Capa da publicação Lipedema: dor invisível e luta por dignidade
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Lipedema: o desafio oculto que o Brasil precisa encarar

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17/09/2025 às 08:46
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8. DA LITERATURA À PRÁTICA: O DESAFIO BRASILEIRO DE IMPLEMENTAR A CIÊNCIA DO LIPEDEMA

Apesar de ser uma condição ainda pouco conhecida no Brasil, a literatura científica sobre o tema tem avançado consideravelmente. Um marco de grande relevância é o Consenso Brasileiro de Lipedema pela Metodologia Delphi, publicado em 2024 no renomado Jornal Vascular Brasileiro.

Elaborado por um painel de mais de 100 especialistas de diversas áreas, este consenso estabelece diretrizes claras e atualizadas para o diagnóstico, tratamento e manejo do lipedema. O documento é uma ferramenta fundamental para combater a desinformação e serve como um guia oficial para a comunidade médica, mostrando que a análise do tema no Brasil está alinhada com as mais recentes evidências científicas.

Em nosso país, o lipedema ainda não é amplamente discutido, e não há muitos casos amplamente conhecidos ou documentados de figuras públicas com a condição. No entanto, algumas iniciativas e relatos pessoais têm ganhado atenção nas redes sociais e entre comunidades de apoio.

Algumas influenciadoras e mulheres que possuem lipedema no Brasil começaram a compartilhar suas histórias de forma mais aberta, ajudando a aumentar a conscientização e a disseminar conteúdo e informações sobre a doença:

Tatiane Mattos é uma das influenciadoras brasileiras que falam sobre o lipedema, compartilhando sua experiência de convivência com a condição. Ela usa sua plataforma para educar e inspirar outras mulheres a buscar diagnóstico e tratamento adequado.

Aline Lima, que também compartilha sua experiência nas redes sociais, tem se destacado no Brasil como uma ativista do movimento de conscientização sobre o lipedema. Através de suas postagens, ela busca desmistificar o lipedema, abordando a condição de forma aberta e positiva.

O lipedema também tem sido abordado em estudos médicos realizados no Brasil, embora esses casos geralmente não envolvam figuras públicas, mas sim pacientes que participaram de tratamentos e pesquisas.

A USP, por meio de sua Faculdade de Medicina, tem desenvolvido pesquisas sobre o lipedema, principalmente em relação ao diagnóstico e à lipoaspiração para tratamento da condição. Algumas pacientes que participaram desses estudos têm compartilhado suas experiências com a condição.

Clínicas de cirurgia plástica e dermatologia, como a Clínica do Corpo e a Clínica do lipedema, têm atendido mulheres com o diagnóstico da doença. Elas oferecem desde tratamentos não invasivos até cirurgias como a lipoaspiração para lipedema, com o intuito de melhorar a qualidade de vida e reduzir os sintomas da condição. Em suas plataformas, os pacientes frequentemente compartilham histórias sobre como o lipedema impactou suas vidas.

Existe um movimento crescente no Brasil, conhecido como "lipedema Brasil", que busca aumentar a conscientização sobre a doença. Pessoas diagnosticadas com lipedema e seus familiares têm participado de campanhas e eventos educativos para esclarecer a sociedade sobre a condição.

Embora não haja muitos casos amplamente divulgados de celebridades ou figuras públicas no Brasil com lipedema, muitas pacientes compartilham suas histórias em grupos fechados de apoio no Facebook, Instagram e outros fóruns online. A maioria dessas mulheres relatam dificuldades no diagnóstico e no tratamento, mas também destacam os benefícios do tratamento cirúrgico e de suporte emocional para lidar com a condição.

Embora o lipedema seja uma condição pouco discutida em solo nacional e não haja muitos casos de figuras públicas amplamente reconhecidas com a doença, a conscientização tem aumentado com o trabalho de influenciadoras e grupos de apoio. Com mais estudos e relatos de pacientes sendo compartilhados, espera-se que a visibilidade e o entendimento sobre a condição cresçam ao longo do tempo.

