Resumo: Com o avanço das investigações, que percorreu tortuosos caminhos para desvendar os acontecimentos que conduziram ao fatídico 8/1/2023, seguidas da extensa denúncia da PGR e da instauração da ação penal, o Brasil e o mundo, finalmente, assistiram ao julgamento dos principais increpados. Neste modesto trabalho, porém, não analisaremos as questões de fato e de direito que tornaram réus e que condenaram algumas das pessoas que outrora constituíam o mais alto escalão do Poder Executivo, mas lançaremos o olhar sobre o comportamento das massas, sejam elas de apoiadores dos réus ou de seus detratores. Para isso pediremos o valioso auxílio de ilustres pensadores, a fim de compreendermos, tanto o quanto seja possível, como chegamos a este estado de polarização, bem como, buscarmos uma solução que pacifique e unifique a nação.
Palavras – chave: filosofia; Ideologia; polarização; política; raiz.
INTRODUÇÃO
De onde vêm nossas paixões? Qual o motivo de aderirmos a certas ideias e rejeitarmos outras? O que faz com que sejamos como somos? Certamente essas não são perguntas fáceis de responder. Psicanalistas, filósofos, sociólogos e outros estudiosos têm buscado há séculos respostas para essas questões e, no entanto, até o presente momento, tudo de que dispomos são teorias que, apesar de bastante interessantes, são também muito inconclusivas. Mas de uma coisa, pelo menos, parece que temos certeza: somos complexos demais. Muito mesmo.
Partiremos dessa complexidade que, em grande medida, conduz à divergência de pensamentos para tentarmos, de algum modo, compreendermos o estado de polarização ideológica no campo político que se instalou no Brasil há alguns anos e que não tem dado sinais de que irá arrefecer com facilidade. Pelo contrário, a cada passo dado em qualquer que seja a direção, a polarização parece recrudescer. O último desses muitos passos é o julgamento pelo STF das pessoas acusadas de terem articulado um plano para subverter o regime democrático por meio de um golpe.
Neste trabalho, contudo, não enveredaremos pelos meandros da investigação sobre os acontecimentos antecedentes que, in tese, findaram no irromper das sedes dos Três Poderes, afinal de contas, as instituições e autoridades competentes já estão cuidando disso, como deve ser em qualquer país no qual se preze pela legalidade e pelo respeito ao resultado das urnas, concordemos com ele ou não.
Analisaremos, portanto, como saímos de um aparente estado de torpor político, no qual estávamos enquanto nação, para abraçarmos bandeiras ideológicas, mesmo sem saber ao certo o que elas representam e à quais interesses elas servem. Nesta medida, parece que trocamos inconscientemente o estado de apatia política – que nos deixava indiferentes aos acontecimentos – por uma militância induzida ou guiada que, de certo modo, reduz as pessoas a zumbis que apenas se prestam a repetir – especialmente nas redes sociais – as ideias que lhes são apresentadas, sem uma análise, ainda que rasa, sobre elas.
Essa apatia cognitiva, somada à militância ativa, – já que não refletem, mas agem, seja consumindo e/ou compartilhando conteúdo ideológico – talvez seja um dos principais componentes que levaram o Brasil a essa dicotomia e clima de intolerância que impossibilita qualquer troca de ideias entre as pessoas que se acham em polos opostos, que passaram se enxergar como verdadeiras inimigas, pela simples razão de divergirem politicamente.
Dito isso, para não retornarmos ao estado de torpor que nos colocaria alheios ao que ocorre na política, – o que não é desejável – mas para que, ao mesmo tempo, esse nosso despertar seja cônscio e não se preste a nos tornar meros joguetes nas mãos de ardilosos políticos que atendem a interesses pouco ou nada republicanos, buscaremos a lucidez de grandes nomes do pensamento, a fim de clarear nossa jornada e balizar nossas ideias.
