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O direito internacional ante as ameaças à paz mundial e o papel das forças armadas

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10/08/2008 às 00:00
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3. IMPACTO DO ATAQUE TERRORISTA DE 11 DE SETEMBRO SOBRE O DIREITO INTERNACIONAL E AS NOVAS AMEAÇAS À PAZ NO MUNDO

Talvez a data mais marcante das últimas décadas tenha sido 11 de setembro de 2001, quando ocorreram os ataques terroristas ao território dos EUA. Naquela data faleceram 3021 pessoas (FOLHA ON LINE, 2003), número similar ao total de soldados estadunidenses mortos na Guerra do Iraque. Este conflito é reputado como responsável pela produção de 2 milhões de refugiados e pelo maior gasto militar dos EUA em 60 anos [28].

A comoção internacional provocada pela inusitada ação terrorista e a alta quantidade de mortes ocorridas em um só dia foram temas habilmente explorados, interna e externamente, pela política estadunidense para impor sua Guerra ao Terror. A ligação dos ataques à rede Al-Qaeda e o levantamento de suspeitas sobre o apoio do regime Talibã àquela rede terrorista foram argumentos apresentados pelos EUA para implementar uma ação militar internacional no Afeganistão, que logrou remover o governo radical daquele país e instalar um regime mais consoante com a cultura ocidental.

Paradoxalmente, mesmo após a remoção do regime Talibã, a vida da população afegã permaneceu miserável. O povo daquele país vive intensamente da produção da papoula. A produção de papoula tem crescido desde a queda do regime Talibã, mesmo com a presença das tropas da ONU, lideradas pelos EUA [29].

Além disso, a quantidade de ataques terroristas no país cresceu entre 2003 e 2006, tendo sido registrados 2761 atentados suicidas com bombas (MATTOS, p. 13). A reação estadunidense no Afeganistão e no Iraque também não foi capaz de impedir outros ataques terroristas que deixaram marcas cruéis no resto do mundo: os realizados em 2004, no metrô de Madri (março) e em Beslan (na Rússia, em setembro [30]), e o conduzido no metrô e ônibus de Londres, em 05 de julho de 2005.

Após o ataque de setembro de 2001, os EUA buscaram uma resposta rápida, visando dar uma satisfação à sua sociedade e, ao mesmo tempo, afastar a sensação de vulnerabilidade de uma grande potência. Uma relevante força motriz da resposta estadunidense aos ataques terroristas estava nas ligações da cúpula decisória da Casa Branca com a indústria bélica nacional e com empresas de petróleo. Afonso Arinos de Mello Franco, ilustre político e diplomata brasileiro, afirmou que a mudança do comunismo para o terrorismo como "inimigo" escolhido pelo pensamento estadunidense, continua a representar a prioridade, embora velada, da política externa americana em buscar um "acesso desimpedido às reservas petrolíferas, especialmente às do Oriente Médio" (FRANCO, 2002, p. 2).

O publicista internacional Michael Byers também acredita que os ataques ao território estadunidense se tornaram oportunidades favoráveis à política externa norte-americana, sobretudo pela colaboração de Dick Cheney, Condoleeza Rice e Donald Rumsfeld (BYERS, 2007, p. 187). O atual vice-presidente Dick Cheney foi ministro de Defesa no governo de George H. W. Bush, ocasião em que os EUA se envolveram na invasão do Panamá e na primeira guerra contra o Iraque. Cheney é uma personalidade influente no setor petrolífero dos EUA, tendo sido presidente da empresa de serviços petrolíferos Halliburton Industries (MOORE, 2003, p. 45) [31]. O ex-ministro de Defesa do atual governo dos EUA, Donald Rumsfeld, já exercera o mesmo cargo no governo do presidente Ford (1974-1977) e já trabalhou com Dick Cheney no governo Nixon, sendo forte opositor dos tratados internacionais sobre controle de armas (MOORE, 2003, p.48). A ex-conselheira de segurança nacional a atual ministra de Relações Exteriores [32], Condoleeza Rice, pertenceu à direção da Chevron, tendo sido homenageada com um petroleiro da empresa que levou seu nome (MOORE, 2003, p. 53).

