A utilização indevida pelos EUA da Lei Magnitsky contra ministros da Suprema Corte brasileira é um fato bem documentado, sobre o qual não me estenderei. Juristas e até mesmo o cidadão que inspirou a aprovação dessa Lei tem dito claramente que o governo norte-americano não pode empregar essa Lei para coagir juízes brasileiros a absolver Jair Bolsonaro ou a perdoá-lo.
O ex-presidente do Brasil não é cidadão norte-americano. E o julgamento dele no Brasil de acordo com a legislação brasileira por atos cometidos em nosso território não causará nenhum prejuízo a terceiros nos EUA, exceto se admitirmos a hipótese de que ao tentar dar um golpe de estado ele estava atuando como preposto de empresários norte-americanos. Nesse caso, os mandantes do golpe teriam cometido o mesmo crime e estariam sujeitos a sanção no Brasil.
Todos os países são igualmente soberanos e nenhum tem o privilégio de impor sua vontade no território alheio. A interferência nos assuntos internos de outro país não é legítimo, nem tampouco autorizado pela legislação internacional. Portanto, na hipótese de Jair Bolsonaro ter agido como preposto das Big Techs isso não permitir aos EUA impor sanções contra os juízes encarregados de julgá-lo no Brasil. A ilicitude da pretensão dos mandantes estrangeiros do golpe, caso eles existam, contaminaria a utilização da Lei Magnitsky.
Essa Lei foi aprovada para garantir a licitude das relações entre cidadãos e empresas norte-americanas fora dos EUA. Não para possibilitar a ilicitude das pretensões delas (ou mesmo do governo dos EUA) nos outros países.
Dito isso, passo a analisar especificamente o caso da utilização da referida Lei contra a esposa do Ministro Alexandre de Moraes.
É princípio jurídico fundamental compartilhado por todos as nações civilizadas, sejam elas politicamente organizadas ou não, que cada qual é responsável pelos seus atos. A punição deve ser imposta ao infrator, não a terceiros. A esposa não deve ser punida pelos atos cometidos pelo esposo, assim como os filhos são irresponsáveis pelos atos praticados pelo seu pai.
Na esfera penal não existe dúvida de que a pena não deve ultrapassar a pessoa do condenado. Na esfera civil, as dívidas contraídas pelo marido não alcançam a meação da esposa caso ela mesma não tenha participado do negócio. Exceptuando-se o caso de fraude, o patrimônio dos filhos não pode ser penhorado por obrigações contraídas por seus pais.
Mesmo que se admita que a Lei Magnitsky possa ser utilizada pelo governo Donald Trump contra um Ministro do STF, a esposa de Alexandre de Moraes deveria ter sido poupada. Ela não é juíza, nem poderia interferir de maneira legítima nas decisões judiciais proferidas pelo marido dela. Ademais, o exercício da função pública impede um membro da Suprema Corte de consultar sua esposa, companheira, esposo ou companheiro antes de decidir os processos sob sua jurisdição. Se comprovada, a sujeição do juiz às orientações de outra pessoa contaminaria de nulidade sua decisão.
A desmedida do governo Trump no caso da punição imposta à esposa de Alexandre de Moraes é evidente. Em hipótese alguma essa decisão se sustenta, porque ele mede uma pessoa com a medida que só poderia ser utilizada em relação à outra. E já que estamos falando de medidas e desmedidas, convém lembrar aqui uma questão relevante:
“Hoje existem leis em todos os países contra o uso de pesos e medidas que não sejam do tamanho prescrito, com inspetores oficiais para garantir que as leis sejam observadas. Assim era em Atenas, por exemplo, onde os Metronomoi eram magistrados responsáveis e devem (mesmo antes da data da inscrição de cerca de 100 aC, IG 1013, que será discutida abaixo) ter mantido um conjunto completo de pesos e medidas oficiais, para que pudessem resolver disputas sobre a validade dos itens privados usados por compradores e vendedores. Os Metronomoi (e os magistrados correspondentes em outros lugares) teriam a palavra final e, se surgisse uma disputa, ela seria resolvida pela apresentação das medidas oficiais mantidas pelos Metronomoi. Todas as medidas possuídas privadamente e usadas em um Estado particular, portanto, tenderiam ( na medida em que não fossem fraudulentas) a se aproximar em capacidade de medidas físicas oficiais, quer essas fossem ou não exatamente do tamanho teórico correto,”
(As origens democráticas de Atenas, G.E,M. de Ste. Croix, Mnema, Araçoiaba da Serra, 2025, p. 434/435)
Não existe Metronomoi capaz de avaliar e legitimar a decisão de Donald Trump de usar no caso da esposa de Alexandre de Moraes a mesma medida que ele indevidamente havia empregado em relação àquele Ministro do STF. O peso da opinião da esposa do juiz quando da prolação de uma decisão judicial é inexistente. Ele deve ser inexistente, porque de outra maneira o ato de decidir de uma maneira e não de outra seria ilegítimo.
Todavia, ao impor essa nova sanção o governo dos EUA modifica todas as escalas. Ele impõe ao juiz brasileiro considerações de natureza familiar quando for obrigado a decisões questões que o governo Donald Trump considera sensíveis.
Na prática, a Casa Branca não apenas quer ter o privilégio de julgar qualquer processo no Brasil. Ela está elevando Trump à condição de único Metronomoi hemisférico, “[…] pois deveis saber que o justo, nas discussões entre homens, só prevalece quando os interesses de ambos os lados são compatíveis, e que os fortes exercem o poder e os fracos se submetem.” (Tucídides, Historia da Guerra do Peloponeso, 4ª edição - Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001 XLVII, 584 p., 23 em - Clássicos IPRI, 2)
A punição imposta à esposa de Alexandre de Moraes é uma versão moderna do famoso discurso meliano. Donald Trump, um autoproclamado Metronomoi hemisfério cujo único instrumento de medida é sua vontade e irracionalidade, criou uma escala própria absurda para rebaixar o sistema de pesos e contrapesos constitucionais que garante tanto a soberania brasileira quanto a autonomia do Poder Judiciário do nosso país. Isso equivale apenas a uma declaração de guerra. Todavia, a decisão comentada também fornece uma prova irrefutável da decadência dos EUA, país que alcançou o pico mais alto no nível mais baixo de qualquer civilização passada ou futura.