A POSSE DA VERDADE
Vaidade! Eis o problema. Não importa ao que se refira numa roda de conversa informal ou num debate acadêmico, queremos ter razão. O ego, afinal, agradece. Não é um grande problema querer estar certo, afinal de contas, alguém precisa ter razão sobre o que quer que seja. E se assim é, melhor que a razão seja nossa, não é mesmo? Mas quando se trata de política, a coisa não é assim tão simples. Afinal, como se define o que é estar certo em política? Não estamos falando de uma teoria científica passível de ser refutada por uma nova descoberta ou por algum avanço tecnológico, como fez, por exemplo, o polonês Nicolau Copérnico (1473 – 1543), ao substituir o geocentrismo, proposto pelo grego Cláudio Ptolomeu (90-168 d. C.) e até então, pelo heliocentrismo.
O desejo de estar certo, no entanto, em termos científicos, não tem, como regra, a vaidade como fator de motivação, pois está fundada muito mais no rigor científico que, em última análise, é o que possibilita o progresso humano, pois não se deixa prender por paixões e querências, devendo, pelo próprio rigor, aceitar a teoria que se apresenta mais acertada.
Tal nível de rigor deveria ser aplicado em qualquer que fosse o campo de estudo, inclusive, na política. Caso fosse, quiçá avançaríamos mais rápido enquanto civilização e abandonaríamos hábitos que se provaram ruins com facilidade, pois não os conservaríamos por paixão ou saudosismo e adotaríamos o modelo que se afigurasse melhor e mais justo.
Mas se a história tem algo a nos ensinar, é que, quando se trata de política e, consequentemente, de alterar o equilíbrio de poderes, estar certo está envolve certos riscos, sobretudo se o modelo a ser refutado – e que se provou equivocado – é defendido por pessoas de renome e dotadas de poderes políticos.
Como exemplo do que estamos a expressar, voltemos à disputa dos modelos cosmológicos acima citados. Mesmo se mostrando correta em termos científicos, a elite dominante da época impôs severa resistência ao modelo heliocêntrico. Hoje, para nós, dizer que o a Terra gira ao redor do Sol e não o contrário, nada mais é do que repetir o óbvio e não envolve risco algum. Mas para que nós pudéssemos fazer isso, acreditem ou não, pessoas morreram ou foram privadas de suas liberdades, apenas por afirmarem o que a ciência havia comprovado, mas que contrariava os interesses clericais que, àquela época – e parece que ainda hoje – mantinham laços de interesses estreitos com o poder político ou real, já que poder dos reis ou o direito de reinar sobre seus súditos tinha – pasmem – origem divina:
A teoria de Copérnico não condizia com os ideais bíblicos. Dessa forma, por medo de ser considerado herege, suas ideias só foram divulgadas depois de sua morte. A obra de Copérnico foi condenada pela Santa Inquisição e aqueles que a apoiavam eram condenados, como aconteceu com o filósofo italiano Giordano Bruno, morto na fogueira em 1600.
E complementa:
No século XVII, um dos mais importantes estudiosos da astronomia, Galileu Galilei, o comprovou, com base em observações com lunetas. Porém, foi obrigado a retratar-se perante a Igreja, para não ser condenado à morte (RIOGA, 2021).
Pois é. Parece que pouca coisa mudou de lá para cá. Mas graças a pessoas como os filósofos italianos Giordano Bruno (1548 – 1600) e Galileu Galilei (1564 – 1642), pelo menos sabemos que a Terra, além de não ser plana, orbita sim ao redor do Sol, além de podermos afirmar isso sem medo de sermos queimados ainda vivos.
Mas quando se trata de ter posse da razão, – estar certo – talvez ninguém tenha sintetizado melhor e numa única frase os riscos envolvidos para todos em geral do que o físico e matemático alemão Max Born (1882 – 1970), senão vejamos:
Creio que ideias como certeza absoluta, precisão absoluta, verdade suprema, etc. são produtos da imaginação que não deveriam ser admissíveis em nenhum campo da ciência.
E conclui:
Porque a crença de que existe apenas uma verdade, e de que você próprio está em posse dela, é a raiz de todos os males do mundo (BORN. 1944).
