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Apontamentos sobre a cognição judicial no processo civil

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O conhecimento é a apreensão de um objeto, que, ao seu turno, produzirá uma modificação no sujeito cognoscente, que é chamada de pensamento. Este, sob o ponto de vista subjetivo, nada mais é do que a modificação sofrida pelo sujeito, pois o sujeito conhecedor produz uma alteração em si mesmo para apossar-se do objeto.

Sumário: 1. Conceito de cognição judicial; 1.1. O conhecer: noções de gnoseologia; 1.2. Cognição judicial: seu caráter prevalentemente lógico e os elementos de caráter não-intelectual; 2. Objeto da cognição judicial; 3. A utilização da cognição como técnica processual; 3.1. A utilidade e influência da cognição judicial no processo civil; 3.2. Cognição nos planos horizontal e vertical; 3.3. Espécies de cognição judicial; 4. Considerações finais; 5. Referências bibliográficas.


1. Conceito de cognição judicial

O termo conhecimento provém do latim cognitio, e recebe diversas denominações ao redor do globo, tais como: knowledge na língua inglesa, connaissance em francês, conoscenza em italiano e Erkenntniss em alemão. Conhecer é trazer para o sujeito cognoscente algo que se põe como objeto [01]. A teoria do conhecimento ou gnoseologia (gnoseology em inglês, gnoséologie em francês, teoria della conoscenza no italiano e Erkenntnistheorie em alemão) trata do problema específico de como se dá o processo cognitivo, em especial da possibilidade do conhecimento e de sua origem.

Locke é considerado, historicamente, o fundador dessa disciplina com sua pesquisa intitulada An essay concerning human understanding, no ano de 1690, na qual pôs em pauta o problema do conhecimento humano. A gnoseologia pode ser conceituada "como a disciplina que filosoficamente estuda, sob todos os aspectos possíveis, o conhecimento humano" [02].

Afirma ABBAGNANO que "como procedimento de verificação, qualquer operação cognitiva visa a um objeto e tende a instaurar com ele uma relação da qual venha a emergir uma característica efetiva deste" [03]. Conhecer consiste, então, em trazer para a consciência do sujeito algo que se encontra externo a ele, em outras palavras, trata-se de uma apreensão do objeto posto, na qual são transferidos ao ente cognoscente as propriedades do objectum (aquilo que se põe diante do sujeito).

No dizer de Maria Helena DINIZ:

No conhecimento encontram-se frente a frente a consciência cognoscente e o objeto conhecido. A dualidade de sujeito e objeto é uma relação dupla, ou melhor, é uma correlação em que o sujeito é sujeito para o objeto e o objeto é objeto para o sujeito, de modo que não se pode pensar um sem o outro. O sujeito cognoscente tende para o objeto cognoscível. Esta tendência é a intencionalidade do conhecimento, que consiste em sair de si, para o objeto, a fim de captá-lo mediante um pensamento; o sujeito produz um pensamento do objeto [04].

Portanto, o conhecimento é a apreensão de um objeto, que, ao seu turno, produzirá uma modificação no sujeito cognoscente, que é chamada de pensamento. Este, sob o ponto de vista subjetivo, nada mais é do que a modificação sofrida pelo sujeito, pois o sujeito conhecedor produz uma alteração em si mesmo para apossar-se do objeto. Segundo Miguel REALE, "conhecer é trazer para nossa consciência algo que supomos ou pré-supomos fora de nós. O conhecimento é uma conquista, uma apreensão espiritual de algo. Conhecer é abranger algo tornando-nos senhores de um ou de alguns de seus aspectos" [05].

Clara é essa relação indissolúvel entre sujeito e objeto, pois é exatamente esse relacionamento intelectual entre ambos o que se denomina conhecimento. Para o filósofo alemão Johannes HESSEN:

No conhecimento defrontam-se consciência e objeto, sujeito e objeto. O conhecimento aparece como uma relação entre esses dois elementos. Nessa relação, sujeito e objeto permanecem eternamente separados. O dualismo do sujeito e do objeto pertence à essência do conhecimento.

