Resumo: Este artigo analisa as políticas públicas nacionais e internacionais de combate ao crime organizado, destaca suas limitações práticas e a necessidade de medidas excepcionais diante da complexidade e da expansão dessas organizações. Examina-se o conflito entre o direito fundamental de acesso às informações processuais e a preservação da identidade de juízes, promotores e delegados que atuam em processos contra facções criminosas. Argumenta-se que, diante da relatividade dos direitos fundamentais e da jurisprudência do STF que admite restrições a direitos fundamentais em prol da coletividade, também seria admissível mitigar, em situações excepcionais, a publicidade da identidade das autoridades responsáveis. Conclui-se que essa medida não compromete o contraditório nem a ampla defesa, configura instrumento necessário para a efetividade da persecução penal e a proteção da ordem pública.
Palavras-chave: Crime organizado; políticas públicas; direitos fundamentais; publicidade processual; sigilo de autoridades.
1. DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE AO CRIME ORGANIZADO
Desde seus primórdios, o homem buscou a vida em sociedade, e essa associação foi essencial para fortalecer as relações humanas e impulsionar o desenvolvimento coletivo. A cooperação entre os membros da comunidade possibilitou o enfrentamento dos desafios próprios da vida em grupo e acelerou o processo de evolução social. O problema surge, entretanto, quando essa mesma capacidade de organização é desviada de sua finalidade e passa a servir como instrumento para a prática e a perpetuação de crimes.
Com efeito, a organização de criminosos forma estruturas que não apenas obstaculizam a ação das autoridades públicas no combate à criminalidade, mas também estabelecem núcleos ocultos de poder, que operam em paralelo ao Estado. Esses núcleos disputam legitimidade e autoridade, corroendo a soberania estatal e comprometendo a eficácia das instituições encarregadas da justiça e da segurança1.
Georgi Petrunov, em estudo sobre as transformações sociopolíticas da Bulgária, destaca que as organizações criminosas não atuaram apenas como atores marginais, foram incorporadas ao processo de transformação social como instrumentos estratégicos das próprias elites políticas. Em razão da perda de legitimidade e da fragilização do poder formal, essas elites recorreram ao crime organizado para reforçar sua influência, utilizando-se de redes ilícitas, mecanismos informais de controle econômico e estruturas de poder ocultas. Por conseguinte, a criminalidade organizada aprofundou os desafios institucionais no combate à corrupção e na preservação da autoridade legítima do Estado2.
Nessa mesma esteira, Caneppele, Calderoni, e Martocchia obtemperam que essas organizações não se limitam a ações marginais ou clandestinas. São capazes de se institucionalizar dentro de instituições públicas e privadas. Ao passo que se infiltram em diversos setores, conquistam influência decisiva sobre processos administrativos e econômicos; a atuação em contratos públicos, por exemplo, ilustra a exploração de vulnerabilidades dos sistemas públicos para corromper agentes3.
Com efeito, a implementação de políticas públicas robustas e integradas se configura como providência imperiosa no combate à criminalidade, especialmente quando se trata de organizações criminosas, que não operam apenas como fenômenos isolados, mas como sistemas que se infiltram nos âmbitos social, econômico, institucional e político. Políticas que abordam as causas estruturais da criminalidade — como desigualdade social, falta de oportunidades, deficiências no acesso à educação, saúde, justiça e infraestrutura — não são apenas medidas éticas ou de bem-estar público, mas instrumentos estratégicos de prevenção, capazes de reduzir significativamente o terreno fértil para o crime organizado. Para além disso, políticas públicas eficazes favorecem a articulação entre diferentes órgãos governamentais, fortalecem as instituições, promovem a transparência, facilitam o controle da corrupção e asseguram a responsabilização dos agentes públicos4.
Na Itália, o enfrentamento às organizações mafiosas — como a Cosa Nostra, a ’Ndrangheta e a Camorra — levou, sobretudo a partir dos anos 1980, à criação de mecanismos especiais de proteção às autoridades judiciais que atuavam em investigações de alta complexidade. A experiência trágica dos assassinatos de magistrados como Rocco Chinnici, Giovanni Falcone e Paolo Borsellino impulsionou reformas institucionais que buscavam conciliar segurança estatal e preservação dos direitos fundamentais dos acusados5. Nessa toada, destacam-se o pool antimafia, que reuniu grupos de magistrados para conduzir investigações e processos coletivamente, reduzindo a vulnerabilidade individual6; a utilização de tribunais fortificados, os chamados bunker courts, como no célebre Maxi Processo de Palermo (1986-1992), que julgou centenas de membros da Cosa Nostra7; e o sistema de rotação de juízes, concebido para evitar a exposição prolongada de magistrados ao poder intimidador das organizações criminosas8. Essas medidas, embora excepcionais, foram essenciais para garantir a continuidade da repressão estatal à máfia, ao mesmo tempo em que preservaram princípios estruturantes do processo penal, como o contraditório, a ampla defesa e o julgamento imparcial.