O lipedema, embora ainda não amplamente reconhecido, está ganhando cada vez mais visibilidade devido aos relatos de figuras públicas e ao trabalho de organizações que promovem a conscientização. É importante destacar que, ao se tratar de uma condição médica, é fundamental obter o diagnóstico de um especialista e seguir orientações médicas adequadas.


9. DO PRECONCEITO À PATOLOGIA: A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO LIPEDEMA NA MEDICINA E NA SOCIEDADE

A história da medicina reflete profundamente as crenças, preconceitos e avanços tecnológicos de cada época. No caso de condições relacionadas à gordura corporal, como o lipedema, a trajetória é marcada pela falta de entendimento científico e por interpretações culturais muitas vezes prejudiciais, especialmente às mulheres.

9.1. O Contexto Histórico: Da Antiguidade ao Iluminismo

Na Antiguidade Clássica, a gordura corporal já era vista sob um viés moral e estético (FOUCAULT, 1979). Nos textos médicos gregos e romanos de Hipócrates e Galeno, o excesso de gordura corporal era tratado como uma desarmonia dos humores. Mulheres com acúmulo visível de gordura nas pernas ou braços eram frequentemente rotuladas como portadoras de um "defeito" natural, atribuindo suas características a falhas de comportamento ou fraqueza moral.

Vênus de Willendorf é uma escultura do Paleolítico Superior que representa um corpo com acúmulo de gordura, simbolizando fertilidade e prosperidade. Sua forma histórica contrasta com o estigma posterior imposto a condições como o lipedema, sugerindo que a doença já afetava as mulheres há milênios.

Na Idade Média e no Renascimento, a visão do corpo feminino tornou-se ainda mais restritiva com a influência religiosa. O acúmulo de gordura em áreas específicas era muitas vezes interpretado como um castigo divino ou uma manifestação de impureza (BROWN, 2017). Já no Iluminismo, com o surgimento da ciência moderna, o corpo começou a ser estudado de maneira mais sistemática, mas mulheres com lipedema eram frequentemente vistas como "anômalas", e sua condição era reduzida a questões estéticas. Textos médicos do século XVIII e XIX as descreviam com um "problema visual" que prejudicava a feminilidade e a "simetria natural" esperada do corpo feminino.

9.2. O Século XX e o Reconhecimento do lipedema

Somente no século XX, o lipedema começou a ser reconhecido como uma condição médica distinta. Em 1940, os pesquisadores Edgar Allen e Earl Hines, da Clínica Mayo, descreveram o lipedema pela primeira vez como uma doença crônica, caracterizada pelo acúmulo de gordura subcutânea simétrica e progressiva (ALLEN; HINES, 1940). Eles observaram que a condição não respondia a dietas ou exercícios convencionais e que estava frequentemente associada a dor crônica.

Apesar da descoberta, a compreensão do lipedema permaneceu limitada, e seu impacto na qualidade de vida foi amplamente ignorado. Por décadas, mulheres continuaram enfrentando julgamentos sociais, sendo rotuladas como "preguiçosas" ou "desleixadas". Além disso, o preconceito médico e a falta de pesquisas aprofundadas retardaram o desenvolvimento de tratamentos eficazes.

9.3. Estigma e Desafios na Contemporaneidade

Na contemporaneidade, o avanço da medicina e a inclusão de perspectivas femininas na pesquisa têm começado a mudar esse cenário. Descobriu-se que o lipedema não é e nem nunca foi uma questão estética, mas uma condição com impacto significativo na saúde física e mental, podendo causar acúmulo de gordura em órgãos internos e prejudicar a mobilidade e a circulação (CONSENSOS BRASILEIRO, 2024).

O desafio é superar séculos de estigmas e preconceitos para construir uma abordagem médica e social que valorize o corpo em sua diversidade. O lipedema, antes visto como uma "falha estética", é agora entendido como uma doença que demanda atenção, respeito e, acima de tudo, inclusão.


10. PROTOCOLOS DE INCLUSÃO: UMA ABORDAGEM CINETÍFICA E HUMANISTA PARA AMBIENTES INCLUSIVOS

A promoção de ambientes profissionais, de entretenimento e de lazer que sejam verdadeiramente inclusivos para pessoas com lipedema transcende a mera adequação física; ela representa uma evolução na cultura corporativa e social. A transição de um modelo de reatividade para um de proatividade é imprescindível para garantir a dignidade e a plena participação desses indivíduos.