Os fragmentos acima foram extraídos da matéria da BBC News Brasil intitulada Max Born, o físico quântico que alertou o mundo sobre 'a causa de todos os males’, publicada em 14 de agosto 2022. A reportagem traz alguns trechos de cartas trocadas entre Born e Albert Einstein (1879 – 1955), nas quais fica evidente que discutiam muito mais do que problemas e teorias físicas, mas também e frequentemente sobre questões filosóficas. Afinal de contas, as cartas revelaram uma preocupação de ambos com a questão do uso – ou mau uso – da ciência pelas nações, especialmente depois dos lançamentos de duas bombas atômicas sobre o Japão ao final da 2ª Guerra Mundial, fatos que os afetaram pessoal e diretamente, já que suas descobertas contribuíram substancialmente para que fossem tornados possíveis seus projetos e construções.
Depreende – se, portanto, da premissa cunhada por Born, que todas as contendas, conflitos, rusgas, revoluções, golpes de Estado e guerras suportadas, sejam por indivíduos, sejam por nações inteiras, decorrem unicamente do ardente desejo que temos de impor nossas visões de mundo e nossas certezas inflexíveis aos demais. Tal ímpeto decorre, por vezes, apenas de mera convicção, – crença em determinada ideia ou modelo – mas, não raramente, tem, como força motriz, vis e escusos interesses.
SOCO EM PONTA DE FACA
Somos naturalmente resistentes às mudanças, sejam quais forem. Em parte, talvez exista um componente biológico por trás dessa resistência, afinal, mudar implica em gasto de energia, quer seja física, quer seja cognitiva. Somos, de certo modo e por motivos de sobrevivência impressos em nossas células, programados biologicamente, por assim dizer, para poupar energia. Logo, mudar, ainda que nossa opinião sobre algo, envolve gasto energético, do que, num nível inconscientemente, não gostamos. Mas às vezes somos forçados a refletir e mudar, sobretudo quando o status quo deixa de fazer sentido ou, na melhor das hipóteses, quando estagnou e podou qualquer perspectiva de melhoras.
Em alusão ao título dado a este capítulo, é como se déssemos socos na ponta de uma faca. Não importa o quão forte possamos socar a faca, nada obteremos disso que não sejam feridas. Mas somos tão demasiados humanos, como bem observou Friedrich Nietzsche (1844 - 1900), que buscamos, com as opiniões dos outros, confirmar as nossas próprias, tudo em nome de nossa vaidade:
Normalmente a pessoa deseja, com a opinião alheia, atestar e reforçar para si a opinião que tem de si mesma; mas o poderoso hábito de autoridade — hábito tão velho quanto o ser humano — leva muitos a basear também na autoridade a fé em si mesmos, isto é, a recebê-la tão-só das mãos de outros: confiam mais no julgamento alheio do que no próprio (NIETZSCHE, pág. 42, 1886).
O fragmento acima foi extraído a obra do filósofo intitulada Humano, demasiado humano, que foi publicada no longínquo ano de 1886. Convenhamos que se Nietzsche pudesse ver a capacidade de influenciar as opiniões alheias que as redes sociais, nos dias atuais, conferem aos que delas se utilizam para isso, bem como a forma incauta com que as massas buscam nesses meios exatamente pela confirmação de suas próprias opiniões, sem o menor trabalho cognitivo e muito menos de pesquisa que lhes permitam uma crítica, ainda de foro íntimo e mesmo que rasa, certamente ele ficaria pasmado.
Mas esse descomprometimento que temos com as realidades - ou com o que achamos sê-las - que formam nossas opiniões e crenças, inclusive políticas, não foi percebida apenas por filósofos do calibre de Nietzsche. Um verdadeiro gênio da literatura universal, assim considerado por muitos acadêmicos, também nos legou sua visão sobre esse nosso mau hábito de ceder à vaidade de cristalizar nossas opiniões a despeito dos fatos:
No entanto, a pessoa é tão apaixonada pelo sistema e pela dedução abstrata que está disposta a distorcer a verdade intencionalmente, a não enxergar o que os olhos veem e não ouvir o que os ouvidos escutam, a fim de justificar sua lógica (DOSTOIÉVSKI, pág. 47/48,1864).
