1. Introdução: do surgimento do Constitucionalismo à Constitucionalização do Direito.
A decadência do Estado Absolutista teve por pano de fundo a definição e resguardo de prerrogativas fundamentais dos indivíduos, o que se verifica desde o famoso acordo celebrado entre o Rei João Sem-Terra e os barões ingleses condensado na Magna Carta de 1215. Este célebre documento histórico teve o mérito de inaugurar a série de sucessivas limitações [01] impostas ao poder monárquico, o que viria a culminar mais tarde no movimento constitucionalista. Neste contexto, o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 consagrava a seguinte regra: "Toda sociedade, na qual a garantia dos direitos não é assegurada nem a separação dos poderes determinada, não tem constituição".
Assim, após a Revolução Francesa, as prerrogativas da pessoa humana acolhidas nos primeiros textos normativos sobre o tema foram chamadas de direitos fundamentais de primeira geração e tiveram por característica a imposição de abstenções ao Estado em prol da ampla liberdade individual. [02] Assim sendo, a organização do Estado moderno assentou-se sobre a idéia rousseauniana acerca da existência de uma espécie de contrato social em que, por um pacto fictício e pressuposto, cada indivíduo cederia parcela de sua liberdade e de sua autonomia em prol da formação da estrutura estatal, a qual seria responsável por garantir segurança e bem-estar à coletividade mediante exercício do monopólio do uso da força para controle das atividades socialmente nocivas. Destarte, segundo a doutrina do Pacto Social, os indivíduos deixariam seu "estado de natureza" e constituiriam a sociedade, passando a viver em "estado de sociedade". Isto se daria com o fim de manter, na medida do possível, a liberdade inerente ao "estado de natureza", muito embora a "liberdade civil", que sucede a "liberdade natural", tenha por fundamento a necessidade observância de limitação da vontade individual pelas regras ditadas pela "vontade geral" (pactum societatis).
Com base nestas ideias, Beccaria [03] construiu o argumento que viria mais tarde a constituir a base de diversos valores vigentes na atualidade, tais como a proteção de bens jurídicos como única função legítima do Direito Penal, os princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da subsidiariedade do Direito Penal, dentre outras garantias igualmente importantes no campo processual penal.
Este panorama somente começa a se alterar a partir da deflagração da crise do Estado Liberal ocorrida, sobretudo, após a primeira Guerra Mundial, quando a ordem econômico-social passa então a integrar o rol de preocupações constitucionais. Os maléficos efeitos sociais da Revolução Industrial e de outros fatos históricos, como a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, contribuíram para a difusão da percepção política de que o Estado deveria adotar postura ativa quanto à efetivação dos direitos fundamentais por meio da intervenção no meio econômico e social.
Neste contexto, ante as novas funções assumidas, surge o Welfare State ou Estado do bem-estar social, marcado pela promoção da isonomia em sentido material [04], o que se consuma por meio da inserção de capítulos nas Constituições versando especificamente sobre a ordem econômico-social e sobre os "novos" direitos fundamentais (direitos sociais, prestacionais ou de segunda geração), tendência deflagrada no México, em 1917, com passagem pela Alemanha, em 1919 e que, por fim, chega ao Brasil com a Constituição de 1934. Posteriormente, já em meados da década de 60, a preocupação com a qualidade de vida dos seres humanos provocou a emergência dos direitos fundamentais de terceira geração (direitos difusos ou de titularidade indeterminada).
Esta breve análise histórico-evolutiva serve para demonstrar a evolução da atuação do Poder Público em relação à concretização dos direitos fundamentais, que não mais são exercidos contra o Estado, mas sim por meio do Estado. [05] É preciso esclarecer, no entanto, que a mudança do papel do Estado em prol dos interesses sociais não teve - e não pode ter - o condão de aniquilar o núcleo essencial dos direitos ligados à liberdade individual ou de desfazer as garantias processuais imprescindíveis à sua salvaguarda.