Ao mesmo tempo, a relação entre os dois elementos é uma relação recíproca (correlação). O sujeito só é sujeito para um objeto e o objeto só é objeto para um sujeito. Ambos são o que são apenas na medida em que o são um para o outro. Essa correlação, porém, não é reversível. Ser sujeito é algo completamente diverso de ser objeto. A função do sujeito é apreender o objeto; a função do objeto é ser apreensível e ser apreendido pelo sujeito [06].

Deve-se ressaltar que, apesar da invasão da esfera do objeto pelo sujeito conhecedor, na qual vai haver a captura da(s) propriedade(s) daquele, o objeto conserva-se heterogêneo em relação ao sujeito, pois é transcendente (existe em si), pelo que suas propriedades permanecem inalteradas pela atividade do ente cognoscente. Ainda nesse sentido, HESSEN afirma:

Vista a partir do sujeito, essa apreensão aparece como uma saída do sujeito para além de sua esfera própria, como uma invasão da esfera do objeto e como uma apreensão das determinações do objeto. Com isso, no entanto, o objeto não é arrastado para a esfera do sujeito, mas permanece transcendente a ele. Não é no objeto, mas no sujeito que algo foi alterado pela função cognoscitiva. Surge no sujeito uma ‘figura’ que contém as determinações do objeto, uma ‘imagem’ do objeto [07].

Cumpre asseverar, ainda, que conhecer algo está condicionado pelo sistema de referência daquele que conhece, razão pela qual não se pode afirmar a existência de um conhecimento absoluto, pois ele somente pode ser relativo. O sujeito cognoscente não é capaz, portanto, de apreender toda a realidade em si mesma, mas tão somente sua imagem, de acordo com seu sistema de referência, bem como suas noções de espaço e tempo. Segundo REALE, "se, porém, o conhecimento é próprio do homem, nem todos os homens conhecem da mesma forma, e o mesmo homem pode conhecer ‘algo’ de maneira diversa" [08].

Visto esse aspecto dual do processo de conhecimento, faz-se necessário analisar a possibilidade e a origem do conhecimento.

Com relação à possibilidade do conhecimento, surgiram várias teorias ao longo da história da humanidade, quais sejam: o dogmatismo, o ceticismo (e seus desdobramentos, o subjetivismo [relativismo] e o pragmatismo) e, por fim, o criticismo.

Por dogmatismo (da palavra grega dogma, que significa doutrina estabelecida) "entendemos a posição epistemológica para a qual o problema do conhecimento não chega a ser levado em consideração" [09]. Era chamada de dogmática toda filosofia que afirmasse certas teses como verdadeiras e incontestáveis [10]. Essa posição tomou, sobretudo entre nós, a acepção de doutrina fixada, incontestada. Para esta linha de pensamento, a possibilidade do conhecimento e a realidade do contato ocorrida entre sujeito e objectum são puramente pressupostas. É natural que a consciência cognoscitiva apreenda o objeto a ser conhecido. Sob esse viés, sustenta-se uma crença absoluta na razão humana, que sempre é capaz de conhecer o que lhe é posto. Como afirma Mario Ferreira dos Santos:

Na gnosiologia, considera-se dogmatismo (que chamaremos de dogmatismo gnosiológico), aquêle (sic) que afirma, quanto à possibilidade do conhecimento, que o contacto (sic) entre o sujeito e o objeto implica um conhecimento exato e verdadeiro, sôbre (sic) o qual não põe dúvidas [11].

