Resumo: O presente artigo analisa o Programa Sintonia, instituído pela Receita Federal do Brasil como instrumento de estímulo à conformidade tributária e aduaneira. Examina-se sua fundamentação jurídica, econômica e institucional à luz das diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), bem como sua inserção no paradigma da responsive regulation e da filosofia do carrot and stick. Demonstra-se que o modelo brasileiro de governança fiscal evolui no sentido de substituir a lógica punitiva pela preventiva, priorizando a transparência, a boa-fé e a confiança recíproca entre Estado e contribuinte. Conclui-se que o Programa Sintonia constitui mecanismo de modernização administrativa compatível com os princípios constitucionais da eficiência e da razoabilidade, capaz de fortalecer a segurança jurídica e promover a cidadania fiscal sem incremento da carga tributária.
Palavras-chave: Conformidade tributária; governança fiscal; Receita Federal; OCDE; compliance; carrot and stick; segurança jurídica.
Sumário: 1. Introdução. 2. O contexto jurídico-econômico do Programa Sintonia e a consolidação do compliance tributário. 3. A estrutura e os mecanismos de conformidade: incentivos, classificação e autorregularização. 4. Pilares jurídicos e econômicos do compliance tributário no contexto do Programa Sintonia. 5. A governança fiscal e a filosofia carrot and stick nas diretrizes da OCDE. 6. Conclusão.
1. O contexto jurídico-econômico do Programa Sintonia e a consolidação do compliance tributário
O Programa Sintonia emerge como resposta institucional à necessidade de transformar o paradigma do relacionamento entre o Fisco e os contribuintes.
Segundo a Receita Federal, ele constitui um instrumento de estímulo à conformidade tributária e aduaneira, estruturado para “incentivar os contribuintes a adotarem boas práticas e regularidade no cumprimento das obrigações tributárias”.
No plano jurídico, essa diretriz conecta-se ao princípio da boa-fé objetiva e à função administrativa preventiva — valores que reposicionam o Estado de mero sancionador a agente de indução comportamental.
Em termos de compliance tributário, o programa representa a materialização de uma governança fiscal cooperativa, na qual a conformidade deixa de ser produto de coerção para se tornar ativo reputacional das empresas.
Ao alinhar-se ao modelo de conformidade proposto pela OCDE, o Sintonia reforça a ideia de que a confiança é o novo instrumento de fiscalização eficiente.
Países como Reino Unido, Austrália e Holanda já operam sistemas semelhantes, baseados em ratings de comportamento fiscal, que ajustam incentivos e controles segundo o risco do contribuinte.
O Brasil, ao adotar esse formato, passa a integrar uma tendência global de transparência e cooperação, aproximando o direito tributário nacional das práticas contemporâneas de tax compliance e good governance.
2. A estrutura e os mecanismos de conformidade: incentivos, classificação e autorregularização
O programa opera mediante classificação objetiva e transparente dos contribuintes, variando de A+ a C, conforme critérios de comportamento fiscal e grau de risco.
Essa metodologia é mais que uma inovação administrativa: é um sistema de mensuração da conformidade tributária, que traduz juridicamente a ideia de compliance em um índice de reputação fiscal.
A Receita Federal informa que as empresas com alta conformidade (A+ e A) passam a gozar de benefícios específicos, como ingresso no Procedimento de Consensualidade Fiscal (Receita de Consenso), prioridade na análise de restituições e ressarcimentos, e atendimento preferencial nos canais administrativos.
Trata-se, portanto, de um sistema de incentivos positivos, que substitui a sanção pelo estímulo, orientando-se pela lógica da autorregularização.
A recente ampliação do Sintonia — que passou a incluir 666 mil empresas classificadas com grau “C” — reforça o caráter inclusivo e pedagógico da política pública.
Ela reconhece que a conformidade é um processo evolutivo e que o papel do Estado deve ser educador e colaborativo, e não meramente repressivo.