E conclui:
E isso ainda não seria nada, o vexaminoso é que, sem dúvida nenhuma, ele encontraria seguidores: assim é feito o ser humano (DOSTOIÉVSKI, pág. 51,1864).
Os fragmentos acima foras extraídos da obre Memórias do Subsolo, do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821 - 1881). Publicado pela primeira vez no ano de 1864, dentre outras coisas, aborda, sem filtros ou reservas politicamente corretas, a natureza humana em toda sua imperfeição e contradições que nos conduzem a erros e a conservação de vãs e, por vezes, nocivas convicções. E mais ainda, não importando o quão descoladas dos fatos sejam essas convicções, sempre haverá pessoas dispostas a aderir à elas. Parece-nos quase profético que Dostoiévski tenha usado o termo “seguidores” em sua obra, já que, nos dias atuais, as pessoas são assim chamadas nas redes sociais, pois seguem - não fisicamente, mas consumindo conteúdos - de maneira cega e apaixonada qualquer pessoa que diga o que querem ouvir, reforçando cada vez mais suas crenças.
Mas, ao longo da história, como veremos, não apenas a filosofia e a literatura se ocuparam, graças e por meio dos esforços e clareza cognitiva de célebres figuras como os Nietzsche e Dostoiévski, de entender essa resistência humana à mudança, mas também a psicologia aplicada a entendeu e fez uso dela para obter, em certos ofícios, vantagens estratégicas, por assim dizer, senão vejamos:
Dissonância cognitiva ocorre quando um indivíduo possui duas ou mais ideias conflitantes ao mesmo tempo. As pessoas continuam com relações de internet, mesmo quando sabem que a relação deveria terminar, para evitar a dissonância cognitiva. Elas não querem acreditar que seu interlocutor não é aquilo que diz ser, pois isso cria dissonância cognitiva. Pense em você mesmo como exemplo. Você enxerga a si mesmo como uma pessoa esclarecida e distinta. Também adora a pessoa que conheceu na internet e com quem se comunica. Se admitir que foi enganado, então você é ingênuo e crédulo; portanto, você se recusa a acreditar que seu interlocutor virtual é um impostor, para evitar a sensação ruim causada pela dissonância cognitiva (SCHAFER / KARLINS, pág. 231, 2015).
O fragmento acima foi extraído do Manual de Persuasão do FBI (Federal Bureau of Investigation, ou, em português, Departamento Federal de Investigação) que, grosso modo, é o equivalente norte-americano à Polícia Federal Brasileira. Seus autores são os psicólogos Marvin Karlins e Jack Schafer, que também é ex-agente do FBI e que, conforme expõe na obra, explorou com sucesso muitas das técnicas e conceitos nela contidas, dentre elas, o conceito de dissonância cognitiva, descrito acima e que explica bastante sobre os motivos de, mesmo diante de verdades incontestáveis e amontoados de provas que contradizem nossas convicções pessoais, resistirmos tanto à mudá-las.
Dito isso, gostemos ou não e pouco importando quais são as nossas convicções, estamos todos inseridos num modelo econômico capitalista e, dessa forma, fomos educados, por assim dizer, a compreender o mundo sob a óptica desse modelo. Antes de qualquer coisa, porém, convém que esclareçamos o que, afinal, significa ser capitalista. Para isso será preciso que nos dispamos de paixões ideológicas, a fim de compreendermos, sem equívocos, os significados de alguns termos que se veem repetidos por tantas pessoas, mas que, ao que parece, desconhecem suas definições, tratando – as como coisas opostas do tipo bem e mal, o que não condiz com a realidade.
IGUAIS, MAS DIFERENTES
Calma! Não se preocupem. Não divagaremos acerca de extensas teorias econômicas e nem iremos nos aventurar a ensinar economia a quem quer que seja. Não é disso que se trata. Entretanto, teremos de ter uma noção básica para não cairmos mais em armadilhas ou sermos enganados sistematicamente por pessoas ou grupos que se valem de discursos enviesados para angariar seguidores e apoiadores dessa ou daquela corrente política.