No ceticismo (que vem do grego skepsis, que significa análise, e do verbo skeptomai, examinar atentamente), corrente diametralmente oposta ao dogmatismo, "o sujeito não seria capaz de apreender o objeto. O conhecimento como apreensão efetiva do objeto seria, segundo ele, impossível" [12]. Para essa concepção, não estamos aptos a realizar juízo algum, ao contrário, devemos nos abster de toda e qualquer formulação de juízos (suspensão do juízo = epokhê), em virtude de nossa falibilidade em conhecer o que está a nossa volta. HESSEN assevera que:

(...) o ceticismo não enxerga o objeto. Seu olhar está colado de modo tão unilateral ao sujeito, à função cognoscente, que desconhece por completo a referência ao objeto. Sua atenção está sempre completamente direcionada aos fatores subjetivos do conhecimento humano. Ele observa que todo o conhecimento é condicionado por peculiaridades do sujeito e de seus órgãos de conhecimento, bem como por circunstâncias externas (meio ambiente, cultura). Com isso, desaparece de sua vista o objeto, que é, no entanto, necessário para que aconteça o conhecimento, que significa exatamente uma relação entre um sujeito e um objeto [13].

Para o subjetivismo (relativismo), que se mostra como uma amenização ao ceticismo, "a verdade certamente existe, mas é limitada em sua validade. Não há verdade alguma universalmente válida. O subjetivismo, como seu nome já indica, restringe a validade da verdade ao sujeito que conhece e que julga" [14], ou seja, a verdade encontra-se limitada ao sujeito cognoscente.

O pragmatismo (palavra derivada do grego prâgma, que significa ação), também considerado uma ramificação do ceticismo, assim como este, repudia o conceito de verdade como a correlação entre o pensamento e a realidade. Todavia, ao invés de apenas deter-se nesta negação, propõe outro conceito de verdade. Segundo essa corrente, é verdadeiro aquilo que é útil e valioso para a existência do homem. Preleciona HESSEN que:

O pragmatismo chega a esse deslocamento valorativo do conceito de verdade porque parte de uma determinada concepção da essência humana. Para ele, o homem é, antes de mais nada, um ser prático, dotado de vontade, ativo, e não um ser pensante, teórico. Seu intelecto está totalmente a serviço de seu querer e de seu agir. O intelecto não foi dado do homem para investigar e conhecer, mas para que possa orientar-se na realidade. É dessa determinação prática de fins que o conhecimento humano retira seu sentido e seu valor. A verdade do conhecimento consiste na concordância do pensamento com os objetivos práticos do homem – naquilo, portanto, que provar ser útil e benéfico para sua conduta prática [15].

Tanto o dogmatismo quanto o ceticismo representam visões unilaterais e extremas sobre o fenômeno do conhecimento humano.

Surge com KANT uma posição intermediária entre esses pólos por meio do criticismo (do grego krínein, que significa examinar, pôr à prova). Essa linha de pensamento divide com o dogmatismo a crença na razão humana, pois prega que o conhecimento é possível e que a verdade existe. Contudo, essa confiança reconhece um limite para a capacidade humana de conhecimento, aproximando-se neste ponto do ceticismo. Dessa forma, junta a confiança no conhecimento humano em geral a uma desconfiança com relação a qualquer conhecimento determinado. O criticismo põe à prova toda afirmação emanada da razão humana e nada aceita sem essa perquirição. Sua posição, portanto, "não é nem cético nem dogmático, mas criticamente inquisidor – um meio termo entre a temeridade dogmática e o desespero cético" [16]. Afirma HESSEN que:

Kant chegou a esse ponto de vista depois de haver passado tanto pelo dogmatismo quanto pelo ceticismo. Ambos os pontos de vista são, segundo ele, unilaterais. O primeiro tem ‘uma confiança séria na capacidade da razão humana’; o segundo é ‘a desconfiança adquirida, sem crítica prévia, contra a razão pura’. O criticismo supera essas duas unilateralidades. Ele é ‘aquele método da atividade de filosofar que investiga tanto a fonte de suas afirmações e objeções quanto os fundamentos sobre os quais repousa; um método que nos dá a esperança de atingir a certeza’. Comparado aos outros, esse ponto de vista aparece como o mais maduro [17].

