3. POLÍTICA CRIMINAL DIFERENCIADA E O EQUILÍBRIO ENTRE INTERESSES COLETIVOS COLETIVA E DIREITOS INDIVIDUAIS
Conforme destacado, não há que se falar em direito absoluto, na verdade, a afirmação de que não existem direitos ilimitados se converteu em cláusula de estilo na jurisprudência dos tribunais competentes em matéria de direitos humanos44.
Com efeito, Ernani de Menezes Vilhena Júnior salienta que não é possível o reconhecimento de um direito fundamental individual sem a ponderação de interesses com o ônus eventualmente gerado à sociedade. Argumenta que, verificada a existência de um conflito, surge a necessidade da inclusão de mais um elemento na operação de adequação do fato à norma: o valor. A partir dessa etapa, iniciará o operador do Direito o processo denominado “ponderação de interesses”, que consiste no sopesamento, na avaliação dos princípios em conflito e a opção equânime, pelo princípio que represente o maior valor para o interesse tutelado no caso concreto, e para o interesse da coletividade45.
Nessa perspectiva, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reconhecido que, em situações excepcionais, determinados direitos fundamentais podem sofrer restrições quando se revelam incompatíveis com a tutela de interesses da coletividade. Ad, exemplum, admite-se a mitigação da liberdade individual quando indispensável à salvaguarda da ordem pública e à preservação da efetividade da persecução penal, sobretudo diante da atuação de organizações criminosas estruturadas e dotadas de forte capacidade de intimidação (grifos meus):
DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. PRISÃO PREVENTIVA. REVOGAÇÃO. LIMINAR. REQUISITO DA CONTEMPORANEIDADE. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. RESTABELECIMENTO DA PRISÃO. HABEAS CORPUS. NÃO CONHECIMENTO. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. I. CASO EM EXAME. Agravo regimental interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão que concedeu habeas corpus a investigado apontado como integrante de organização criminosa atuante na Polícia Civil do Rio de Janeiro. A prisão preventiva havia sido revogada liminarmente, sob alegação de ausência de contemporaneidade. O Ministério Público Federal pleiteou o restabelecimento da prisão, sustentando a permanência dos fundamentos autorizadores da medida cautelar. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO. Há duas questões em discussão: (i) analisar se há ilegalidade manifesta que autorize o conhecimento do habeas corpus com fundamento em exceção à Súmula 691 do STF; (ii) verificar se a alegada ausência de contemporaneidade da custódia cautelar justifica a revogação da prisão preventiva. III. RAZÕES DE DECIDIR. A jurisprudência do STF exige a presença de ilegalidade flagrante para afastar a aplicação da Súmula 691, o que não se verifica no caso, pois o pedido ainda não foi apreciado pelas instâncias inferiores. A contemporaneidade da prisão preventiva não se confunde com a data da prática dos crimes, mas sim com a atualidade dos motivos ensejadores da medida, como o risco à ordem pública, obstrução da justiça ou reiteração delitiva. Os autos apontam a existência de organização criminosa estável e permanente desde 2016, com persistência das atividades criminosas até a decretação da prisão, inclusive com indícios de obstrução de investigações e planejamento de homicídios. A complexidade e sofisticação da organização exigem interpretação adequada para o requisito da contemporaneidade, compatível com o modo de atuação dos grupos criminosos investigados. IV. DISPOSITIVO E TESE. Recurso provido. Teses de julgamento: A inexistência de ilegalidade flagrante impede o conhecimento de habeas corpus contra decisão não apreciada por instâncias ordinárias, conforme Súmula 691 do STF. A análise da contemporaneidade da prisão preventiva deve considerar a atualidade dos fundamentos cautelares, e não apenas a data dos fatos imputados. A existência de organização criminosa estável e com atuação prolongada justifica a manutenção da prisão preventiva mesmo após lapso temporal significativo. Dispositivos relevantes citados: CPP, art. 402. Jurisprudência relevante citada: STF, HC 222.938 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, j. 22.02.2023, DJe 27.02.2023; STF, HC 206.116 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, j. 11.10.2021, DJe 18.10.2021; STF, HC 216.889 AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, j. 22.08.2022, DJe 23.08.2022.
(HC 220346 AgR, Relator(a): NUNES MARQUES, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 30-04-2025, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 21-05-2025 PUBLIC 22-05-2025)46.