Em linhas gerais e apertada síntese, capitalismo se refere a um modelo econômico no qual os meios de produção – fábricas, empresas, indústrias, terras – pertencem aos particulares, ou seja, são privados. Esses donos dos meios empregam outras pessoas que, não possuindo os meios de produção, vendem o que têm, ou seja, a força de trabalho, seja ela braçal, seja intelectual, em troca de dinheiro – salário ou remuneração. Em relativo contraponto a esse modelo, temos o socialismo; e é aqui que o caldo tende a entornar, pois é quase tabu falar em socialismo em certos meios sociais. É como gritar, a plenos pulmões, a frase “salve o diabo” dentro de uma igreja. Não tem como dialogar depois disso. Aliás, antes que sejamos mal compreendidos e digam que este modesto trabalho seja, de algum modo, intolerante com os valores religiosos, é bom que deixemos claro que não é disso que se trata, pois mesmo entre os filósofos, cujas ideias levaram à queda da monarquia francesa, havia quem acreditasse que o apego a tais valores tinham sua serventia social:
Meu filho, conserva tua alma em estado de desejar que Deus exista, e jamais duvidarás de sua existência. Pensa, de resto, que, qualquer partido que tomasses, os verdadeiros deveres da religião seriam sempre independentes das instituições humanas (ROUSSEAU, pág. 327, 1782).
E complementa:
Além disso, derribando, destruindo, pisando tudo quanto os homens respeitam, tiram aos aflitos o último consolo para as suas desventuras, e aos poderosos e aos ricos o único freio para as suas paixões, arrancam-lhes do fundo do coração o remorso do crime, a esperança da virtude, vangloriando-se ainda de serem os benfeitores do gênero humano (ROUSSEAU, pág. 328, 1782).
Os fragmentos acima, extraídos da obra intitulada Confissões, publicada postumamente em 1782, mas de autoria do filósofo suíço Jean-Jaques Rousseau (1712 – 1778), compõem, por sua vez, o livro Pensadores Franceses, publicado em 1952. Nele, o crítico literário brasileiro, José Brito Broca (1903 – 1961), compilou textos de diversos filósofos franceses, - Rousseau, apesar de suíço, radicou-se na França - condensando suas principais obras e fundamentos. As ideias cunhadas por Rousseau e outros célebres filósofos de seu tempo serviram de combustível para a Revolução Francesa que, dentre outras pautas, exigia a redução dos privilégios do clero. Daí o motivo de ser vista como um movimento que se contrapõe à religião, mas, na verdade, como vimos acima, a crítica era dirigida contra as estruturas institucionais - igrejas - que se valiam - e ainda se valem - da fé, sobretudo cristã, como instrumento de poder, e não contra a religião em si.
Mas sigamos adiante. Apesar de ser hercúlea a tarefa de falar sobre socialismo - ainda que de forma acadêmica, como fazemos aqui - num país tão contaminado culturalmente pelos Estados Unidos, como o Brasil, vamos nos esforçar um pouco mais. Tal como seu primo, o capitalismo, o socialismo também é um modelo econômico, apenas isso. Não é, portanto, como se afigura impregnado no imaginário popular, - méritos de Hollywood - uma seita maligna.
Na verdade o modelo socialista é assim retratado, em grande parte, pelo que se habituou chamar de Mercado, que graças aos esforços de verdadeiros cartéis políticos, vai muito bem, obrigado. Ah! E não é nenhuma blasfêmia falar sobre ele onde quer que seja, mesmo que numa igreja.
Mas tornemos ao cerne da questão. A diferença crucial e basilar entre esses dois modelos econômicos – sim, são apenas isso, nada mais – consiste no fato de que, no socialismo, os meios de produção - especialmente indústrias e tecnologias estratégicas - pertencem ou são controlados pelo Estado, ou seja, tudo aquilo, as fábricas, empresas, indústrias e terras são estatizadas. As pessoas ainda trabalham nelas e são remuneradas pelo trabalho prestado, mas os lucros não pertencem ao Mercado ou ao particular, mas ao próprio Estado, que os gerem, em grande parte, da mesma forma que no modelo capitalista, ou seja, reinvestindo parte na ampliação das empresas e na busca por novos mercados para os seus produtos.