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Parece-nos mais acertada a essa última posição, que também é a mais aceita pelos filósofos hodiernos, pois sintetiza as duas visões unilaterais e extremadas do processo cognitivo pré-citadas, não tomando uma atitude dogmática nem cética, mas sim reflexiva e crítica.

No que tange à origem do conhecimento, aspecto de maior relevância para o presente texto, temos as seguintes correntes filosóficas: o racionalismo, o empirismo e o apriorismo.

O racionalismo (que vem de ratio, razão) considera a razão como a principal fonte do conhecimento humano. Segundo essa corrente, um conhecimento só é válido se for necessário e universal. Conforme o filósofo alemão, "se minha razão julga que deve ser assim, que não pode ser de outro modo e que, por isso, deve ser assim sempre e em toda a parte, então (e só então), segundo o modo de ver do racionalismo, estamos lidando com um conhecimento autêntico" [18]. Assim, somente os juízos baseados no pensamento, emanados da razão, possuem validade lógica e universal, os outros não. Destarte, todo conhecimento puro depende do pensamento, pois ele é a verdadeira nascente e fundamento do conhecimento humano.

Chega-se a conclusão, portanto, que "os racionalistas são unânimes em considerar que, gnosiologicamente, é a razão que nos dá o conhecimento, pois a intuição apenas nos oferece o facto, que a razão coordena, conexiona, analisa e sintetiza numa visão clara e ordenada" [19].

Nesse sentido, ainda, Miguel REALE preleciona que: "o racionalista reconhece que o fato, aquilo que é dado de maneira direta a intuitiva, é elemento indispensável como fonte do conhecer, mas sustenta também que os fatos não são fonte de todos os conhecimentos e que, por si sós, não nos oferecem condições de ‘certeza’" [20].

Deve ser considerado mérito da escola racionalista o apontamento da importância de fatores racionais para o conhecimento do homem. Não obstante, tal visão é unilateral ao fazer do pensamento a única e verdadeira fonte de conhecimento, pois esse raciocínio é válido apenas para parte do conhecimento humano, tal como o conhecimento matemático.

Em oposição a esse pensamento surge uma outra corrente doutrinária denominada empirismo.

Para essa corrente, ao contrário do que sustentava a anterior, a consciência do sujeito cognoscente não extrai seus conteúdos da razão, mas sim da experiência unicamente. O sujeito conhecedor é tido como uma tabula rasa, expressão da qual se vale a maioria dos autores ao tratar do empirismo, ou uma folha de papel em branco sobre a qual a experiência irá escrever. Assim, tudo o que se conhece advêm da experiência, razão pela qual "seria inútil procurar por conceitos que já estivessem prontos no espírito ou que se formassem independentemente da experiência. A experiência aparece, assim, como uma única fonte do conhecimento" [21]. Dessa maneira, "designamos com o termo empirismo ou empiricismo todas aquelas correntes de pensamento que sustentam ser a origem única ou fundamental do conhecimento dada pela experiência (...)" [22].

O empirismo, tal qual o racionalismo, também possui parcela de importância para problema histórico da origem do conhecimento humano. Essa contribuição consiste em que, diametralmente oposto ao racionalismo, o empiricismo apontou com ênfase a relevância do fator experiência para o processo cognitivo. Todavia, ao tentar fazer desse fator a única fonte do conhecimento, trocou um extremo por outro.

Em síntese, os empiristas afirmam que o conhecimento é conquistado por meio da experiência, por isso todo conhecimento deve ser considerado como a posteriori. Já os racionalistas sustentam que o conhecimento nada deve ao fator experiência, pois são criados a priori, em virtude da própria razão.

Surge na história da filosofia, como sempre ocorre quando coexistem duas posições polarizadas, uma vertente intermediária, idealizada por KANT, que se denomina apriorismo. Distingue ele, primeiramente, duas formas de conhecimento, quais sejam: a) conhecimento a priori, que é todo aquele que seja adquirido independentemente de qualquer experiência; b) conhecimento a posteriori, ou seja, aqueles que provêm da experiência [23].