A aplicação de um protocolo de inclusão no ambiente de trabalho, por exemplo, não se restringe a ajustes isolados, mas a uma visão holística que busca mitigar os sintomas da doença. Isso inclui a disponibilização de mobiliário ergonômico que suporte a circulação dos membros inferiores, a implementação de pausas programadas para alívio da estase linfática, a oferta de jornadas de trabalho flexíveis para acomodar o manejo da dor crônica e a adoção de um código de vestimenta que priorize o conforto terapêutico em detrimento de padrões estéticos rígidos.

Do mesmo modo, a infraestrutura de lazer e convívio social deve ser repensada sob a ótica da acessibilidade plena. Isso implica garantir o acesso a assentos confortáveis em cinemas e eventos, a disponibilização de espaços adequados para descanso em parques e shoppings, e a conscientização dos prestadores de serviço sobre as necessidades específicas de mobilidade e conforto de quem convive com o lipedema.

É fundamental que a sociedade compreenda que a dificuldade de locomoção e as dores crônicas do lipedema exigem uma nova ética social, aplicada a todos os ambientes, desde as filas de aeroportos e o transporte público até a adaptação de locais para concursos públicos e a flexibilidade para as consultas médicas e psicológicas mais frequentes, essenciais para o manejo da doença.

Tais medidas, fundamentadas em princípios de design universal e responsabilidade social, não apenas melhoram a qualidade de vida e o desempenho profissional dos pacientes, mas também fomentam um ecossistema mais justo e empático, onde o valor de um indivíduo não é medido por sua conformidade com um padrão físico, mas por sua capacidade de contribuir e participar plenamente da sociedade.

10.1. Uma Nova Ética: A Inclusão como Lógica Social e Corporativa

A falta de reconhecimento científico e social do lipedema faz com que conviver com a condição seja um desafio diário que vai muito além das dificuldades físicas. As cobranças sociais por um corpo padronizado ignoram a complexidade dessa condição, muitas vezes rotulando as pessoas afetadas como sedentárias ou descuidadas com a saúde. A verdadeira inclusão, no entanto, não reside apenas em adaptar espaços, mas em redefinir a nossa lógica de dignidade e produtividade.

Uma nova abordagem requer, antes de tudo, empatia radical e a aceitação de que a saúde não se mede em quilogramas ou na ausência de dor. Condições como o lipedema demandam uma reinvenção de nossos ambientes sociais e de trabalho, baseada em três pilares disruptivos:

  • Por que não criar um selo de reconhecimento "Lipedema-Friendly" para empresas e espaços públicos que realmente valorizam a inclusão? Essa certificação iria além de cadeiras ergonômicas, exigindo ambientes que compreendam a necessidade de pausas, a importância do movimento e uma gestão que apoie a saúde do funcionário. Seria um compromisso com a dignidade, não apenas com a lei.

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  • A tecnologia pode ser usada para monitorar o inchaço, alertar sobre picos de dor ou sugerir micro-movimentos que ajudem a circulação. Um aplicativo ou uma plataforma baseada em inteligência artificial poderia criar um plano de bem-estar personalizado, tornando a gestão do lipedema uma ferramenta de produtividade consciente, e não uma barreira.

  • Em vez de lutar por um corpo que o lipedema nunca permitirá, a nova lógica é celebrar o "corpo essencial" – aquele que, apesar das limitações, é capaz de agir, sentir e contribuir. Essa visão nos liberta da perseguição por padrões estéticos e nos permite focar no que realmente importa: a capacidade humana de viver, amar e ser feliz, independentemente da aparência ou das dificuldades físicas.

Essa inclusão é fundamental não apenas para garantir a saúde, mas para quebrar os paradigmas de uma sociedade que insiste em punir a diversidade. A luta pelo lipedema, portanto, não é só pela saúde, mas pela dignidade e por uma nova forma de existir.

