O Brasil vem sendo assolado pela pirataria, boa parte dela recaindo sobre CD’s e DVD’s, com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma.
A conduta vem prevista como crime no art. 184 e parágrafos do Código Penal (violação de direito autoral), protegendo-se a propriedade intelectual.
Não obstante, os CD’s e DVD’s piratas, especialmente por seus módicos preços, caíram no gosto dos consumidores brasileiros, que não hesitam em adquiri-los em qualquer banca ou mesmo em estabelecimentos comerciais bem estruturados e estabelecidos.
É certo que os produtores têm alguma parcela de contribuição nessa instituída aceitação da contrafação, haja vista que a distorção de preços faz crer que é possível baratear o produto original.
Contudo, independentemente disso, a conduta que infringe a norma do art. 184, CP, não pode, sob esse argumento, ser tida por lícita.
Por vezes a autor do fato se defende com o argumento de que a falsificação de CD’s e DVD’s encontra o respaldo da sociedade, que a tolera e aceita como uma prática normal, não criminosa; outras vezes é o próprio Ministério Público que, entendendo aplicável a teoria da adequação social, promove o arquivamento do inquérito policial, sequer deflagrando a ação penal ou, quando do final desta, pleiteia a absolvição.
Pensamos, porém, que este não é o melhor caminho. Acreditamos que a falsificação de CD’s e DVD’s não pode ser tida como socialmente adequada, pois viola bem jurídico protegido constitucionalmente.
Com efeito, Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli destacam que:
A partir da premissa de que o direito penal somente tipifica condutas que têm certa "relevância social", posto que do contrário não poderiam ser delitos, deduz-se, como conseqüência, que há condutas que, por sua "adequação social", não podem ser consideradas como tal (Welzel). Esta é a essência da chamada teoria da "adequação social da conduta": as condutas que se consideram "socialmente adequadas" não podem ser delitos, e, portanto, devem ser excluídas do âmbito da tipicidade.
A teoria da adequação social da conduta encerra alguns pontos certos, como aquele em que, inquestionavelmente, existem remissões da ordem jurídica à ética social, freqüentes nos tipos penais. Assim, vimos que, nos tipos culposos, para precisar o dever de cuidado, seguidamente necessita-se recorrer às normas sociais de conduta, ou que a determinação da posição de garante, em razão da conduta precedente do sujeito, também tem que apelar às mesmas fontes, ou que também nos tipos dolosos há elementos normativos que remetem a valorações ético-sociais (conceito de honestidade – art. 216, caput, do CP –, conceito de obscenidade – arts. 233 e 234 do CP etc.) Não obstante, não cremos que essas comprovações autorizem uma ampliação tão generalizada das pontes estendidas da tipicidade à ética social, nem uma teoria geral tão ampla, cuja abertura, frequentemente, a associa ao velho conceito de antijuridicidade material.
De outra parte, os casos que se pretenderam resolver com recurso a essa teoria são tantos, e tão diversos, que praticamente demonstram que se trata de um conceito pouco claro, que se pretendeu usar para resolver quase todas as questões que com certeza não se sabia como solucionar. [01]
Da doutrina de Julio Fabbrini Mirabete pode ser extraído que, de acordo com a teoria da adequação social:
a ação é a conduta socialmente relevante, dominada ou dominável pela vontade humana. A relevância social da ação é o critério conceitual comum a todas as formas de comportamento e, portanto, também ao crime. Entende-se que o "comportamento" é a resposta do homem a uma exigência posta em determinada situação conhecida, ou pelo menos passível de ser conhecida, constituindo-se na realização de uma possibilidade de reação, de que ele dispõe em razão de sua liberdade. Como o Direito Penal só comina pena as condutas socialmente danosas e como socialmente relevante é toda conduta que afeta a relação do indivíduo para com o seu meio, sem relevância social não há relevância jurídico-penal. Só haverá fato típico, portanto, segundo a relevância social da ação. [02]
Deve-se ter em mente, então, a seguinte pergunta: a falsificação de CD’s e DVD’s tem alguma relevância social, justificando-se a resposta jurídico-penal?