AGRAVO INTERNO EM HABEAS CORPUS. IDONEIDADE DA PRISÃO PREVENTIVA FUNDADA NA NECESSIDADE DE SE INTERROMPER A ATUAÇÃO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E NO RISCO DE REITERAÇÃO DELITIVA. HABEAS CORPUS INDEFERIDO. 1. Não há ilegalidade na prisão preventiva fundada na necessidade de se interromper a atuação de organização criminosa e no risco concreto de reiteração delitiva. 2. Agravo interno desprovido.
(HC 213022 AgR, Relator(a): NUNES MARQUES, Segunda Turma, julgado em 23-05-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 01-06-2022 PUBLIC 02-06-2022)47.
MEDIDAS CAUTELARES – ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA – VIABILIDADE. A necessidade de interromper ou diminuir a atuação dos integrantes de organização criminosa constitui fundamento a viabilizar a imposição de medidas cautelares.
(HC 171029, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 26-11-2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-268 DIVULG 05-12-2019 PUBLIC 06-12-2019)48.
Mutatis mutandis, se a Suprema Corte admite a mitigação do direito individual à liberdade em prol dos interesses da coletividade e da necessidade de uma política criminal eficaz no combate ao crime organizado, diante do caráter relativo dos direitos fundamentais, não haveria, a priori, óbice à mitigação do direito de acesso às informações processuais, especificamente quanto à identidade das autoridades responsáveis pela condução da investigação e do julgamento.
De igual modo, Fabiana Greghi e Eduardo Diniz Neto concluem que, face à expansão desenfreada da delinquência organizada, a adoção de um tratamento constitucional penal diferenciado se revela como medida de rigor. que os direitos fundamentais não podem ser invocados como escusa para a prática de ilícitos, sobretudo quando implicam desrespeito à ordem pública e aos direitos e garantias fundamentais de terceiros. Demonstram que a flexibilização de alguns direitos se mostra, a priori, como o único mecanismo jurídico eficaz para o combate ao crime organizado. Por fim, consignam que é preferível debilitar as garantias dos indíviduos entregues a criminalidade organizada do que comprimir as garantias de toda a coletividade49.
Nessa linha, consigne-se que a inocuidade dos instrumentos penais clássicos para o combate das organizações criminosas somente acentua a imprescindibilidade da adoção de um tratamento diferenciado ao dado à criminalidade comum. Os grupos criminosos organizados, no mais das vezes, dispõem de recursos tecnológicos superiores aos do próprio Estado, além de seu elevado potencial de corrupção sobre os órgãos estatais, o que, per se, exige um tratamento mais rigoroso para sua repreensão50.
Extrai-se que em razão da situação excepcional, medidas excepcionais também precisam ser adotadas, sobretudo para a preservação da vida e dignidade das autoridades que atuam frente ao combate da delinquência organizada51.
Consigne-se que o exercício do contraditório e da ampla defesa se viabiliza por meio da publicidade da fundamentação das decisões judiciais, exigência limitadora do arbítrio das autoridades52. O sigilo da identidade da autoridade julgadora, por si só, não compromete essas garantias constitucionais, uma vez que as partes permanecem cientes do conteúdo e dos fundamentos das decisões proferidas.
Com efeito, se aos magistrados poderia ser conferido o sigilo de sua identidade em situações excepcionais — notadamente diante do risco à sua integridade física e do comprometimento de seu livre poder decisório —, com muito mais razão tal medida deveria alcançar promotores de justiça e delegados de polícia que atuam diretamente na fase investigativa. Isso porque, em regra, esses agentes estão mais expostos ao contato imediato com organizações criminosas e seus integrantes, o que os coloca em posição de maior vulnerabilidade em razão da proximidade prática com a persecução penal. A proteção de suas identidades, portanto, não se revela como privilégio pessoal, mas como instrumento de garantia da própria efetividade da investigação e da ação penal, de modo a assegurar que tais autoridades possam exercer suas funções sem intimidações, retaliações ou constrangimentos indevidos que possam comprometer a higidez do processo.
Desse modo, se a sociedade passou por metamorfoses, e os direitos fundamentais foram reinterpretados, a defesa desses mesmos direitos fundamentais também deverá ser redefinida, não para que sejam afastados, mas aperfeiçoados e melhor aplicados53.