Cite-se como outro exemplo internacional de política pública para o combate ao crime organizado a Colômbia, que na década de 1990 instituiu a figura dos jueces sin rosto para proteger magistrados que atuavam em casos de alto risco, como os relacionados ao Cartel de Medellín. Essa medida preservava a identidade dos magistrados e garantia sua segurança diante das ameaças de organizações criminosas poderosas. A adoção dessa prática objetivava resguardar a integridade dos profissionais da justiça em cenários onde o crime organizado desafiava diretamente as autoridades estatais. Nada obstante a implementação da medida referida tenha se mostrado eficaz no combate ao crime organizado, por permitir que os julgadores atuassem em casos de alto risco sem receio de retaliações, alguns prosélitos apontaram que o anonimato dos magistrados poderia gerar questionamentos sobre a transparência dos processos e o direito dos réus a conhecer a identidade do julgador. Ainda assim, no contexto de extrema violência promovida pelo Cartel de Medellín, essa política foi considerada essencial para assegurar a continuidade das ações judiciais e proteger a integridade dos operadores do direito envolvidos9.
De outro vértice, diversos tratados de direitos humanos consagram a importância da identificação das autoridades responsáveis pela persecução penal como garantia fundamental dos acusados. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), em seus artigos 9 e 14, assegura que toda pessoa detida deve ser informada das razões da acusação e seu julgamento deverá acontecer perante um tribunal competente, independente e imparcial10. De forma semelhante, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), em seu artigo 8, 1, reforça o direito de ser julgado por autoridade previamente estabelecida e imparcial, como condição de um devido processo11. A identificação dos julgadores, em tese, possibilitaria o controle de sua imparcialidade, pois permitiria ao acusado realizar arguições de impedimento e suspeição.
No Brasil, a proteção de magistrados e promotores que atuam em casos de alto risco ocorre por meio de medidas institucionais que garantem sua segurança sem recorrer ao anonimato total. Entre elas destacam-se: programas de proteção pessoal, coordenados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Ministério da Justiça, que preveem escolta policial, monitoramento e alterações temporárias de rotina; a possibilidade de sigilo de processos em situações que envolvam ameaças; e ações específicas da Polícia Federal e das polícias estaduais, que asseguram proteção física e logística aos magistrados12.
Com efeito, a Lei nº 12.964/2012, com as modificações trazidas pela Lei nº 15.134/2025, determinou a possibilidade de formação de colegiado para o julgamento dos processo de primeira instância quando o magistrado indicar, em decisão fundamentada da qual será dada ciência ao órgão correicional, motivos e circunstância que impliquem em risco à sua integridade física13. Preconiza que o colegiado será formado pelo juiz do processo e por outros dois juízes, estes últimos escolhidos por meio de sorteio eletrônico, dentre aqueles de competência criminal em exercício no primeiro grau de jurisdição14. Para além disso, o dispositivo legiferante estabelece uma hipótese de sigilo, ao determinar que as decisões do colegiado serão públicas, mas sem qualquer referência ao voto divergente de seus membros15. Por fim, prescreve medidas de proteção pessoal, para salvaguardar a integridade física das autoridades judiciais, ou membros do Ministério Público, e de seus familiares, ad exemplum, escolta total ou parcial, blindagem de veículo, uso de colete balístico e trabalho remoto16.
Por seu turno, a Lei nº 15.134/2025 alterou o Código Penal para prever como modalidade qualificada do crime de homicídio, bem como como causa de aumento de pena na lesão corporal dolosa, quando tais delitos forem praticados contra membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública ou da Advocacia Pública, ou ainda contra oficiais de justiça, no exercício de suas funções ou em razão delas. A proteção abrange também o cônjuge, companheiro ou parente, inclusive por afinidade, até o terceiro grau, quando a agressão decorrer da condição funcional da vítima direta17.
Ainda em âmbito nacional, vislumbra-se expressivo crescimento das organizações criminosas nos últimos anos. Segundo estimativas do Ministério da Justiça, existem atualmente cerca de 88 facções com atuação em unidades prisionais, das quais 72 operam localmente, 14 regionalmente e 2 em âmbito nacional ou internacional18. Tal cenário evidencia não apenas a expansão territorial dessas redes, mas também sua crescente complexidade e capacidade de organização.