Mas nesse último modelo - socialista, que, in tese, precede o comunista - parte dos lucros são empregados na criação de programas para melhorias das condições sociais, visando, sobretudo, a redução de desigualdades, por meio do que se chama de redistribuição de renda. Além dessa característica, o socialismo tende - não é uma regra, mas uma característica - a fazer pesados investimentos em pesquisa e desenvolvimento, diferindo-se muito neste ponto do seu primo, - capitalismo - já que investir em pesquisa envolve risco de não haver retorno, - lucro - o que se chama fundo perdido, ou seja, emprega-se certo montante numa ideia ou projeto que pode ou não dar certo. É, portanto, um papel que apenas o Estado pode - e deve - assumir, tendo em mente levar o país às fronteiras tecnológicas e promover assim avanços significativos.
Para o modelo capitalista, por seu turno, isso é contraintuitivo, pois esse risco de investir sem retorno certo não condiz com sua lógica básica, que é a da maximização de extração de lucros do capital investido. Não se trata, portanto, de ser bom ou mau, justo ou injusto, mas apenas de modelos diferentes adotados por diferentes nações por razões e influências filosóficas e históricas. Caso tenha ficado confuso, vamos às fontes desses modelos que moldaram as sociedades por meio da adoção de um ou de outro:
Os empregadores de mão-de-obra representam a terceira categoria, a daqueles que vivem do lucro. É o capital investido em função do lucro que movimenta a maior parte do trabalho útil de cada sociedade. Os planos e projetos dos investidores de capital regulam e dirigem todas as operações mais importantes do trabalho, sendo que o lucro constitui o objetivo proposto e visado por todos esses planos e projetos (SMITH, pág. 272. / 273, 1776).
E no contraponto:
Por fim, imaginemos uma associação de homens livres, que trabalham com meios de produção coletivos e que conscientemente despendem suas forças de trabalho individuais como uma única força social de trabalho (MARX, pág. 214, 1867).
Os fragmentos acima foram extraídos, respectivamente, das obras A Riqueza das Nações, do filósofo e economista escocês Adam Smith (1723 - 1790), publicado em 1776, e O Capital, do também filósofo e economista alemão Karl Marx (1818 - 1883), publicado em 1867, cumprindo frisar que estamos falando dos dois pensadores que fundaram, em termos filosóficos e históricos, o que hoje chamamos de capitalismo e socialismo. Sobre o primeiro, aliás, geralmente e sobretudo, certos autoproclamados coachs de economia das redes sociais, só sabem repetir acerca a tal da Mão Invisível do Mercado, sem nem terem ideia de que o que Smith, na verdade, disse, foi o seguinte:
Também nos tempos antigos era habitual tentar regulamentar os lucros dos comerciantes e de outros profissionais, determinando o preço dos mantimentos e de outros bens. Pelo que sei, o único remanescente desse antigo costume é a questão do preço do pão. Onde existe uma corporação com direitos exclusivos, talvez seja recomendável regulamentar o preço do alimento mais elementar. Mas onde isso não existe, a concorrência regulará tal preço de maneira muito mais eficaz do que qualquer tribunal (SMITH, pág. 184, 1776).
Pois é. Um pouco diferente do que os ditos coaches pregam aos seus seguidores, uma vez que o filósofo - fundador do capitalismo - não descartava a importância da intervenção do Estado na economia por completo, como querem fazer crer os ditos especialistas das redes sociais. Mas avancemos em nosso tema. Dito, portanto, isso, esperamos ter sido possível demonstrar que capitalismo e socialismo são, como afirmamos, apenas modelos econômicos que têm, como diferenças basilares, a detenção dos meios de produção - privado ou estatal - além de divergirem no emprego dos lucros obtidos - acumulação de capital ou reinvestimento social em diversas formas. Claro que numa análise mais aprofundada encontraremos outras diferenças e até mesmo semelhanças entre esses dois modelos, mas para atingirmos o objetivo buscado neste trabalho, os fragmentos trazidos dessas duas importantes obras bastarão.