A resposta é inegavelmente positiva.
Com efeito, a Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD) informa, em números que são bastante críveis, que a pirataria no setor fonográfico, no período de 1997 a 2005 representou no Brasil, entre outras coisas, a queda de 50% dos postos de trabalho diretos, menos 50% de artistas contratados, 3.500 pontos de vendas fechados, queda de 44% de lançamento de produtos, perda de arrecadação em impostos da ordem de R$ 500.000.000,00 (quinhentos milhões de reais) anuais (somente em ICMS, PIS e Confins), 80.000 (oitenta mil) empregos perdidos no setor. [03]
Por sua vez, a CPI da Pirataria apurou, dentre outras coisas, o seguinte:
9. Os efeitos da pirataria na indústria da música brasileira
O mercado brasileiro vive uma grave crise em função do crescimento da pirataria de música e do descontrole do comércio ambulante de CDs musicais em todas as regiões do país. Milhares de pontos de venda de produtos falsificados são encontrados diariamente, em plena luz do dia, abastecidos por uma enorme rede de crime organizado. O resultado é a redução de mais de 50% no mercado legítimo de música nos últimos cinco anos e, por via de conseqüência, a perda de milhares de empregos e a retração dos investimentos do setor fonográfico. Como ocorre em toda a cadeia produtiva da música, o mercado varejista também sente fortemente os efeitos da crise. Só no comércio especializado foram fechados mais de dois mil pontos de venda em todo o país em conseqüência direta da concorrência desleal dos ambulantes.
A prática da pirataria surgiu na última década e teve uma evolução em grande escala nos últimos cinco anos, passando de 3% do mercado, em 1997, para 54%, em 2002. O Brasil, que foi o 6º colocado neste mercado legal do mundo em 1998, caiu para 13º, em 2003.
Pesquisa realizada pelo Instituto Franceschini aponta que o mercado ilegal movimenta aproximadamente 110 milhões de CDs piratas, o que significa um movimento acima de R$ 780 milhões por ano e mais de R$ 500 milhões de impostos não arrecadados pela União, Estados e Municípios. Esses números colocam o Brasil no 3º lugar do ranking mundial de pirataria de música. Estima-se que mais de 56 mil postos de trabalho diretos e indiretos foram fechados em decorrência desta situação, incluindo-se aqueles perdidos no mercado varejista de CDs. De acordo com a pesquisa, o maior prejudicado pela venda de produtos-piratas são os artistas brasileiros, uma vez que 85% dos produtos-piratas vendidos são nacionais.
O efeito desta queda no setor, de 1997 a 2003, foi a redução de 50% no número de postos de trabalho diretos somente nas gravadoras, sem contar o comércio varejista (acima mencionado), e uma diminuição de 50% no elenco de artistas contratados pelo setor fonográfico.
Se compararmos as vendas de 1997 às de 2003, é possível medir os efeitos da retração. Em termos nominais, a queda na venda do formato CD foi de 53%; porém, se considerarmos apenas os CDs de lançamento, a queda foi de 67%. Considerando-se a inflação oficial do período, os números saltam para 68% e 78%, respectivamente. [04]
Assim, esses dados deixam entrever que a venda de produtos piratas, mesmo em pequenas vendas, não é algo irrelevante socialmente, representando nada menos do que o fechamento de mais de dois mil pontos de vendas e milhares de empregos perdidos.
É claro que o combate deve ser voltado ao grande produtor ou vendedor dos produtos contrafeitos. Entretanto, a distribuição realizada em pequenos pontos de venda representa uma parcela da enorme máquina da pirataria que, por isso, também merece a repressão do Estado, sob pena de se permitir a ocultação e o funcionamento de verdadeiras organizações criminosas.