Paralelamente, vigora um aspecto peculiar ao ordenamento pátrio, qual seja a recente ascensão política e científica da Constituição ao epicentro do sistema jurídico, afastando-a definitivamente da função de mera "folha de papel", no sentido figurado por LASSALE [06], o que propicia a maior influência dos valores constitucionais não somente sobre a atividade legislativa do Estado, como também sobre a própria atuação do Poder Público em geral. Esta realidade permite dizer que vivenciamos na atualidade "um inédito sentimento constitucional", conforme as sempre precisas palavras de Luís Roberto BARROSO. [07]
A irradiação dos interesses constitucionalmente consagrados sobre todos os ramos do conhecimento jurídico gerou o fenômeno que se convencionou denominar de "Constitucionalização do Direito", sendo este assentado na revalorização do princípio da supremacia da Constituição. Assim, toda a ordem jurídica passou a ser enxergada sob o prisma do estatuto constitucional, apresentando-se, como mais importante expressão desta tendência, o mecanismo da filtragem constitucional [08], que consiste, basicamente, na imposição de releitura e reinterpretação de toda a legislação infraconstitucional à luz do filtro axiológico desenhado pelos valores contidos na Constituição.
As premissas decorrentes deste movimento são condensadas e bem expostas por SCHIER [09], nos seguintes termos: "(i) todas as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas no sentido mais concordante com a Constituição – primado da interpretação conforme; (ii) as normas de direito ordinário desconformes com a Constituição são inválidas, não podendo ser aplicadas pelos tribunais e devendo ser anuladas pelo Tribunal Constitucional e (iii) salvo quando não são exeqüíveis por si mesmas, as normas constitucionais aplicam-se diretamente, mesmo sem lei intermediária, ou contra ela e no lugar dela (...)".
Os resultados sensíveis da filtragem constitucional são variados, sendo o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana o pilar desta concepção. Há muito já se fala, por exemplo, na emergência do Direito Civil Constitucional. [10] O Direito Administrativo também não passou ao largo desta tendência, sendo certo que os autores mais atualizados nesta seara têm recentemente abordado o tema com profundidade e defendido a necessidade de releitura de dogmas até então tidos como inabaláveis, tais como a insindicabilidade do mérito do ato administrativo, o caráter absoluto do princípio da supremacia do interesse público [11] e também a auto-executoriedade absoluta dos atos administrativos punitivos.
Tanto a subsistência do mandamento de preservação do núcleo essencial das liberdades individuais (sobretudo, a de locomoção) quanto o espraiamento dos valores constitucionais sobre todos os domínios do ordenamento jurídico são fenômenos que acarretam substanciais consequências sobre o sistema punitivo, em todos os seus aspectos (penal, administrativo e processual), o que será objeto de abordagem específica no próximo capítulo.
2. A aberração legislada e aplaudida.
Mesmo diante de todo o exposto, na contramão da História, mas sob os aplausos da grande mídia, foi sancionada a Lei 11.705/19.06.2008, que, dentre outras providências, modificou a redação da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito) para estabelecer o seguinte:
"Capítulo XV – Das infrações
Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Infração – gravíssima;
Penalidade – multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;
Medida Administrativa – retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.
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Capítulo XVII – Das medidas administrativas
Art. 276. Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código.
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Art. 277.
§ 2º A infração prevista o art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.
§ 3º Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.
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Seção II – Dos crimes em espécie
Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor."
E foi assim que, no afã de satisfazer a sanha de elevação da punibilidade da embriaguez ao volante, o legislador desprezou diversos aspectos jurídico-constitucionais importantes. Como visto, corroborou-se a já existente imposição de penalidades administrativas (multa, retenção do veículo e suspensão do direito de dirigir) ao motorista que conduzir veículo sob a influência de álcool ou de substância psicoativa. As novidades ficaram por conta de dois fatores: (1) a possibilidade de que tais punições administrativas sejam aplicadas a condutores que apresentem qualquer concentração das substâncias referidas no sangue e (2) a possibilidade de que tais punições administrativas sejam aplicadas, com base, dentre outros "meios de prova", na percepção da "autoridade" de trânsito de "notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor" apresentados por parte do condutor quando da recusa deste em se submeter aos procedimentos previstos no caput do art. 277 do mesmo diploma legal. [12]
Não se ignora que o legislador brasileiro seguiu tendência mundial em matéria de segurança de trânsito [13] ao dispor que qualquer teor alcoólico no sangue serve para configuração da infração administrativa. O que se discute aqui são os meios utilizados para se atingir a suposta "constatação" da embriaguez.