À essa altura é normal que estejamos nos perguntado: mas o que isso tem a ver com a radicalização e polarização que levaram aos eventos de 8/1/2023? Bem, tudo. A cada um desses dois modelos econômicos perfilaram-se duas correntes de pensamento distintas: o conservadorismo, ao modelo capitalista, e o progressismo, ao modelo socialista. Para explicar com profundidade essas uniões, seria preciso um artigo - ou livro - à parte, mas tentaremos sintetizar ao máximo.
Em parte, esse fenômeno decorre do fato de que muitos dos defensores de cada um dos modelos econômicos aqui em análise notaram algo bastante evidente para todos nós, ou seja, o fato de que, salvo para Economistas, Contadores e pessoas que lidam profissionalmente ou no campo acadêmico com questões financeiras, esse não é um assunto muito popular e, portanto, não possui a capilaridade necessária para cooptar pessoas ao ponto de se tornarem movimentos de massa. A maioria de nós precisa lidar apenas com nossas próprias economias domésticas, - e alguns de nós nem faz isso com muita habilidade - logo, não é algo que gere engajamento político.
Ocorre que, ao fundirem e relacionarem costumes, modos de vida e até mesmo a religião como sendo partes integrantes daqueles modelos econômicos, seus defensores inseriram agentes catalisadores que encerram, indubitavelmente, a capacidade de arregimentar pessoas para defender esses modelos. Para ajudar-nos a ilustrar e a compreender, voltemos à Nietzsche:
A pele da alma. — Assim como os ossos, a carne, as entranhas e os vasos sanguíneos são envolvidos por uma pele que torna a visão do homem suportável, também as emoções e paixões da alma são revestidas de vaidade: ela é a pele da alma (NIETZSCHE, pág. 41, 1886).
Pois bem, tal como o notável filósofo dispõe, com clareza ímpar, que a vaidade humana é
como a pele que envolve nossas sangrentas entranhas, tornado suportável e até atraente - pelo menos em alguns de nós - a nossa aparência exterior, assim também o conservadorismo e o progressismo fizeram ao envolverem, respectivamente, o capitalismo e o socialismo.
Ou seja, tornou os complexos modelos e as complicadas teorias econômicas em coisas populares, mas não por meio da compreensão e estudo delas, pois isso não atingiria o objetivo de engajamento das massas, mas sim por meio da galvanização de ambas com temas ligados aos costumes e a religião das pessoas, pois essas nuances servem como chaves hermenêuticas para se comunicarem com pessoas que não são acadêmicas ou profissionais das ciências econômicas.
Conservadorismo e Progressismo são, portanto e por assim dizer, as peles das quais se revestem esses modelos econômicos e, desta forma, atingem a finalidade de seduzirem as massas, despertando nelas as paixões que irrompem em fúria quando expostas a discursos ou ideias que contradizem suas crenças e costumes. Todavia, essa fúria não é, conscientemente, dirigida aos modelos econômicos, - dos quais nada ou muito pouco conhecem - mas sim a valores que não são os seus, como modelos não tradicionais de família, religiões não cristãs e outros temas polêmicos, como o do direito da mulher ao aborto, em certos casos previstos em lei. Ocorre que, mesmo esses temas, que são ardentemente combatidos pelos atuais conservadores, não têm muita relação ao conceito primitivo de conservadorismo, senão vejamos:
Comprometer-se com a ordem política não significa, porém, vê-la como infensa a mudanças; estas são sempre necessárias, pois “a sabedoria do homem não alcança longe o bastante para vislumbrar todas as possíveis variedades de circunstâncias, que podem requerer a mitigação ou o aumento da severidade das velhas leis, ou a elaboração de novas” (LACERDA / GUEDES, pág. 18, 2022).