Outro "falcão" da Casa Branca também possuiu associações com importantes grandes corporações que se beneficiam das guerras. O general Colin Powell, antecessor de Condoeeza Rice na pasta das Relações Exteriores, participou dos conselhos da American On Line (AOL) e da Gulfstream Aerospace (fabricante de jatos). Seu filho, Michael Powell, foi posteriormente empossado por Bush para a presidência da Federal Communication Comission – FCC [33] (MOORE, 2003, p. 51).

A Estratégia de Segurança Nacional apresentada um ano após o ataque terrorista ao território estadunidense (setembro de 2002), conhecida como Doutrina Bush, nos remete a conceitos de ações preventivas e preemptivas, termos amplos e suficientemente indeterminados, talvez visando poder apoiar qualquer ação bélica futura por parte dos EUA. No contexto da Doutrina Bush as ações preemptivas buscariam reduzir a capacidade bélica inimiga, diante de um possível ataque iminente, enquanto que as ações preventivas visariam impedir que um adversário adquira, com o desenrolar do tempo, uma capacidade específica que venha a se tornar uma ameaça potencial (informação verbal) [34].

Destacamos os pontos principais da Doutrina Bush a respeito das ações preventivas e preemptivas:

The greater the threat, the greater is the risk of inaction – and the more compelling the case for taking anticipatory action to defend ourselves, even if uncertainty remains as to the time and place of the enemy’s attack (…) To forestall or prevent such hostile acts by our adversaries, the United States will, if necessary, act preemptively in exercising our inherent right of self-defense (…) If necessary, however, under long-standing principles of self defense, we do not rule out the use of force before attacks occur, even if uncertainty remains as to the time and place of the enemy’s attack. (…) The place of preemption in our national security strategy remains the same. We will always proceed deliberately, weighing the consequences of our actions (THE WHITE HOUSE, 2006, grifos nossos).

De fato, o limiar entre preempção e prevenção é meramente um jogo retórico. A visão particular norte-americana procura perigosamente ampliar o conceito de legítima defesa citado no art. 51 da Carta da ONU, posto que tal norma preconiza a necessidade da ocorrência de um ataque armado como pré-requisito. Mas o presidente Bush, em 2002 proclamava em discurso proferido em West Point [35], a extensão da preempção ao emprego das ações bélicas preventivas, alegando a necessidade de atacar o inimigo a fim de impedir as ameaças antes de sua materialização, mesmo que não iminentes (BYERS, 2007, p. 98).

Esta posição foi reiterada por Bush em 2004, quando entrevistado em um programa televisivo, declarando ser necessário enfrentar uma ameaça antes que se tornasse iminente. Felizmente, naquele mesmo ano o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, promoveu o Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança, envolvendo importantes países do Sistema Internacional, que considerou só ser aceitável a ação militar preventiva após aprovação do Conselho de Segurança, alertando para o risco à ordem global e ao princípio da não-intervenção (BYERS, 2007, p. 104-105).

O recurso de um ataque antecipado não é novidade, já tendo sido adotado na década de 1980 por Israel, realizando um bombardeio aéreo a um reator nuclear iraquiano em construção, nas proximidades de Bagdá. Israel alegou que tal instalação permitiria a seu quase vizinho dotar-se de armas nucelares, representando uma séria ameaça ao povo israelense, postura que foi condenada posteriormente pelo Conselho de Segurança, até mesmo com o voto estadunidense (BYERS, 2007, p. 95-96).

Devido aos interesses amplos e incertos que o conceito da legítima defesa preventiva pode atender, este recebeu apoio de importantes potências regionais, como a Índia, Israel, Rússia, Austrália e Japão, embora alguns países do sudeste asiático, França e Alemanha tenham marcado sua posição contrária (BYERS, 2007, p. 103).

A pressão estadunidense para ampliações do direito de legítima defesa tende a diminuir a autoridade das Nações Unidas, ao mesmo tempo em que aumenta sua própria liberdade de agir (BYERS, 2007, p. 79).