10.2. A Revolução na Saúde Pública e Suplementar

O maior obstáculo para quem tem lipedema é a falta de reconhecimento e de um protocolo de cuidado integral nos sistemas de saúde, tanto no SUS quanto nos planos privados. Uma verdadeira revolução nesse campo exigiria a aceitação oficial da doença e a implementação imediata de um tratamento multidisciplinar e intersetorial em todos os níveis de atendimento.

A existência do código CID-11 (EF02.2), que classifica o lipedema como uma doença do tecido adiposo, é apenas o primeiro passo. O verdadeiro desafio é ir além da burocracia das classificações e garantir, de fato, a dignidade e o tratamento integral para uma condição que, apesar de não ser oficialmente uma "deficiência física", compromete profundamente a mobilidade e a qualidade de vida. Este protocolo deve incluir, sem burocracia e limitações, o acompanhamento por uma equipe completa de especialistas, tais como:

  • Cirurgião Vascular: Para o diagnóstico diferencial e manejo de problemas circulatórios.

  • Cirurgião Plástico: Essencial para o tratamento cirúrgico através de lipoaspiração específica para lipedema.

  • Endocrinologista: Para controle hormonal e metabólico.

  • Nutricionista: Para um plano alimentar anti-inflamatório.

  • Fisioterapeuta e Massagista Linfático: Para a terapia compressiva e drenagens manuais.

  • Neurologista: Para o manejo da dor crônica e neuropatias associadas.

  • Dermatologista: Para o cuidado da pele e do tecido subcutâneo.

  • Educador Físico: Para a prescrição de exercícios adequados.

  • Psicólogo: Para o suporte emocional e o enfrentamento do estigma e outros.

Além disso, a condição crônica do lipedema, que, embora ainda não classificada como deficiência pelo CID-11, compromete drasticamente a qualidade de vida, deveria garantir prioridade de atendimento em filas e em serviços de saúde.

O reconhecimento da doença como uma condição de saúde pública é o primeiro passo para garantir que os pacientes não precisem mais travar batalhas judiciais para ter acesso a um tratamento que é um direito, não um privilégio.

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Sobre a autora
Elise Eleonore de Brites

Professora, Palestrante. Advogada, Administradora com formação em Auditoria Líder em ISO 19600 e 37001. Trainer. Coach. Hipnoterapeuta. Agente de Compliance. Pós-graduada em Português Jurídico, bem como em Direito Público com ênfase em Compliance. Estudou no Tarsus American College - Turquia. Foi fundadora da Associação Nacional de Compliance – ANACO. Membro da Comissão de Combate à Corrupção e da Comissão de Compliance da OAB/DF. Vice-Presidente da Comissão de Legislação, Governança e Compliance da Subseção da OAB de Taguatinga. Desde dezembro de 2019 é Agente de Integridade na Assessoria Especial de Controle Interno do Ministério da Justiça. É Analista Superior de uma Grande Estatal Brasileira. Atuou como gestora em entidades públicas e privadas por vários anos. Criteriosa Civilista e Criminalista com vigoroso trabalho na área da Conformidade. Profissional com vários anos de experiência no assessoramento de líderes, alta gestão, bem como auxílio jurídico, incluindo as políticas anticorrupção e a implementação do Programa de Integridade. Com forte atuação nas áreas de Governança, Gestão de Riscos e Compliance, tanto no setor público, quanto no privado. Conferencista, Debatedora e Palestrante nos mais variados temas. É Instrutora do Procedimento de Apuração de Responsabilidade - PAR; Gestão do Programa de Integridade; Código de Conduta e Integridade; Sistema de Compliance entre outros. Sólidos conhecimentos na condução de assuntos de gestão, sobre anticorrupção e mitigação à fraude e due diligences de terceiros, com análise, revisão e implementação de programas de conformidade. Vasta experiência com organismos internacionais no Brasil. Em suas atividades cotidianas, analisa e revisa pautas, constrói mapeamentos de Compliance, realiza auditorias, prima pela aplicação de metodologias de Compliance, trabalha com a aplicação de penalidades, faz investigações in e out company, realiza treinamentos e cursos internos e externos entre outras tarefas atreladas ao cumprimento normativo nacional.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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