Há que se ressaltar que a Constituição Federal tutelou o direito de propriedade (art. 5º, XXII), inclusive deixando expresso o resguardo à propriedade intelectual, cujo aproveitamento econômico é assegurado ao criador e ao intérprete (art. 5º, XXVII e XXVIII).
Abordando o tema, Alexandre de Moraes sustenta que "A proteção constitucional abrange o plágio e a contrafação. Enquanto o primeiro caracteriza-se pela difusão de obra criada ou produzida por terceiros, como se fosse própria, a segundo configura a reprodução de obra alheia sem a necessária permissão do autor." [05]
Portanto, se a pirataria de CD’s e DVD’s representa números significativos na economia nacional, não é menos verdade que a proteção dos direitos autorais encontra expresso amparo na Carta da República, sendo inadmissível, pois, a aplicação da teoria da adequação social, já que o delito em foco tem nítida relevância jurídico-penal.
O Superior Tribunal de Justiça, conquanto tratando de outros delitos, rechaça a aplicação da teoria da adequação social:
DIREITO PENAL. HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. (1). LEI 10.522/02. TRIBUTO DEVIDO INFERIOR AO MÍNIMO LEGAL PARA A COBRANÇA FISCAL. REITERAÇÃO DELITIVA. INSIGNIFICÂNCIA. AUSÊNCIA. (2) ADEQUAÇÃO SOCIAL. ATIVIDADE DE CAMELÔ. REGULAMENTAÇÃO LEGAL. ACEITAÇÃO SOCIAL DO DESCAMINHO. INOCORRÊNCIA.
1. A despeito de o crédito devido no descaminho ser inferior ao mínimo legal para a cobrança fiscal, a teor do art. 20 da Lei n. 10.522/02, não se reconhece a insignificância penal, ante a existência de outros processos penais a indicarem, globalmente, expressiva violação ao bem jurídico.
2. A existência de lei regulamentando a atividade dos camelôs não conduz ao reconhecimento de que o descaminho é socialmente aceitável.
3. Ordem denegada.
HC nº 45.153 - SC (2005/0103091-8) – Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura
PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 234, § ÚNICO, I, DO CP. TIPICIDADE. PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL. INAPLICABILIDADE AO CASO CONCRETO.
I - O princípio da adequação social não pode ser usado como neutralizador, in genere, da norma inserta no art. 234 do Código Penal.
II - Verificado, in casu, que a recorrente vendeu a duas crianças, revista com conteúdo pornográfico, não há se falar em atipicidade da conduta afastando-se, por conseguinte, o pretendido trancamento da ação penal.
Recurso desprovido.
RHC nº 15.093 - SP (2003/0177467-5) – Rel. Min. Laurita Vaz – Rel./para acórdão Min. Félix Fischer.
Em matéria de contrafação de CD’s e DVD’s, mesmo o princípio da insignificância tem enfrentado a resistência da jurisprudência, valendo colacionar as seguintes decisões:
Violação de direito autoral. Artigo 184, § 2º, do Código Penal. Condenação. Pena: 2 anos de reclusão e 24 dias-multa, na razão unitária de R$ 30,00. Regime aberto. Substituição na forma do artigo 44 do Código Penal. Apelo do réu: a) absolvição, fundamentada no princípio da bagatela, tendo em vista a pequena quantidade de Cds apreendida na posse do réu, que ficou preso alguns dias, e, socorrendo-se daquele mesmo princípio, deve ser considerada cumprida a pena, pois nova condenação configuraria bis in idem; b) absolvição por ter agido em erro de tipo inevitável, e, também, sem consciência da ilicitude de seu comportamento; c) não cumprimento da pena restritiva de direitos, pois dificultará sua reinserção no mercado de trabalho formal. Materialidade e autoria comprovadas, tendo o réu confessadamente plena ciência de que vendia CDs contrafeitos. O princípio da bagatela ou da insignificância somente em casos excepcionalíssimos pode ser aplicado, o que não ocorre na hipótese. O pedido de não cumprimento da pena restritiva de direitos não encontra amparo legal, pois importaria em hipótese de perdão judicial não prevista para o crime de violação de direito autoral. Apelo improvido.