Tal ampliação ao conceito de legítima defesa, se viesse a ser conformado pelo Direito internacional, permitiria a cada Estado decidir quais fontes seriam consideradas ameaças agressivas potenciais a sua segurança, o que viria a respaldar ataques sem a intervenção do Conselho de Segurança, fazendo retornar a Sociedade Internacional a uma situação caótica, típica do "estado da natureza" hobbesiano.

Analisando os conceitos embutidos na Estratégia de Segurança Nacional dos EUA, verifica-se o descaso com o Direito Internacional, tendo havido um reforço continuado da postura unilateralista nos últimos anos. Os EUA não admitem o Protocolo de Kioto, o Tribunal Penal Internacional, o tratado que visa banir as minas terrestres anti-pessoais e vêm se contrapondo aos esforços internacionais para a limitação de guerras (FRANCO, 2002, p. 5). Além disso, descumpriram obrigações do histórico Tratado de Não-Proliferação Nuclear [36], incrementando a produção de armas de campo, visando à penetração de abrigos reforçados [37] e à destruição de produtos químicos ou biológicos perigosos (BYERS, 2007, p. 99).

A chamada Guerra contra o Terror, desencadeada pelos EUA, requer que busquemos conceituar o terrorismo. Uma de suas concepções diz respeito ao uso indiscriminado da violência contra civis, com o propósito de abalar o moral do inimigo. Nesse contexto, podemos ainda identificar o terrorismo de cunho racista (como o grupo Supremacia Branca, que atua nos EUA), de cunho nacionalista (como os movimentos de libertação nacional africanos, o ETA – Pátria Basca e Liberdade, os colombianos ELN – Exército de Libertação Nacional e FARC – Forças Armadas Revolucionárias, o IRA – Exército Republicano Irlandês), o de cunho fundamentalista (ideológico, como as ações dos movimentos guerrilheiros nas ditaduras da América Latina, religioso, como o dos grupos islâmicos armados – Al-Qaeda, Hamas, Hezbollah, Jihad, Fatah [38]). Podemos também identificar o terrorismo de Estado, conduzido por forças governamentais, militares ou não, como podemos enquadrar alguns dos ataques israelenses na Palestina e no Líbano e até mesmo aos ataques estadunidenses em Hiroshima e Nagasáki (SILVA, 2007, p. 37).

Uma característica peculiar do terrorismo internacional atual é seu modo de operação em rede [39], em que, na eliminação de um chefe ou mesmo de uma célula inteira, outros atores surgem em seu lugar. Mesmo após a queda do regime Talibã, não se conseguiu acabar com as ações das várias células vinculadas e financiadas pela Al-Qaeda.

O terrorismo internacional já vinha sendo uma importante preocupação no âmbito da ONU há mais 40 anos. Desde 1963, quando foi elaborada uma convenção contra atos nocivos cometidos a bordo de aeronaves, até a convenção para a supressão de financiamentos para o terrorismo (1999), já existem 12 tratados internacionais especificamente voltados à coibição do terrorismo (UNITED NATIONS, 2007b).

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Os doutrinadores de Relações Internacionais admitem que, no mundo atual, além dos Estados, há uma série de outros atores com peso relevante no Sistema Internacional, como as organizações intergovernamentais (ONU, OTAN, OEA, etc.), as diversas organizações não governamentais (ONG, como a Médicos sem Fronteiras, Greenpeace, etc.), os conglomerados econômicos transnacionais, dentre outros.

Com a queda do muro de Berlim e a inauguração de uma nova era na história da humanidade, certas ações milenares passaram a ser desempenhadas por grupos que alcançam a atuação dos atores internacionais, apresentando-se como as "novas" ameaças do nosso tempo, atuando sempre na ilegalidade. Combater a pirataria [40], o terrorismo internacional, o tráfego ilegal de armas, pessoas e drogas são os desafios dos tempos atuais (SILVA, 2006, p. 32).

As novas ameaças são ilícitos internacionais que passaram a utilizar os mesmos recursos disponíveis no mundo globalizado: paraísos fiscais, movimentação eletrônica de dinheiro, amplo emprego da internet, etc. Estas tecnologias modernas permitem que os agentes atuem de forma ágil e com abrangência global, sendo difícil às autoridades governamentais rastrear ou coibir suas atividades.