Assim, o programa se aproxima da concepção de compliance responsivo, defendida pela doutrina internacional, na qual a adesão às normas é produto de confiança, previsibilidade e transparência regulatória.
3. Pilares jurídicos e econômicos do compliance tributário no contexto do Programa Sintonia
O Programa Sintonia estrutura-se sobre uma base jurídica que reflete a evolução das funções estatais contemporâneas: a substituição da lógica punitiva pela função indutora e consensual da Administração Pública.
Nesse sentido, o programa opera como concretização dos princípios constitucionais da eficiência administrativa (art. 37, caput, CF), da boa-fé objetiva e da razoabilidade — pilares que, juntos, redefinem o papel do Fisco na promoção de uma cultura de conformidade e responsabilidade fiscal.
Sob a ótica do Direito Administrativo Tributário, o Sintonia inaugura uma dimensão de compliance público, em que a Administração atua não apenas como fiscalizadora, mas também como agente de governança e integridade fiscal.
Essa reconfiguração atende à tendência inaugurada pelo Decreto nº 11.129/2022, que regulamenta a Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), e que consagra o dever estatal de estimular práticas de integridade nas relações entre Estado e setor privado.
Assim, o compliance tributário — tradicionalmente visto como prática empresarial autônoma — passa a integrar o ecossistema da governança pública.
O contribuinte deixa de ser mero sujeito passivo e torna-se parceiro do Estado na realização da função arrecadatória, cuja finalidade última é o financiamento legítimo das políticas públicas.
Economicamente, o programa atende aos postulados de análise econômica do Direito Tributário, pois reduz custos de transação e incentiva o comportamento cooperativo.
Ao premiar o adimplemento espontâneo e desonerar a fiscalização, o Estado racionaliza recursos, mitiga litígios e aumenta a previsibilidade arrecadatória — tudo em harmonia com a doutrina da tax compliance da OCDE, que recomenda a criação de mecanismos de confiança e diferenciação proporcional entre contribuintes conforme seu risco.
A dimensão ética e econômica do programa traduz a noção de fidelidade fiscal, pela qual o cumprimento voluntário das obrigações não é mera imposição normativa, mas expressão de maturidade institucional e cidadania fiscal. Trata-se, portanto, de um modelo de governança cooperativa, que conjuga transparência, accountability e incentivos reputacionais.
4. A governança fiscal e a filosofia “carrot and stick” nas diretrizes da OCDE
A incorporação das diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ao desenho institucional do Programa Sintonia marca o amadurecimento do sistema fiscal brasileiro.
A OCDE, em suas publicações Tax Administration 3.0 e Co-operative Compliance Framework, propõe que a administração tributária moderna deve deslocar seu foco da coerção para a cooperação regulada, substituindo o modelo fiscalista e reativo por um sistema de compliance responsivo e colaborativo.
Nesse paradigma, o cumprimento voluntário das obrigações tributárias é resultado de confiança, previsibilidade e proporcionalidade, não de intimidação.
O Programa Sintonia adere a esse espírito ao promover uma transformação cultural na relação entre Fisco e contribuinte.
A Receita Federal, ao adotar critérios objetivos de classificação e mecanismos de incentivo, estabelece um ambiente de governança fiscal participativa, em que a transparência e a previsibilidade normativa substituem a incerteza e o contencioso.
O contribuinte, antes visto como sujeito passivo de suspeição, é agora reconhecido como parceiro do Estado na realização da função arrecadatória, o que confere à tributação um caráter de corresponsabilidade institucional.
Trata-se, em verdade, da aplicação prática da doutrina da responsive regulation, desenvolvida por Ian Ayres e John Braithwaite, segundo a qual a atuação estatal deve variar de acordo com a conduta do regulado, alternando persuasão e sanção conforme o grau de conformidade demonstrado.
Essa filosofia, conhecida como o modelo do “carrot and stick” — isto é, “cenoura e bastão” — traduz-se em termos fiscais na concessão de benefícios e vantagens administrativas aos contribuintes de alta conformidade (o carrot) e na manutenção de mecanismos corretivos ou sancionatórios aplicáveis aos que permanecem em níveis inferiores de cumprimento (o stick).