TJRJ – Des. Marcus Quaresma Ferraz – j. 12/06/2008 – 8ª Câmara Criminal – Apelação Criminal n. 2008.050.01974.
EMENTA: PENAL. VIOLAÇÃO DE DIREITOS DO AUTOR. DOLO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA.
Conjunto probatório que evidencia o dolo da acusada. Negativa que não convence.
Inaplicável o princípio da insignificância ao delito de violação de direito do autor, abrangendo a tutela penal a proteção do patrimônio público e do patrimônio dos autores, dos produtores e das gravadoras, perfazendo-se relevante o valor do bem subtraído.
O art. 44, § 2º, do CP estabelece que, para penas superiores a 01 (um) ano, o Juiz pode apenas substituir a pena privativa de liberdade por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos.
Apelo desprovido.
TJDFT – 1ª Turma Criminal – Apelação Criminal n. 2005091005126-0 – Rel. Des. Mário Machado – j. 16/11/2006.
Do corpo deste último julgado se lê o seguinte:
Infundada, também, a argüição do princípio da insignificância, que os tribunais têm aplicado a fatos sem qualquer força lesiva e não apenas em razão do irrisório prejuízo causado. Com efeito, o conteúdo do injusto, apresentado nos autos, não é irrisório, a ponto de incidir o referido princípio, pois violar direitos do autor (crime que sustenta as organizações criminosas responsáveis pela pirataria, além de gerar prejuízos ao fisco, aos autores, aos produtores e às gravadoras), não é figura penal irrelevante. (os grifos constam no acórdão).
Não obstante, parece-nos que o legislador teve a intenção de adotar, de forma bastante restrita, o princípio da insignificância, com exclusão da tipicidade, ao dispor na segunda parte do § 4º do art. 184, CP, que o constante nos §§ 1º, 2º e 3º não se aplica quando a cópia de obra intelectual ou fonograma for feita em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto.
Guilherme de Souza Nucci leciona que "pode-se levantar a tese do crime de bagatela, quando alguém copia um CD musical de um amigo para uso doméstico e exclusivo seu, sem qualquer ânimo de lucro" [06].
Assim, pensamos que o princípio da insignificância pode ter acolhida na hipótese de falsificação de CD’s e DVD’s, mas com aplicação bastante restrita.
Por todo o exposto, temos como certo que a teoria da adequação social não pode ser aplicada em casos de falsificação de CD’s e DVD’s, mesmo quando se trate do pequeno vendedor, pois em verdade o que se tem é uma grande indústria (e esses pequenos vendedores fazem parte de uma engrenagem que move essa indústria, indispensável ao seu bom funcionamento) que movimenta fortunas, gera desemprego, fechamento de empresas, diminuição da arrecadação e, mesmo aqueles que trabalham com a pirataria e pensam que dali tiram o seu sustento, estão no subemprego, sem direitos trabalhistas ou previdenciários, subjugados pelos grandes falsificadores.
Não há falar, pois, em adequação social, devendo existir a repressão do Estado através do Direito Penal em razão da evidente violação de bem constitucionalmente tutelado.
Bibliografia
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 13. ed. São Paulo: Atlas, 1998, v. 1.
MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 6. ed. São Paulo: RT, 2006.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004.
Notas
- ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 535.
- MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 13. ed. São Paulo: Atlas, 1998, v. 1, p. 99-100.
- Extraído de http://www.abpd.org.br/pirataria_dados.asp, acessado em 30/07/2008.
- Na página http://www2.camara.gov.br/comissoes/temporarias/cpi/encerradas.html/cpipirat/relatoriofinal.pdf Acesso em 02/08/2008.
- MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 172.
- NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 6. ed. São Paulo: RT, 2006, p. 775.