No campo penal, o art. 306 do citado diploma legal teve sua redação alterada para o fim de acrescentar que a incursão típica se dará quando caracterizada, por litro de sangue, concentração alcoólica superior a 6 (seis) decigramas, independentemente da análise individual do nível de influência da ingestão de bebida alcoólica ou substância psicoativa sobre o ânimo ou percepção sensorial do agente. De início, cabe destacar que, ao contrário do que vem sendo difundido, conduzir veículo em estado de embriaguez não passou a constituir crime apenas agora, eis que isto ocorre desde a entrada em vigor da Lei 9.503/97, ou seja, há mais de 10 anos. O que mudou foi a quantidade de álcool e substâncias afins exigida para que se configure a aludida infração penal.
3. Dos equívocos evidentes.
O novel texto normativo vem sendo denominado de "Lei Seca" [14] ou, jocosamente, de "Lei Angélica", em referência à canção desta artista que ficou popularmente conhecida pelo refrão "vou de táxi". Trata-se, em nosso sentir, de diploma legal que, aparentemente [15], veicula intenção positiva, mas que, pela incoerência e pelos instrumentos que consagra, é eivado de erros crassos de perspectiva e interpretação, sobretudo, à luz da vigente Constituição.
Em termos materiais, a nova redação do art. 306 do Código de Trânsito contraria maciça e antiga corrente doutrinária e jurisprudencial [16] no sentido de que o respectivo delito é classificado como de perigo concreto [17], razão pela qual, sob pena de violação aos princípios da culpabilidade e da ofensividade, não se pode presumir, em abstrato, que a mera presença de determinada quantidade de álcool ou outra substância irá necessariamente influir, de igual forma, na capacidade sensorial de todas as pessoas e, destarte, lesionar, em qualquer caso, o bem jurídico penalmente tutelado, qual seja: a segurança no trânsito.
Em termos processuais, também andou mal o legislador. Beira as raias do absurdo a imposição de submissão do condutor aos testes de alcoolemia levados a efeito por meio de "bafômetros", o que se dá sob a ameaça de imediata aplicação das aludidas sanções administrativas. Não é difícil perceber que tal prova, em que pese escancaradamente nula pela forma de sua obtenção, será utilizada também no campo processual penal, comprometendo, sob o prisma da validade, o deslinde da ação penal respectiva.
Já na Idade Média, vozes respeitáveis levantaram-se contra procedimentos que, mutatis mutandis, consistiam na extração forçada [18] de provas acusatórias. A seu tempo e sobre o tema, o Marquês de BECCARIA se insurgia, nos seguintes termos:"(...) Direi ainda que é monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo (...)". [19] Nem se diga que a presunção estapafúrdia – na verdade, uma insólita inversão do ônus da prova - seria válida apenas no campo administrativo. Como demonstrado, na linha do que ocorre em todos os outros ramos da ciência jurídica, o Direito Administrativo é também cada vez mais permeado pelos valores constitucionais, dentre eles, os princípios da ampla defesa, do contraditório e, em especial, do devido processo legal. [20]
Ora, se mesmo no âmbito penal, onde as infrações previstas são, inegavelmente, mais graves e, comparativamente, mais nocivas ao interesse social, os órgãos de persecução não podem, em nenhuma hipótese, forçar a confissão, a produção obrigatória de prova pelo acusado ou mesmo extrair da legítima recusa do indivíduo nestes sentidos qualquer presunção que lhe seja desfavorável, não se pode admitir que isto seja viável para fins de punição na seara administrativa. Em respeito ao mais que milenar brocardo nemo tenetur se detegere, por mais nobre que seja a intenção política, definitivamente, tem-se aqui um exemplo clássico de aplicabilidade da afirmativa de que o fim não justifica o meio, razão pela qual incidiu o legislador em cristalina violação ao princípio constitucional implícito da razoabilidade.