Segundo o apriorismo kantiano, considera-se tanto a experiência quanto a razão como fontes do conhecimento. Para essa corrente, o conhecimento apresenta elementos a priori, mas dependentes da experiência, ou seja, a razão recebe seu conteúdo da experiência. Os fatores a priori assemelham-se a recipientes vazios, que são preenchidos com conteúdos concretos trazidos pela experiência. Para o apriorismo, o fator apriorístico não provém da experiência, mas da razão. A razão leva, por seu turno, as formas a priori até o material empírico (provindo da experiência) e determina os objetos do conhecimento. Nas palavras de KANT:

Não se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos começam com a experiência, porque, com efeito, como haveria de exercitar-se a faculdade de conhecer, se não fôsse (sic) pelos objetos que, excitando os nossos sentidos, de uma parte, produzem por si mesmos representações, e de outra parte, impulsionam a nossa inteligência a compará-los entre si, a reuni-los ou separá-los, e deste modo à elaboração da matéria informe das impressões sensíveis para êsse (sic) conhecimento das coisas que se denomina experiência?

No tempo, pois, nenhum conhecimento precede a experiência, todos começam por ela. (...)

Mas se é verdade que os conhecimentos derivam da experiência, alguns há, no entanto, que não têm essa origem exclusiva, pois poderemos admitir que o nosso conhecimento empírico seja um composto daquilo que a nossa faculdade cognoscitiva lhe adiciona. (...) Tais conhecimentos são denominados "a priori", e distintos dos empíricos, isto é, àqueles que só são "posteriori", quer dizer, por meio da experiência [24].

HESSEN, ao refletir sobre o apriorismo kantiano, conclui que:

O fundador desse apriorismo é Kant. Toda sua filosofia foi governada pela tendência a mediar entre o racionalismo de Leibniz e Wolff e o empirismo de Locke e Hume. E ele o fez afirmando que o material do conhecimento provém da experiência, enquanto a forma provém do pensamento. Com o material, tem-se em vista as sensações. Elas são completamente desprovidas de determinação e de ordem, apresentam-se como um puro caos. Nosso pensamento produz ordem nesse caos na medida em que conecta os conteúdos sensíveis uns aos outros e faz com que eles se relacionem. Isso ocorre por meio das formas da intuição e do pensamento. Espaço e tempo são as formas da intuição. A consciência cognoscente introduz ordem no tumulto das sensações na medida em que as ordena espacial e temporalmente na simultaneidade ou na sucessão [25].

Assim, o apriorismo kantiano declara, primeiramente, que o conhecimento não pode prescindir da experiência, que fornece o material cognoscitivo, e, por outro lado, afirma que o conhecimento empírico não pode prescindir de elementos da razão, haja vista que o conhecimento só adquire validade quando os dados sensoriais são ordenados pela razão.

Conforme a doutrina de KANT, ser impressionado por um objeto (sensação) não equivale a uma atitude passiva, de singela ordenação material empírico apreendido. As sensações ocorrem de acordo com o alcance dos sentidos humanos e com o sistema de referências de espaço e do tempo do sujeito cognoscente. O ser humano, desse modo, no processo cognitivo, desde a apreensão da sensação, confere a marca de sua subjetividade em algo que se põe a conhecer (objeto). Conhecer, para ele, é submeter algo à nossa subjetividade. Conclui Miguel REALE que:

(...) na explicação crítico-transcendental, o conhecimento só se opera validamente e se conclui, quando o pólo negativo (elemento empírico) se encontra com o pólo positivo (entendimento), fechando o circuito do conhecimento, o que só é possível em virtude da força originária e sintética do espírito. Nem a intuição sensível e nem a atividade intelectiva podem, cada uma de per si, atingir o plano do conhecimento. Conhecer é unir um elemento material de ordem empírica e intuitiva aos elementos formais de ordem intelectual, elementos estes que são a priori em relação aos dados sensíveis, cuja ordenação possibilitam [26].