No contexto do Programa Sintonia, os incentivos positivos manifestam-se por meio do Selo Sintonia, que identifica empresas com comportamento fiscal exemplar, conferindo-lhes prioridade em análises de restituição, ressarcimento e reembolso de tributos, bem como no acesso a serviços da Receita Federal.
Os contribuintes classificados em patamares inferiores são, por sua vez, estimulados à autorregularização progressiva, mediante acompanhamento orientativo e ações pedagógicas voltadas à melhoria de seu desempenho fiscal.
Com esse arranjo, o Estado abandona a postura puramente repressiva e assume uma posição estratégica e inteligente de gestão de riscos, alocando seus recursos de fiscalização conforme o grau de vulnerabilidade e propensão à inadimplência.
Essa racionalização dos meios de controle é a essência da governança fiscal contemporânea, na qual a confiança mútua se torna ativo institucional.
A política de incentivos proporcionais também materializa o princípio constitucional da razoabilidade e reforça o da eficiência administrativa, ambos insculpidos no artigo 37 da Constituição Federal, ao assegurar que a coerção seja utilizada apenas como último recurso, reservada às hipóteses de resistência deliberada à conformidade.
Do ponto de vista econômico, o modelo é igualmente virtuoso. Ao reduzir o custo da litigiosidade e estimular o adimplemento espontâneo, o Estado aumenta a previsibilidade de arrecadação e fomenta a estabilidade fiscal sem ampliar a carga tributária.
A conformidade tributária converte-se, assim, em ativo reputacional e indicador de governança corporativa, projetando reflexos positivos na credibilidade empresarial e no ambiente de negócios.
Essa perspectiva aproxima o Programa Sintonia das práticas de co-operative compliance implementadas por administrações tributárias de países como Reino Unido, Holanda, Austrália e Chile, que alcançaram substancial redução de litígios e elevação dos índices de cumprimento voluntário.
No plano institucional, o Sintonia não se limita a ser um programa administrativo, mas um instrumento de legitimação democrática do poder de tributar.
A transparência dos critérios de classificação, a previsibilidade dos benefícios e o diálogo contínuo entre Administração e contribuinte concretizam o ideal de justiça fiscal enquanto confiança recíproca.
Essa concepção traduz o amadurecimento da Administração Pública brasileira, que, ao invés de punir a inobservância de forma indiferenciada, passa a premiar a conformidade e a estimular o comportamento ético, promovendo uma cultura de integridade e cidadania fiscal.
Em síntese, o Programa Sintonia é a expressão prática daquilo que a OCDE define como “governança fiscal baseada em confiança”. Seu êxito dependerá da capacidade de manter o equilíbrio entre o “carrot” e o “stick”, evitando tanto o moralismo fiscal quanto o laxismo regulatório.
O desafio do Estado brasileiro, nesse cenário, é sustentar a responsividade da política fiscal — firme na repressão da fraude, mas generosa na valorização da integridade. Nessa equação, a conformidade tributária deixa de ser mera obrigação legal para se tornar virtude institucional, elemento fundante da ética pública e do desenvolvimento econômico sustentável.
5. Conclusão
O Programa Sintonia representa um marco na evolução do sistema tributário brasileiro, não por inovar em matéria de arrecadação, mas por redefinir o modo de interação entre o Estado e o contribuinte.
A proposta de uma administração tributária orientada por cooperação, transparência e confiança reflete um amadurecimento institucional, em que a eficiência deixa de ser medida pela severidade das sanções e passa a ser avaliada pela capacidade de induzir comportamentos conformes sem ampliar a litigiosidade.
Sob o ponto de vista jurídico, o programa concretiza princípios estruturantes da Constituição Federal, como a legalidade, a moralidade, a eficiência e a razoabilidade, ao vincular a atuação fiscal a critérios objetivos de proporcionalidade e responsividade.