Vale asseverar que o princípio da não obrigatoriedade de produção de prova pelo acusado é consectário lógico e inseparável do direito de permanecer em silêncio (art. 5º, LXIII da CR/88 [21]) e do princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII da CR/88), que, mutatis mutandis, seriam também aplicáveis no campo administrativo-punitivo, o que se dá, no caso em tela, também por questão de coerência ante a identidade do bem jurídico tutelado pelas vias administrativa e penal. Outro lastro importante desta noção está sedimentado na expressa disposição do art. 186 do Código de Processo Penal e seu respectivo parágrafo único, de onde se infere que nenhuma conseqüência prejudicial ao imputado pode advir do simples exercício das prerrogativas narradas.
Conclui-se, portanto, que o ônus da prova da embriaguez – repita-se: para qualquer fim punitivo (penal ou administrativo) – deve recair, exclusiva e integralmente, sobre os órgãos estatais. Não se pode esquecer que tal prova produzida sob o jugo da ameaça institucionalizada vem servindo para fundamentar a prisão em flagrante de centenas de pessoas pelo Brasil afora. [22] Neste ponto, tem chamado a atenção o ilusório "poder" conferido às "autoridades" de trânsito, em especial, aos policiais (militares ou rodoviários federais) que atuam nesta função, desde então, erigidos à condição de "fiscais da excitação alheia". Trata-se, inegavelmente, de mais uma notável contribuição da classe política à ratificação da tese de que o Brasil é o país da piada pronta, fonte paradisíaca e inesgotável para trabalhos humorísticos.
Digo isto, porque, em caso de recusa do condutor em participar da produção de prova contra si, o único "meio de prova" que restará será produto da mencionada habilidade quase sobrenatural criada pela lei referida "em favor" das "autoridades" de trânsito. Se tal disparate parece, a princípio, prestigiar a classe policial, deve-se salientar que, em caso de recusa do condutor a submeter-se ao teste de alcoolemia, simplesmente inexistirá prova real (material) da embriaguez, isto é, da concentração ou mesmo existência de álcool no sangue, mas tão-somente a apreciação subjetiva das referidas "autoridades" de trânsito. Diante das proporções que os fatos vêm ganhando, penso que a responsabilização penal, cível e administrativa dos que atuam na fiscalização do cumprimento da tal "Lei Seca" é não só viável, mas impositiva, o que tem sido despercebido por grande parte da população, também por colaboração da imprensa. [23]
Logo, a "autoridade" de trânsito que insistir em conduzir o motorista que se negou a fazer o "teste do bafômetro" para a sede policial está sujeita a receber voz de prisão em flagrante [24], eis que, dependendo das circunstâncias, estará incorrendo em delitos diversos, tais como calúnia, difamação e injúria (cf. arts. 138 a 140 do CP, respectivamente), além da prática do crime de abuso de autoridade (cf. art. 3º, ‘a’ e art. 4º, ‘a’, ambos da Lei 4.898/65). Ante a ausência de prova concreta da materialidade delitiva, a afronta ao teor do art. 5º, LXI da CR/88 [25] resta evidente.