A execução do delegado Ruy Ferraz Fontes, em 15 de setembro de 2025, em Praia Grande (SP), traz à baila a crescente vulnerabilidade das autoridades que enfrentam organizações criminosas no Brasil. Fontes, com mais de 40 anos de carreira, foi um dos pioneiros no combate ao Primeiro Comando da Capital (PCC), tendo sido responsável por indiciar membros da cúpula da facção, incluindo Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, em 200619. Após sua aposentadoria, assumiu o cargo de secretário de Administração na Prefeitura de Praia Grande, mas continuou sendo alvo de ameaças. Em 2019, uma carta do PCC ordenou sua execução, e ele relatou a colegas de trabalho que se sentia "abandonado à própria sorte" após perder a proteção institucional20. O atentado, que resultou em sua morte após uma perseguição e mais de 20 tiros de fuzil, não é um caso isolado, mas reflete uma realidade recorrente enfrentada por autoridades que atuam contra organizações criminosas. Lincoln Gakiya, promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo que investiga o PCC há 20 anos, afirma que já sofreu ameaças da facção. Pontua que no fim de 2026 atinge a idade para se aposentar, mas sem garantia de que terá segurança durante a aposentadoria21.
Frente à proliferação das organizações criminosas no Brasil, torna-se imprescindível o fortalecimento das estruturas estatais para o enfrentamento eficaz dessa modalidade de criminalidade. Nessa esteira, mostra-se essencial investir em estruturas que ampliem a capacidade do Estado de combater as organizações criminosas, com ênfase em mecanismos que permitam às autoridades públicas atuarem com eficiência e segurança, sem temor de retaliações. O recrudescimento dessas estruturas é essencial para proteger a integridade dos profissionais envolvidos e assegurar a efetividade das ações de combate ao crime organizado22.
Diante desse cenário, faz-se necessária a análise da atuação estatal na proteção de autoridades públicas que atuam no enfrentamento das organizações criminosas e sua repercussão sobre as garantias constitucionais dos acusados.
2. A DISCIPLINA JURÍDICA DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS E OS LIMITES DA PUBLICIDADE PROCESSUAL
A Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, definiu o conceito de organização criminosa e dispôs sobre os procedimentos investigativos, os meios de obtenção de prova e o processo penal aplicável. Para os fins da referida lei, considera-se organização criminosa a associação de quatro ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos ou que sejam de caráter transnacional23.
Nucci, por sua vez, conceitua organização criminosa como a associação de agentes, com caráter estável e duradouro, para o fim de praticar infrações penais, devidamente estruturada em organismo preestabelecido, com divisão de tarefas, embora com objetivo comum de alcançar qualquer vantagem ilícita, a ser partilhada entre os seus integrantes24.
O número de quatro pessoas foi escolha decorrente de medidas de política criminal. Não há óbice para que inimputáveis componham esse núcleo, desde que tenham ciência de que integram um grupo estruturado hierarquicamente e de suas finalidades propostas25.
Nessa mesma esteira, pressupõe-se a existência de alguma forma de escalonamento (relação de chefia e chefiado) para que a organização esteja estruturalmente ordenada. Não seria congruente a impossibilidade de ascensão em seu interior26. Conforme lições de Adel El Tasse, exige-se uma hierarquia estrutural rígida, decorrente da associação ordenada das pessoas que a compõem27.
A divisão de tarefas decorre da estrutura hierarquicamente ordenada. É a partição de trabalho, de modo que cada qual detenha um posto particular dentro da organização. O fracionamento das tarefas prescinde de qualquer formalização28.
Exige-se, ainda, que a organização pretenda a consecução de seus objetivos mediante a prática de infrações penais cujas penas sejam superiores a quatro anos, ou, independentemente das penas cominadas, tenham caráter transnacional29.
Por fim, é necessária a presença de um especial fim de agir: a pretensão de obter qualquer espécie de vantagem, de modo direto ou indireto. Luiz Regis Prado salienta que o dolo ultrapassa uma colaboração isolada no delito que a organização porventura venha a cometer. Deve-se objetivar a vivência daquela estrutura organizada que atua à margem da lei. Por conseguinte, o dolo deve abarcar também o elemento organização criminosa30.
Por seu turno, o art. 2º, caput, da Lei nº 12.850/2013 tipifica o crime de promover, constituir, integrar ou financiar organização criminosa, por interposta pessoa ou pessoalmente, com pena de reclusão de três a oito anos, e multa, sem prejuízo das penas referentes às demais infrações praticadas31.