E complementa:
Mas, se as ideias de Burke deram origem ao moderno ideário conservador, a palavra “conservadorismo” (conservatism), no sentido de “doutrina política”, não se encontra em sua obra, tampouco nos textos de seus predecessores. Mas também não está totalmente ausente, pois consta o termo “conservação”, que aparece justamente na passagem supracitada que diz que “Um Estado sem os meios para alguma mudança é um Estado sem os meios para sua conservação” (LACERDA / GUEDES, pág. 22, 2022).
Os fragmentos acima, extraídos da brilhante obra intitulada Liberais e conservadores: textos fundamentais, dos professores Bruno Amaro Lacerda e Carlos Eduardo Paletta Guedes, bem revelam o que afirmamos acima, já que a análise trazida à baila é da ideia de ninguém menos que do filósofo irlandês Edmund Burke (1729 - 1797), considerado o fundador do conservadorismos. Todavia, depreende-se que o conservadorismo de Burke está calcado na ideia de conservação das instituições nacionais como forma de promover as mudanças que se afigurarem necessárias, mas de forma gradual, em contraponto ao desmonte violento das instituições por meio de revoluções ou movimentos insurgentes, como o havido na Revolução Francesa.
Logo, não se trata do conjunto de pautas morais ou de costumes que os ditos conservadores atuais se jactam de defender e, neste sentido, relacionar tais pautas ao conservadorismo constitui uma inovação - ou distorção - tardia e que se presta apenas como ferramenta ou forma para gerar engajamento, pois são questões viscerais que dizem respeito ao modo de vida das pessoas, de modo que, não reagir a temas assim, torna-se bastante difícil.
Prova disso é que, certamente, caso fossem colocados dois economista, em rede nacional e em horário nobre, debatendo vantagens e desvantagens de cada um dos modelos econômicos aqui tratados, a audiência seria muito aquém do desejado pelos patrocinadores. Por outro lado, caso o debate fosse entre dois influenciadores digitais e o tema fosse o aborto ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a audiência deixaria os patrocinares do canal muito felizes.
Mas já que falamos em canal, audiência e patrocinadores, talvez alguns tenham se questionado se a imprensa não teria, por dever de ofício, esclarecer a população - espectadores - sobre isso tudo que estamos falando aqui, já que o seu papel fundamental numa democracia é o de informar com a máxima isenção possível. Então qual seria o motivo de parecer não ser dessa forma? Para responder a isso, teremos de nos socorrer de uma autoridade no assunto:
As campanhas de publicidade veiculadas empurram incessantemente comportamentos e atitudes centrados no consumo obsessivo dos produtos das grandes corporações. Isto amarra a mídia de duas formas: primeiro, porque pode-se dar más notícias sobre o governo, mas nunca sobre as empresas, mesmo quando entopem os alimentos de agrotóxicos, deturpam a função dos medicamentos ou nos vendem produtos associados com a destruição da floresta amazônica. Segundo, como a publicidade é remunerada em função de pontos de audiência, a apresentação de um mundo cor-de-rosa de um lado, e de crimes e perseguições policiais de outro, tudo para atrair a atenção pontual e fragmentada, torna-se essencial, criando uma população desinformada ou assustada, mas sobretudo obcecada com o consumo, o que remunera com nosso dinheiro as corporações que financiam estes programas (DOWBOR, pág. 121. / 122, 2017).
O fragmento acima foi extraído da obra A era do capital improdutivo: Por que oito famílias tem mais riqueza do que a metade da população do mundo?, do economista e professor brasileiro Ladislau Dowbor. Publicada em 2017, faz uma análise profunda e abrangente sobre diversas contradições do capitalismo, mas, especificamente, do capitalismo financeiro, ou seja, do capital que gera dividendos por si só, e não por meio da produção e comercialização de bens ou pelo fornecimento de serviços, bem como demonstra de forma brilhante como essa vertente - ainda mais selvagem do capitalismo - drena valiosos recursos do Estado, das Empresas e das pessoas em geral. Mas para ficarmos restritos ao papel da imprensa para com a população, no trecho destacado, o professor nos explica com bastante clareza os motivos dela ignorar solenemente notícias que possam ir contra aos interesses do mercado financeiro. Um ciclo vicioso que apenas se resolveria com uma imprensa independente e menos gananciosa.