Ao classificar os contribuintes por grau de conformidade, a Receita Federal introduz uma dimensão racional ao exercício do poder de tributar, tornando-o mais previsível e compatível com a segurança jurídica e a boa-fé objetiva que regem as relações entre a Administração Pública e o administrado.
Do ponto de vista econômico e gerencial, a política de conformidade tributária adota metodologia compatível com as recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que privilegia modelos baseados em análise de risco, diferenciação proporcional e incentivo à autorregularização.
Tal alinhamento não implica submissão a paradigmas externos, mas demonstra convergência técnica com boas práticas internacionais, orientadas pela busca de equilíbrio entre eficiência arrecadatória e respeito às garantias individuais.
A filosofia que sustenta o programa — frequentemente associada ao modelo do carrot and stick — traduz, em linguagem contemporânea, a tentativa de equilibrar estímulo e controle.
O Estado preserva o poder de fiscalizar e sancionar, mas reconhece que a confiança é instrumento tão relevante quanto a coerção. A experiência comparada demonstra que a administração tributária que investe em previsibilidade e reputação tende a obter maior adesão voluntária e menor custo de conformidade, resultados que se traduzem em ganhos de governança pública e estabilidade fiscal.
Em síntese, o Programa Sintonia não é um fim em si mesmo, mas um instrumento de governança fiscal orientado à racionalidade e à cooperação. Sua consolidação dependerá da continuidade técnica das políticas públicas, da qualidade dos critérios de classificação e da transparência na gestão das informações.
Se implementado com rigor e imparcialidade, poderá consolidar um novo patamar de confiança institucional, no qual a conformidade tributária é compreendida não como imposição coercitiva, mas como expressão legítima de cidadania e de corresponsabilidade na manutenção do Estado Democrático de Direito.
Referências
AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. New York: Oxford University Press, 1992.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 2023.
BRASIL. Decreto nº 11.129, de 11 de julho de 2022. Regulamenta a Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção Empresarial) e dispõe sobre programas de integridade no âmbito da Administração Pública. Diário Oficial da União, Brasília, 12 jul. 2022.
BRASIL. Receita Federal do Brasil. Um novo modelo de relacionamento com contribuintes — Programa Sintonia. Brasília: RFB, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal. Acesso em: 9 out. 2025.
BRASIL. Receita Federal do Brasil. Portaria RFB nº 467, de 30 de setembro de 2024. Institui o Procedimento de Consensualidade Fiscal (Receita de Consenso). Diário Oficial da União, Brasília, 1º out. 2024.
CONTÁBEIS. RFB libera Programa Sintonia para empresas com menor grau de conformidade. São Paulo: Portal Contábeis, 8 out. 2025. Disponível em: https://www.contabeis.com.br/noticias/73273. Acesso em: 9 out. 2025.
OCDE. Co-operative Compliance: A Framework — From Enhanced Relationship to Co-operative Compliance. Paris: OECD Publishing, 2013.
OCDE. Tax Administration 3.0: The Digital Transformation of Tax Administration. Paris: OECD Publishing, 2020.
Abstract: This paper examines the Programa Sintonia implemented by the Brazilian Federal Revenue Service (Receita Federal do Brasil) as a mechanism to promote tax and customs compliance. It analyzes its legal and economic foundations under the guidelines of the Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD), within the framework of responsive regulation and the carrot-and-stick philosophy. The study argues that the Brazilian fiscal governance model is moving from a punitive approach to a preventive and cooperative one, emphasizing transparency, good faith, and mutual trust between the State and taxpayers. It concludes that Programa Sintonia represents an administrative modernization tool consistent with the constitutional principles of efficiency and reasonableness, enhancing legal certainty and fostering fiscal citizenship without increasing the tax burden.
Key words : Tax compliance; fiscal governance; Brazilian Federal Revenue; OECD; compliance; carrot and stick; legal certainty.