Por conseguinte, a restrição de acesso do acusado a informações relativas à identidade e paradeiro das autoridades públicas que atuam na repreensão ao crime organizado se revela como uma política eficaz no combate à associação para grupos criminosos.
CONCLUSÕES
O combate ao crime organizado, embora objeto de diversas políticas públicas nacionais, ainda se revela marcado por ineficiência e descompasso entre a gravidade do fenômeno e a efetividade das medidas adotadas, pois a simples edição de leis não tem sido suficiente para conter a expansão de grupos criminosos que se estruturam de forma complexa e infiltram-se em esferas sociais, econômicas e institucionais.
Essa insuficiência se torna ainda mais preocupante quando se observa que o Brasil é signatário de tratados internacionais, como a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional., que orientam a adoção de mecanismos repressivos eficazes e prescrevem diretrizes específicas para a proteção das autoridades responsáveis pela persecução penal, o que exige do país não apenas a edição de normas, mas a adoção de práticas concretas e eficazes no enfrentamento da criminalidade organizada. Não se pode, por outro lado, ignorar que o ordenamento jurídico consagra o princípio da publicidade processual, o que assegura ao acusado o direito de acesso às informações processuais, inclusive à identidade das autoridades que o conduzem, como decorrência da exigência de transparência estatal e em conexão com o contraditório e a ampla defesa. Todavia, é igualmente imperioso reconhecer que a integridade física de juízes, promotores e delegados que atuam em casos que envolvam organizações criminosas constitui condição indispensável para a própria efetividade da persecução penal, de modo que o exercício independente e seguro dessas funções configura requisito essencial para a defesa da coletividade e a preservação da ordem pública.
Se de um lado existe o direito fundamental de acesso às informações processuais, de outro há o interesse maior da coletividade na repressão qualificada do crime organizado e na proteção das autoridades encarregadas da investigação e do julgamento, de modo a permitir que possam exercer suas funções sem intimidações. Essa tensão demonstra a necessidade de um juízo de ponderação, evitar que a absolutização de um direito inviabilize a concretização de outros valores constitucionais igualmente relevantes. Como todo direito fundamental é relativo e nenhum prevalece em abstrato sobre os demais, impõe-se admitir que, em certas situações excepcionais, o interesse coletivo possa se sobrepor ao direito individual, não por supressão arbitrária de garantias, mas pela compatibilização entre princípios constitucionais em conflito. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já reconheceu, por exemplo, que a liberdade individual pode ser mitigada em prol da ordem pública e da necessidade de interromper a atuação de organizações criminosas, ao validar prisões preventivas fundadas nesse fundamento, o que demonstra que a proteção da coletividade pode justificar restrições a direitos fundamentais.
Mutatis mutandis, se é legítima a mitigação da liberdade individual — direito de máxima envergadura constitucional — para assegurar a efetividade das políticas públicas de combate ao crime organizado, com maior razão seria admissível a mitigação do direito de acesso às informações processuais no que se refere à identidade das autoridades responsáveis pela investigação e pelo julgamento.. Ressalte-se que tal medida não compromete o núcleo essencial do contraditório e da ampla defesa, uma vez que estes decorrem da fundamentação das decisões e não da publicidade da identidade do julgador ou da autoridade investigativa, assim permanecem intactos a possibilidade de impugnação e o controle de legalidade. Com efeito, a restrição à identificação das autoridades, quando necessária para proteger sua integridade física e independência, deve ser compreendida como medida de caráter excepcional e adequada inserida em uma política criminal coerente com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Os direitos fundamentais não podem ser utilizados como escusa para a prática de ilícitos nem como instrumentos para perpetuar a impunidade de organizações criminosas. Interpretá-los de forma absoluta, sem ponderação com os demais valores constitucionais, significaria deturpar sua finalidade e comprometer a própria efetividade do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, mostra-se legítima e constitucionalmente admissível a mitigação do direito de acesso às informações processuais no aspecto restrito da identidade das autoridades responsáveis pela investigação e pelo julgamento, sempre que necessária à preservação da segurança institucional e do interesse da coletividade. Essa interpretação harmoniza direitos fundamentais, protege o interesse público e assegura que o Estado cumpra sua função de reprimir a criminalidade organizada sem fragilizar a ordem jurídica.