Os primeiros sinais da realidade acima exposta podem ser percebidos ante o fato de que os responsáveis pela fiscalização da observância da chamada "Lei Seca" têm simplesmente escolhido a forma com que vão atuar, ora conduzindo os que se negam a participar do "teste do bafômetro" para a sede policial [26], ora não o fazendo, contentando-se com a lavratura do auto de infração administrativa. Nesta última modalidade de "cumprimento legal", a embriaguez tem sido tomada como meia-verdade, ou seja, a "autoridade" de trânsito toma a embriaguez como fato apenas para o fim que escolheu, isto é, para fim de aplicar sanções administrativas e, logo em seguida, despreza esta mesma embriaguez que acabara de considerar e deixa de dar seguimento às conseqüências penais inerentes ao mesmo fato. Assim, cumpre-se parcialmente os desígnios desta aberração oriunda do Poder Legislativo, como se fosse juridicamente possível ou moralmente legítimo que um agente estatal presuma um determinado fato para alcançar um objetivo punitivo e, ato contínuo, desconsidere-o para elidir consequência inevitável, mas que não lhe convém.
Assim, ainda que se decida apenas por lavrar o auto de infração administrativa com base em presunção descabida, os agentes de trânsito permanecerão imputando embriaguez a terceiros, o que, como dito, é feito sem prova cabal. Neste caso, se por um lado estaria afastada a possibilidade de imputação do já referido crime de abuso de autoridade (pela efetuação irregular da condução forçada de indivíduos à sede policial), por via transversa, seria cabível, ainda assim, a prisão em flagrante do agente de trânsito pela prática do crime de prevaricação (art. 319 do CP) [27], tendo em vista o não cumprimento integral de dever ligado ao mesmo fato.
Por todo o exposto, quaisquer dos procedimentos mencionados espelham um misto de ignorância e arrogância, com grave comprometimento da liberdade de milhares de cidadãos. A tentativa de inovar a ordem jurídica por meio de mera interpretação informal de agentes administrativos incompetentes não pode prevalecer sobre direitos constitucionalmente consagrados, haja vista que é patente a inviabilidade de que presunções sejam tomadas como meio de prova para fins punitivos de qualquer espécie.
Chama a atenção o fato de que o censurável diploma legal aqui comentado (Lei 11.705) foi publicado em 19.06.2008, ao passo que a Lei 11.690, que alterou diversos dispositivos do Código de Processo Penal, foi publicada em 09.06.2008, ou seja, apenas dez dias antes. Causa espécie a gritante disparidade entre ambos os textos, sobretudo, quando analisado o novo teor do art. 157 do CPP, que, na linha traçada pelo art. 5º, LVI da CR/88, passará a ter a seguinte redação: "São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais." Considerando a identidade do bem jurídico tutelado pelas normais penais e administrativas em questão, a incoerência demonstrada pelo legislador nos faz rememorar a célebre colocação feita por Nelson HUNGRIA [28] que, referindo-se ao que denominou de "intermitentes eclipses do Parlamento", relatou que, durante o regime dos Decretos-Lei (1930-1934 e 1937-1946), por serem os textos normativos elaborados de improviso e a jato contínuo, caso fossem publicados no mesmo dia, na mesma edição do Diário Oficial, tais diplomas "gritariam de susto por se acharem juntos". Ante o curto lapso temporal entre a edição das normas referidas, sem qualquer ponta de saudosismo, parece que o tempo não passou e os eclipses parlamentares continuam ocorrendo.
Por fim, destaca-se a pouca confiabilidade dos aparelhos de medição de alcoolemia, vulgarmente denominados de "bafômetros" ou "etilômetros". Sendo fartos os relatos sobre resultados incongruentes e incompatíveis com a realidade apresentados pelos aludidos aparelhos de medição [29], como se ousa pôr a liberdade e a honra [30] de milhares de cidadãos em risco? Se a lei trata de concentração ou existência de álcool no sangue, como se pode aferir tal circunstância sem análise da amostra sanguínea de cada motorista fiscalizado? [31] Como estão sendo observadas as regras da proporcionalidade e isonomia sem a definição normativa do que são "substâncias psicoativas" e, consequentemente, sem sua igual coibição? [32] Enfim, uma série de questões permanece sem respostas satisfatórias, sendo que, por mais nobres que sejam as intenções veiculadas por meio da chamada "Lei Seca", são juridicamente inaceitáveis as atitudes que até aqui têm sido adotadas pelos representantes do Poder Público, as quais demandam exemplar reprimenda.