Nota-se, ademais, que o legislador ordinário pretendeu exasperar o tratamento dado àqueles que integram referidas organizações. A Lei de Execução Penal, em seu art. 52, §1º, determina que o regime disciplinar diferenciado (RDD) será aplicado ao preso sob o qual recaia qualquer suspeita de envolvimento ou participação em organização criminosa32. Por sua vez, a Lei 11.343/2006, ao disciplinar a causa especial de diminuição de pena prevista no art. 33, §4º, exclui sua aplicação ao agente que integra organização criminosa33.
De igual modo, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto Legislativo nº 231/2003 e promulgada pelo Decreto nº 5.015/2004, prescreve diretrizes para que seus signatários adotem medidas eficazes de repressão às organizações criminosas. Estabelece em seu art. 5.1. que os Estados Partes devem adotar medidas para criminalizar a participação em grupos criminosos organizados34. O art. 24. da Convenção, ao tratar da proteção de testemunhas, recomenda a adoção de mecanismos destinados a assegurar sua integridade, tais como a possibilidade de mudança de domicílio, restrição da divulgação de informações relativas à sua identidade e paradeiro, além da colheita de depoimentos à distância mediante recursos tecnológicos de comunicação, sem prejuízo de outras medidas que se revelem necessárias35.
Nessa toada, verifica-se que tanto os organismos internacionais, como o legislador ordinário reconhecem a gravidade da associação ao crime organizado. Por esse motivo, ambos procuraram intensificar as medidas punitivas e estabelecer mecanismos para garantir que aqueles que testemunham contra tais ilícitos não sofram retaliações por parte das organizações criminosas.
De outro vértice, a publicidade dos atos oficiais é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, que é garantista, e encontra seu corolário no art. 37, caput, da CRFB/8836. Na mesma trilha, a Carta Federal preconiza em seu art. 5º, inciso LXIV que o preso possui direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou de seu interrogatório37. Já o art. 93, IX, estabelece que todas as decisões judiciais devem ser públicas e fundamentadas, sob pena de nulidade38. Ainda nessa esteira, a Constituição Federal determina que as hipóteses de sigilo dos atos processuais estão adstritas à defesa da intimidade e ao interesse social39. Do exposto, infere-se que a regra é a publicidade dos atos oficiais e o sigilo a exceção.
Nessa esteira, Rrustem Qehaja e Arbnor Ajeti ensinam que o princípio da publicidade se conecta indissoluvelmente ao direito a um julgamento justo. Ressaltam que a transparência das informações aproxima a coletividade do Poder Judiciário. Todavia, advertem que essa publicidade não é ilimitada. Admite-se sua mitigação por disposição normativa expressa. Apontam duas hipóteses de exclusão: os casos de exclusão decisiva, referentes a litígios sensíveis, e aqueles de exclusão pelo próprio tribunal. A primeira hipótese abrange os conflitos familiares e conjugais, nos quais, pela própria natureza da relação jurídica, impõe-se a preservação do sigilo em prol da intimidade dos envolvidos. Já a segunda hipótese se relaciona à proteção de segredos oficiais e a questões de ordem pública40.
Magno Federici Gomes e Daniel da Rocha Marcela obtemperam que, do princípio constitucional da publicidade, decorre o direito fundamental de acesso às informações processuais, intimamente relacionado com a efetiva prestação jurisdicional e exercício dos demais direitos e garantias fundamentais. Esse direito de acesso é amplo, compreende decisões, despachos, atos ordinatórios, petições da parte adversa, elementos informativos, e a identidade do julgador41.
Com efeito, nada obstante o direito de acesso às informações processuais possa ser considerado um direito fundamental, não seria impossível sua supressão em eventual colisão com outro direito. Ressalte-se que é plenamente possível que o exercício de um direito fundamental colida com outros direitos igualmente tutelados pela Constituição, já que nenhum deles possui caráter absoluto ou prevalece de forma abstrata sobre os demais42. Em acréscimo a isso, Nathalia Masson elenca a relatividade como uma das características dos direitos fundamentais e preleciona que, em eventual embate com outros direitos, caberá ao intérprete decidir qual deverá prevalecer no caso concreto43.
Diante do exposto, é necessário avaliar os critérios para harmonizar as medidas de política criminal de combate ao crime organizado com o direito fundamental de acesso às informações processuais, especificamente à identidade das autoridades responsáveis pela investigação e julgamento.