A Constituição Federal de 1988, guardiã dos principais direitos e deveres dos cidadãos, pode ser considerada a mais democrática de nossas Constituições, principalmente por ter ampliado as possibilidades de questionarmos a constitucionalidade de todas as normas dela emanadas. Embora possua mais de dez anos de existência, ainda não foi devidamente interpretada, divulgada, implementada e aplicada, e vive sob a dicotomia de, por um lado, possuir regras obsoletas, em desacordo com a realidade econômica e social globalizada e de política neoliberal e, por outro, possuir normas ainda inaplicáveis devido à ausência da legislação complementar específica, exigida para a sua eficácia, o que gera vários questionamentos sobre a auto aplicabilidade ou não de suas regras.
Devemos diferenciar os termos revisão de emenda, espécies do gênero reforma constitucional, ambas oriundas das mutações ou alterações sociológicas ocorridas pelos costumes e tradições. Uma vez instaurada uma Lei Fundamental inicia-se a implantação de postulados magnos que devem presidir uma nova ordem social. É comum, ao se promulgar uma Constituição, prever-se, após determinado período, um processo de revisão ou alteração anexável ao texto inicial, adaptando-o às novas necessidades sem que seja necessário haver nova ruptura da ordem estabelecida, o que evita recorrer a uma revolução ou ao Poder Constituinte originário. É, a revisão, uma alteração complexa e lenta, diferentemente das emendas que visam modificar certos pontos do texto constitucional.
O que ocorreu com a revisão prevista na Constituição Federal de 1988 foi que, no Governo Itamar Franco, necessitando aprovar a criação do Fundo Social de Emergência - FSE, o qual representava um corte nas transferências de receitas da União aos Estados e Municípios visando, com isto, zerar o déficit público, diante da ausência de força política para aprovar esta matéria, utilizou-se desse sistema de alteração formal da Constituição Federal previsto no artigo 3.° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias aprovando com um quorum então possível, a nova medida, como Fundo de Estabilização Fiscal - FEF (pois ficara permanente e não mais emergente). Esgotou-se, desta forma, em definitivo, o poder de revisão.
Restou-nos como possibilidade de alteração de pontos da Constituição, com quorum especialíssimo, o poder de reforma por emendas, o qual é inquestionavelmente limitado, como expressa o próprio texto constitucional de forma explícita, no § 4.° do artigo 60 ou, ainda, implícita, como na delegação de titularidade ao poder constituinte e ao poder reformador e na rigidez do processo das emendas. As emendas constitucionais, devido, primeiramente aos princípios da derivação e da fundamentação que organizam a estrutura hierárquica das regras jurídicas, figuram em um plano inferior à Constituição Federal, pois é ela própria quem dita como uma emenda será elaborada, aprovada e promulgada. Temos também um sistema jurídico rígido, o que significa que contém regras de estrutura, as quais dão organicidade ao sistema e regras de conduta, disciplinadas pelas anteriores e que obrigam, proíbem ou permitem determinados comportamentos, de modo que resta ao legislador destas pouca possibilidade de conduzir os procedimentos legislativos de acordo com conveniências e oportunidades que venham de encontro aos interesses das regras anteriores. Uma das explicações para este fato foi a forte reação dos administrados, ou seja, do povo, ao poder ditatorial da época militar que violou princípios como os da liberdade de opinião e expressão, garantias individuais e o não-confisco.
Na nossa Carta Magna estão, portanto, os princípios e garantias fundamentais dos cidadãos, cláusulas pétreas das quais emanam as demais regras, de modo a formar-se um sistema organizado no qual as regras superiores norteiam as dela derivadas dando-lhes o fundamento de existência, tudo na forma de uma pirâmide hierárquica onde as normas inferiores devem ser compatíveis com as superiores em uma harmonia axiológica. O poder das emendas limita-se primordialmente ao respeito às garantias conquistadas pelos cidadãos, resultado de árduas lutas. Não se trata de obrigar uma geração a acatar os anseios das gerações anteriores ou de perpetuar o desenvolvimento da humanidade, e, sim, deve ser visto como uma manifestação da cidadania garantindo respeito aos direitos individuais e coletivos, resultado do reconhecimento das reais necessidades da sociedade e da vontade popular, externada por seus representantes e garantidora dos princípios da segurança jurídica e da certeza do direito.
Uma reforma visa uma mudança que, em nosso entender, deve ser para melhor, respeitando as conquistas anteriores e garantindo novos direitos à coletividade como um todo, e não visando dar privilégios determinadas categorias ou indivíduos. Aí entendemos estar o limite das emendas constitucionais, sob pena de ferir a Constituição e, consequentemente, a Federação, a República e o Estado Democrático de Direito.
O que vem ocorrendo no Congresso Nacional, violando, como nos seguintes exemplos: com a Emenda n.º 21/99, violou o princípio da estrita legalidade em sua dupla manifestação de segurança jurídica do contribuinte e certeza do direito ao aumentar tributo sem lei específica anterior, prorrogou lei que não mais vigorava e desrespeitou o rito que deveria ser imprimido ao procedimento de aprovação de emendas constitucionais; em outros casos modificou por medida provisória artigo da Constituição que foi objeto de alteração por intermédio de emenda promulgada a partir de 1995 em nítida violação ao artigo 246 da Constituição e, ainda, com a Emenda Constitucional 3/93, acrescentou o § 7.º ao artigo 150 da Constituição, atribuindo, com isto, responsabilidade a sujeito passivo por obrigação tributária cujo fato gerador ainda não realizou-se, inexistente no mundo jurídico. Dentre outras violações, está demonstrada, ou a falta de conhecimento das delegações do Poder Constituinte originário, ou um desrespeito ao cidadão, onde não são levados em conta sequer os princípios basilares da nossa Constituição. Verificada a presença de emenda constitucional inconstitucional, se não corrigida por nossos representantes do legislativo sponte propria, estará sujeita ao controle de constitucionalidade pelo Judiciário, o qual, se não manifestar-se pela atividade judiciária contra a lei em tese, deve ser provocado pela própria sociedade, na afirmação do direito em cada caso concreto.