O apriorismo kantiano é adotado e permeia todo esse texto, como a vertente filosófica-epistemológica que se mostra a mais correta, ou pelo menos a mais plausível, no que diz respeito à origem do conhecimento humano, pois parece ter a qualidade de sintetizar de uma forma mais completa, clara e madura todas as reflexões já feitas por séculos em torno do assunto.

1.2. Cognição judicial: seu caráter prevalentemente lógico e os elementos de caráter não-intelectual

Vistas essas noções preliminares de Gnoseologia, passa-se a análise da cognição efetuada pelos magistrados no processo civil. Para isso, deve-se ter em mente, a todo instante, que o processo cognitivo consiste na apreensão das características de um objeto pelo sujeito cognoscente, por meio de seu sistema de referência (espaço e tempo), na qual as características apreendidas são ordenadas e assimiladas pela razão (apriorismo kantiano).

De acordo com Alexandre Freitas Câmara a cognição judicial pode ser conceituada como:

(...) a técnica utilizada pelo juiz para, através de consideração, análise e valoração das alegações e provas produzidas pelas partes, formar juízos de valor acerca das questões suscitadas no processo, a fim de decidi-las. Trata-se de atividade comum a todas as categorias de processo, embora se revele predominante no processo cognitivo [27].

O magistrado, a fim de poder emitir um provimento adequado (baseado em juízos de valor) ao caso que lhe é posto, precisa examinar e valorar todas as alegações e provas produzidas no decorrer do processo. A essa técnica de valoração e análise dá-se o nome de cognição.

Segundo Cândido Rangel DINAMARCO, conhecer, para o processualista, "significa tomar contato com a realidade do caso concreto, fatos invocados, norma pertinente, investigando a verdade dos fatos se for o caso, para finalmente emitir um juízo axiológico através da decisão. O conhecimento é a tomada de consciência para decidir" [28].

Cognição judicial, portanto, é a atividade realizada pelo julgador para conhecer o objeto que lhe é posto, e consiste numa correlação entre o magistrado (sujeito cognoscente) e o objeto litigioso (objeto cognoscível).

Essa atividade cognitiva do magistrado possui, prevalentemente, caráter lógico. A cognição judicial, conforme acentua Kazuo WATANABE [29], é prevalentemente um ato de inteligência, pois consiste em analisar e valorar as questões de fato e de direito que são deduzidas no processo pelas partes, e cujo resultado é o alicerce, o fundamento do judicium.

CHIOVENDA já alertava para o caráter lógico da cognição ao afirmar que:

Antes de decidir a demanda, realiza o juiz uma série de atividades intelectuais com o objetivo de se aparelhar para julgar se a demanda é fundada ou infundada, e, pois, apara declarar existente ou não existente a vontade concreta de lei, de que se cogita.

Essas atividades intelectuais, instrumento da atualização da vontade da lei mediante verificação, constituem a cognição do juiz [30].

Apesar do caráter prevalentemente lógico da cognição judicial, não se pode reduzir esse ato de inteligência do juiz a um mero silogismo [31] por ele efetuado, como querem os teóricos da concepção declaratória do processo. Aceitar que o julgamento de uma lide decorra simplesmente de um silogismo, que pode ser conceituado como um raciocínio dedutivo no qual ocorre a subsunção de um caso concreto (premissa menor) à norma jurídica correspondente (premissa maior) para se chegar a uma decisão (conclusão) [32], seria ignorar uma gama de fatores que influencia sobremaneira o ato de cognição (como o psicológico, político, semiológico [33], volitivo, sensitivo, vivencial, intuitivo, cultural, dentre outros) e, conseqüentemente, sentença exarada pelo magistrado. Conforme Eduardo COUTURE:

O juiz não poder ser um símbolo matemático, porque é um homem; o juiz não pode ser a boca que pronuncia as palavras da lei, porque a lei não tem possibilidade material de pronunciar todas as palavras do direito; a lei procede tendo por base certas simplificações esquemáticas e a vida apresenta, diariamente, problemas que não puderam entrar na imaginação do legislador [34].

