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Crime de perigo para a vida ou saúde de outrem.

Estrutura jurídica e divergências interpretativas

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14/08/2008 às 00:00
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4. Visão crítico-metodológica

Em linhas gerais, com relação à exegese de qualquer delito, é natural que haja desencontros, muitos desencontros. O art. 132, que acabamos de analisar, também não escapa dessas características.

Esse tipo de constatação nos remete à consciência crítica de uma realidade normativa a ser construída e completada pelo intérprete com poder decisório. No correto ensinamento de J.J. Calmon de Passos não há um direito "dissociado do ato de sua criação, dissociado do processo que o materializa como um prescrever dotado de coercitividade inelutável" ("Reforma do Poder Judiciário", Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 71, 2008, p. 361).

De modo semelhante, Paulo de Souza Queiroz: o direito não está previamente dado, pois "é parte da construção social da realidade" e, portanto, não é desvelado pela interpretação. A interpretação, esta sim, é que produz o próprio direito ("O que é o direito penal?", Boletim IBCCrim nº 178, set. 2007, p. 4).

Conforme registrado em Curso crítico de direito penal, 2ª edição, Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, as leis jurídicas retratam as virtudes e vícios da linguagem natural, linguagem essa que reveste, com os mesmos vícios e virtudes, as inúmeras e inconciliáveis tentativas de harmonização hermenêutico-dogmática.

Nem sempre a clareza de uma norma acalma e satisfaz o jurista igualmente comprometido com outros valores. De seu cardápio de argumentações constam alguns tópicos de natureza multifacetada: analogia, bom senso, eqüidade, razão, preconceito, cultura, bem comum, política social, tradição, progresso, espírito da lei, interesse comunitário, segurança jurídica. Além disso, como lembra Gladston Mamede, o tema também envolve a questão da luta por poder, legítimo ou ilegítimo: "Não se pode sequer afastar as hipóteses em que se utiliza da exegese para forjar sentidos inexistentes para a norma" (Semiologia do direito: tópicos para um debate referenciado pela animalidade e pela cultura, 2000, p. 131).

Os intérpretes acabam projetando e refletindo as limitações e contradições inerentes a todo e qualquer ser humano, limitações e contradições divididas, portanto, com alguma parcela do grupo social. O direito, por isso, não se resolve através da lei ou dos argumentos expendidos, mas do grau de vontade e liberdade de quem dispõe concretamente, no contexto das circunstâncias históricas, do poder de mando e decisão.

Na vida real, e sobretudo na vida forense, o jurista é convocado a manifestar-se concretamente através e a partir de si mesmo, de sua maneira pessoal e intransferível de ver e raciocinar. A subjetividade do intérprete completa e corporifica um direito ainda em formação, sem embargo de eventual clareza do texto normativo preexistente.

Mal posicionado em campo, um árbitro de futebol pode inverter o significado dos fatos. Mal informado, o juiz de direito pode, também, modificar normativamente a realidade. Pouco importa. Ambos se encontram no exercício do poder, e sua decisão, à semelhança de Midas, a tudo transforma em fato jurídico.

De seu turno, os doutrinadores e jurisconsultos, com o prestígio e magia de seus discursos, servem de consolo e apoio retórico – argumento de autoridade – para o desempenho desse poder normativo.

A verdade é que esses discursos e teorizações dogmáticas já não mais escondem sua função decorativa no contexto de um direito intrinsecamente confuso e contraditório, porque atrelado ao efetivo desabrochar de forças igualmente confusas e contraditórias, em busca, se possível, de legitimação e sedimentação históricas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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BASTOS, João José Caldeira. Curso crítico de direito penal, 2ª ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.

BASTOS JÚNIOR, Edmundo José de. Código penal em exemplos práticos, 5ª ed. Florianópolis: OAB/SC, 2006.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte especial, v. 2. São Paulo: Saraiva, 2001.

BRUNO, Aníbal. Direito penal, v. 4. Rio de Janeiro: Forense, 1966.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, v. 2. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao código penal, v. 2. São Paulo: Saraiva, 1988.

DELMANTO, Celso. Código penal comentado, 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1988.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial, 7ª ed., v. 1, Rio de Janeiro: Forense, 1983.

GRECO, Rogério. Código penal comentado. Niterói, RJ: Impetus, 2008.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal, 13ª ed., v. 2. São Paulo: Saraiva, 1991.

Código penal anotado, 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

MAMEDE, Gladston. Semiologia do direito: tópicos para um debate referenciado pela animalidade e pela cultura, 2ª ed. Porto Alegre: Síntese, 2000.

MAÑAS, Carlos Vico. O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994.

MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. 4. São Paulo: Saraiva, 1961.

NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Questões penais controvertidas, 6ª ed. São Paulo: Leud, 1994.

PASSOS, J.J. Calmon de. "Reforma do poder judiciário", Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 71, ano 16. São Paulo: RT, mar./abr. 2008.

QUEIROZ, Paulo de Souza. "O que é o direito penal?", Boletim IBCCrim nº 178, ano 15. São Paulo, setembro/2007.

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SILVEIRA, Euclides Custódio da. Direito penal: crimes contra a pessoa, 2ª ed. São Paulo: RT, 1973.

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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Crime de perigo para a vida ou saúde de outrem.: Estrutura jurídica e divergências interpretativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1870, 14 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11597. Acesso em: 28 mar. 2024.

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