. Algumas, sentem vergonha de falar sobre sua doença ou de tê-la como diagnostico.
3. CASOS FAMOSOS
A cantora e atriz Demi Lovato tem sido aberta sobre suas dificuldades com a imagem corporal e questões relacionadas à saúde. Embora ela não tenha confirmado publicamente o diagnóstico de lipedema, muitos especulam que ela tenha sido afetada pela condição, dada a dificuldade crônica que ela demonstrou em controlar seu peso e a aparência de suas pernas, além de uma predisposição genética. Essa especulação sobre o caso de Demi Lovato é amplamente discutida em artigos de saúde e bem-estar, como no portal Women's Health e em sites de especialistas em lipedema.
A treinadora do programa "The Biggest Loser", Jillian Michaels, foi diagnosticada com lipedema e revelou que parte de seu sofrimento com a gordura corporal persistente, especialmente nas pernas, poderia ser explicada pela condição. Ela mencionou como o lipedema afetou suas tentativas de emagrecimento, apesar de manter uma rotina de exercícios e alimentação saudável. Interessante ressaltar que a própria Jillian Michaels confirmou seu diagnóstico em diversas entrevistas, incluindo uma para o portal People e o The Doctors .
A austríaca Natascha Kampusch, que foi sequestrada e mantida em cativeiro por anos, revelou em sua autobiografia que ela havia sofrido com lipedema antes de ser sequestrada. Ela compartilhou com seus leitores como a condição afetou sua autoestima e sua percepção de seu corpo durante e após a experiência traumática. Esta informação está presente na autobiografia de Natascha Kampusch, 3.096 Dias.
A cantora e compositora Alanis Morissette falou publicamente sobre suas lutas com a imagem corporal e o impacto do estigma de gênero em sua vida. Mesmo sem que seu diagnóstico de lipedema seja confirmado, suas descrições de ganho de peso em áreas específicas do corpo e de um processo crônico de dor em certas regiões de seu organismo, incluindo face, braços e pernas são compatíveis com a condição. Alanis Morissette abordou suas experiências em entrevistas e em seu livro de memórias, Jagged Little Pill.
Mesmo que essas figuras públicas tenham ajudado a dar visibilidade à doença, a luta diária de milhares de mulheres, como a minha, permanece invisível.