Ora, por certo o juiz não pode ser considerado um lógico que fabrica silogismos. A cognição realizada no processo, que no caso abrangeria as premissas maior e menor, bem como a conclusão última emanada desse processo cognitivo (provimento judicial ou sentença) [35], são frutos de uma constelação de deduções, induções e conclusões, realizadas não apenas com o que foi deduzido em juízo, mas também com fulcro na experiência daquele incumbido de solucionar a lide. O direito não é apenas lógica, mas também experiência. Miguel REALE assevera que:

(...) a aplicação do Direito não se reduz a uma questão de lógica formal. É antes uma questão complexa, na qual fatores lógicos, axiológicos e fáticos se correlacionam, segundo exigências de uma unidade dialética, desenvolvida ao nível da experiência, à luz dos fatos e de sua prova. (...)

Isto não quer dizer, porém, que nos caiba optar, ou pela Lógica, ou pela experiência. Não tem sentido essa alternativa, porquanto seria inútil e nociva, no mundo jurídico, qualquer concepção lógica divorciada da experiência social e histórica [36].

É nítida a influência da experiência na forma pela qual o magistrado é levado a conhecer o objectum do processo, pois, como já disse Pontes de MIRANDA, "a cada invasão do objeto não é virgem o cérebro: o que ele recebe de novo recebe sobre camadas de passado e misturado de passado" [37]. Dessa forma, são diferentes, verbi gratia, no julgamento de uma ação de indenização por acidente de automóveis, a conclusão de um juiz que sabe dirigir e o de um outro magistrado que jamais dirigiu, porquanto a avaliação dos fatos depende de inúmeros conhecimentos prévios a respeito das circunstâncias que ordinariamente cercam um acidente. Dessa forma, aquele primeiro é capaz de examinar o caso dentro do contexto global, considerando o que a experiência lhe sugere, enquanto o segundo será levado a solucionar o caso na conformidade do critério abstrato e teórico que o estudo do sistema jurídico lhe proporcionou [38].

Não se deve esquecer, portanto, que o juiz é componente da sociedade em que vive. Ele participa de seu acervo cultural e dos problemas que a envolvem, surgindo daí as escolhas que, por meio dele, a própria sociedade vem a fazer no processo. O juiz, se um dia se pensou ideologicamente neutro, mentiu a si mesmo. O magistrado, antes de ser magistrado, é homem partícipe de todas as tendências do meio social em que está imerso. Nos dizeres de Carlos MAXIMILIANO, "é o magistrado, em escala reduzida, um sociólogo em ação, um moralista em exercício; pois a ele incumbe vigiar pela observância das normas reguladoras da coexistência humana, prevenir e punir as transgressões das mesmas" [39].

Em razão disso, todo e qualquer magistrado deve manter-se em constante aperfeiçoamento técnico, não apenas em disciplinas jurídicas, mas também em outras matérias correlatas, tais como psicologia, sociologia, economia, política, dentre outras, a fim de que atinjam uma visão geral do cenário sócio-econômino-político-cultural em que operam.

É necessário que a Justiça mantenha-se rente à realidade da sociedade. Todavia, tal aderência ao fator social somente é atingido com o fomento da sensibilidade humanística dos magistrados, o que obviamente demanda grande preparação e perene atualização por parte destes. Para que se alcance a "cognição adequada" em cada caso concreto, requisito de uma decisão justa, a sensibilidade do juiz é elemento imprescindível.

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Sobre o autor
Vinícius José Corrêa Gonçalves

Advogado. Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro). Pós-graduando (lato sensu) em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul /IBDP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Vinícius José Corrêa. Apontamentos sobre a cognição judicial no processo civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1865, 9 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11580. Acesso em: 3 mai. 2024.

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