Após o ataque de 11 de setembro de 2001, com o planeta já fortemente globalizado, uma série de tratados e acordos foram estabelecidos, com reflexos também no comércio internacional. A Organização Marítima Internacional (IMO), agência reguladora vinculada à ONU (UNITED NATIONS, 2007a), implementou uma norma internacional para proteção de navios e instalações portuárias contra atos de terrorismo (International Ships and Port Security Code – ISPS Code), por pressão dos EUA. A IMO também implementou uma outra norma, possibilitando a interceptação de navios mercantes suspeitos de transportarem material explosivo ou radioativo que visem causar danos à população ou material a ser usado na produção de armas químicas, biológicas ou nucleares [41] (SILVA, 2006, p. 33).

Mesmo diante das novas ameaças, o Direito Internacional impõe que a estrutura de prevenção de conflitos armados ameaçadores da paz mundial passa necessariamente pelo Conselho de Segurança da ONU, embora este opere engessado pelo poder de veto possibilitado aos cinco membros permanentes, que o utilizam em prol dos seus interesses individuais (alguns até de cunho imperialista). Esta estrutura torna as ações da ONU quase ineficazes, ante a agilidade com que as "novas ameaças" conseguem atuar, mantendo aberto o caminho para a instabilidade. O retorno ao conceito westafaliano da soberania plena, adotado por algumas potências, o argumento da primazia de seus "interesses" nacionais e a introdução do princípio da legítima defesa preventiva ou preemptiva, acabam por ameaçar o que a humanidade vem logrando construir nos últimos séculos, pelo consenso e costume internacionais. Em 2002, as palavras de George W. Bush podem demonstrar a resolução do governo estadunidense em justificar suas ações ofensivas como atos preventivos:

"Não hesitaremos em agir sozinhos, se necessário, para exercer o nosso direito de autodefesa, agindo preventivamente (...) a nossa melhor defesa é um bom ataque (...) Devemos adaptar o conceito de ameaça iminente à capacidade e aos objetivos dos adversários de hoje. (...) Para impedir ou prevenir ações hostis dos nossos adversários, os EUA, se necessário, agirão preventivamente." (BUSH apud SILVA, Ângela, 2007, p. 35)

As alegações levantadas pelos EUA para a invasão do Iraque não foram sustentadas pela comunidade internacional. O fato do governo iraquiano desrespeitar resoluções da ONU, sobretudo nas questões de desarmamento não poderia jamais ser objeto de uma ação militar sem o respaldo explícito do Conselho de Segurança. De outra forma, a mesma postura não foi adotada pelos EUA em relação ao descumprimento insistente, por parte de Israel, às 15 resoluções aprovadas pela ONU entre 1967 e 2002, visando à restituição dos territórios palestinos ocupados; ao contrário, nesses 35 anos de desrespeito os israelenses contaram com apoio dos EUA, de forma explícita ou tácita (FRANCO, 2002, p. 2-5).

Os outros supostos motivos alegados para a invasão também não se confirmaram. Não foram encontradas as armas de destruição em massa que teriam motivado a ação bélica e tampouco foram encontradas provas de ligação do governo de Saddam Hussein com a rede Al-Qaeda.

Nosso planeta não parece ter se tornado mais seguro nem com esta invasão, nem com as diversas medidas para conter o terrorismo adotadas e até impostas pelos EUA. O jornalista William Waak nos traz a seguinte reflexão: "...a desmoralização pública de quem entra num país para trazer (...) liberdade e democracia e acaba sendo acusado (...) de promover o ódio e desrespeitar exatamente os princípios de humanidade e direito que dizia defender" (WAAK, p. 476-477). De fato, preocupações com liberdade e democracia aparentam ser apenas uma argumentação meramente retórica por trás de interesses geoestratégicos (e econômicos).

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Sobre o autor
Carlos Eduardo Horta Arentz

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Ciências Navais. Especialização em Master in Business Administration (MBA) em Gestão Empresarial, do Instituto COPPEAD de Administração (UFRJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARENTZ, Carlos Eduardo Horta. O direito internacional ante as ameaças à paz mundial e o papel das forças armadas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1866, 10 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11586. Acesso em: 24 abr. 2024.

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